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Memória Libertária

Documentos e Memórias da História do Movimento Libertário, Anarquista e Anarcosindicalista em Portugal

Documentos e Memórias da História do Movimento Libertário, Anarquista e Anarcosindicalista em Portugal

Memória Libertária

27
Mar23

(memória libertária) Arnaldo Simões Januário (Coimbra, 1897 – Tarrafal, 1938)


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Arnaldo Simões Januário nasceu em Coimbra a 6 de Junho de 1897 e faleceu a 27 de Março de 1938, no Campo de Morte do Tarrafal, vitimado por uma biliose anúrica, sem assistência médica, depois de vigorosos anos de combatividade e de sofrimento nos cárceres e nas deportações.

Barbeiro de profissão, foi o organizador em Coimbra dos Sindicatos Operários e estrénuo propagandista revolucionário anarquista. Foi correspondente em Coimbra do jornal “A Batalha”, órgão da C.G.T.. Em 18 de Março de 1923 tomou parte na Conferência de Alenquer como delegado do Grupo Anarquista de Coimbra de que fazia parte juntamente com João Vieira Alves, também delegado. A sua combatividade não esmoreceu com o advento do movimento do 28 de Maio antes recrudesceu. Antes porém a sua acção na propaganda tornou-se bem conhecida em sucessivos artigos em “A Batalha”, “A Comuna”, “O Anarquista”, a revista “Aurora” e muitos jornais dedicados à causa dos trabalhadores. Fez parte do Comité Nacional da União Anarquista Portuguesa (U.A.P.) formada a partir daquela célebre Conferência. Em 1927 sofreu a sua primeira prisão e seguiram-se-lhe intermináveis perseguições em todas as prisões e nos períodos de relativa liberdade que eram para ele outros tantos períodos de luta na clandestinidade. Sua ideologia acrata não lhe permitia subtilezas ou atitudes de meias tintas. Lutava em todos os escalões, pela palavra, pela escrita e pela acção.

O movimento revista de 18 de Janeiro de 1934 teve nele um dos principais organizadores. Preso pela Pide de Salazar, que num furacão de brutalidade, investe sobre os elementos operários de todo o país, declarou nobre e altivamente tomar inteira responsabilidade pro aquele movimento cujo fim era derrubar a Ditadura.

Entre 1927 e 1931 passou pelas cadeias do Governo Civil de Coimbra, Aljube e Trafaria seguidas de deportações em Angola, Açores e Cabo Verde e internamento no Campo de Concentração de Ué-Kussi ou Okussi em 22 de Novembro de 1931.

Para este campo foram crescendo em número os deportados idos da metrópole, e como o campo de Okussi não comportasse mais homens, os ditadores mandaram construir a toda a pressa outro na ilha de Ataúro ou Taúro.

Transcrevemos a seguir a descrição dos dois Campos, recolhida de apontamentos seus, escritos na prisão.

«O Campo de Concentração de Okussi funcionou de Outubro de 1931 a Maio de 1932 com uma população normal de 100 pessoas, excepto nos três primeiros meses em que essa população foi de, aproximadamente, 150 homens. O local do campo ficava, ao nível do mar e a sua construção era de palapa, material com que os indígenas faziam as suas habitações. A poucas dezenas de metros encontravam-se dois grandes pântanos onde manadas de búfalos nadavam e pastavam na maior tranquilidade. Após três meses de internamento 70% da população do campo estava gravemente impaludada. Na época das chuvas, a mais quente, o termómetro chega a acusar, 38º à sombra. O comandante militar do campo era o Tenente Óscar Ruas. Os locais escolhidos para a construção dos dois campos de concentração obedeceu a um pensamento homicida, covardemente premeditado o crime que haveria de arrancar a vida ou inutilizar a saúde a perto de quinhentos homens. Ataúro é uma ilha sem condições de vida para europeus. Sem saneamento de qualquer espécie, sem água potável, com uma temperatura excessivamente quente é justamente que se chama àquela ilha a Ilha da Morte. A alimentação dada aos confinados era má e insuficiente. Ao cabo de três meses começam a declarar-se os primeiros casos de tuberculose que se repetem duma forma alarmante. Serviços médicos não existem na ilha, quedando reduzidos à assistência dum enfermeiro militar. Quando desembarcavam em Dili os deportados de Ataúro, com destino ao hospital, deparava-se sempre com um espectáculo arrepiante que confrangia toda a gente que a ele assistia. Homens com as aspecto de cadáveres ambulantes, magros, esquálidos, os olhos luzentos de febre, esfarrapados e descalços no seu maior número. Em toda a população da cidade, mesmo naquela que é indiferente à questão política, correu m um frémito de indignação ante a hediondez nitidamente demonstrada pelo tratamento a que estavam sujeitos algumas centenas de homens. Foi necessário morrer um desgraçado e que outros fossem largando os pulmões pela boca para que o Governador, brigadeiro Justo, implorasse para Lisboa a extinção dos dois Campos de Concentração, o que vem a acontecer em fins de Janeiro e Maio de 1932».

Depois destes inauditos tormentos, Januário é posto em liberdade e regressa a Coimbra.

Após o malogro do movimento grevista de 18 de Janeiro de 1934, o operariado de todo o país sofre uma nova investida da PIDE, num furacão de brutalidade sem nome. Volta a ser encarcerado no Aljube e a seguir transferido para o Forte da Trafaria, onde é montada uma comédia-julgamento. Este improvisado julgamento condena-o a 20 anos de prisão, sendo enviado  para o Forte de S. João Batista, na Ilha Terceira, nos Açores. Era director o famigerado Capitão Paz que ali cometeu toda a espécie de arbitrariedades. Mário Castelhano e Arnaldo Januário, émulos no heroísmo, foram metidos na POTERNA, horrendo cárcere, tão horroroso como os da velha Inquisição.

Depois destes sofrimentos, Salazar, o místico da crueldade, que, da casa onde se acoitava, guardado pela G.N.R., a S. Bento, providenciava em todo o regime penal, como um velho inquisidor de há 3 séculos, ainda veio a criar o Campo da Morte do Tarrafal.

Para ali, com muitos outros, foi atitado o Januário e é já suficientemente conhecido o regime de vida que ali levavam os presos.

Arnaldo Simões Januário, lutador incansável que a tudo resistira, destruído física que não ideologicamente, sucumbe, enfim, a 27 de Março de 1938, rodeado dos cuidados possíveis dos seus companheiros, mas sem os carinhos da família onde avultavam cinco filhos menores.

É assim que deixa de pulsar o coração generoso do Homem que tudo sacrificou ao seu ideal, ideal de fraternidade humana que não se compadecia com situações fascistas e nazis, tendo o seu corpo ficado sepultado na terra que tanto o viu sofrer.

(Publicado em "Voz Anarquista", nº 13, Abril de 1976)

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Arnaldo Simões Januário, aquando da deportação para Timor. Em Dili, Agosto de 1932.

(projecto mosca)

27
Fev23

MANUEL FRANCISCO RODRIGUES (1901 - 1977)


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               Por Maria João Dias

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Professor, filósofo e escritor, opositor à ditadura fascista do Estado Novo, viveu a violência da repressão. Passou por todas as prisões políticas até ser deportado para o Campo de Concentração do Tarrafal, onde esteve três anos e meio. É autor de diversas publicações, entre as quais “Tarrafal, aldeia da morte”, considerada um valioso testemunho sobre o sofrimento dos presos políticos.
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1. Manuel Francisco Rodrigues nasce em Lisboa, a 12 de Fevereiro de 1901, filho de Carlota da Conceição Vidal, natural de S. Domingues do Vale de Figueira (Santarém) e de António Guilherme Paula Rodrigues, carpinteiro, natural da freguesia de Santa Isabel, Lisboa, moradores na Estrada de Campolide. É inteligente, de espírito culto e inquieto. É assíduo frequentador da Biblioteca Nacional quando Jaime Cortesão é o Director. Torna-se partidário das ideias anarquistas e cristãs. A sua filosofia é libertária-ramo tolstoiano. Segue também doutrinas, crenças filosóficas e práticas de cariz místico. É defensor do vegetarianismo e particante do naturismo. Funda o "Grupo dos Filhos do Sol" com o enfermeiro Virgílio de Sousa, e colabora com a Liga- Anti-Alcoólica Operária". O seu idealismo cedo o levou às grades de uma prisão política, detido durante uma noite de contestação em Lisboa.
Com vinte e poucos anos, sai do país e, durante vinte anos, viaja 10.000 Km por toda a Europa. Vive na Noruega, Suécia, Estónia, Letônia , Lituânia, Alemanha...Na Bélgica, estuda e adquire um diploma em Filosofia, no Institut Philosophique de Bruxelles. Na Alemanha, vive na aldeia vegetariano-tolstoiana de Orienburg e participa na reunião da IV Internacional em Berlim.
Em 1936, está em Barcelona e, integrado no movimento anarquista, organiza na sua casa reuniões com outros membros de destaque do movimento. Casa com Aurora Reboredo, filha do anarquista José Rodrigues Reboredo (1891-1952). Em 1938 nasce a primeira filha do casal, Aurora. No eclodir da guerra civil espanhola, luta como voluntário contra os franquistas. É ferido e perde a visão do olho esquerdo. Refugia-se em França, atravessando os Pirenéus, e vive lá alguns anos com a família. Mas acaba por conhecer a dureza dos campos de concentração de Argelès-Sur-Mer; Saint-Cyprien e Gurs. Em dezembro de 1940, e já à espera do nascimento de mais uma filha, Maria, regressa a Portugal.
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2- Em Beirã (Marvão), a 15 de Dezembro de 1940, Manuel é detido com o sogro. Fica preso no posto da GNR até 20 de Dezembro, data em que é enviado para a cadeia do Aljube (Lisboa). Em Fevereiro de 1941, é transferido para a prisão de Caxias. Em Julho de 1941 dá entrada no Forte de Peniche, onde fica dois meses e, em 4 de Setembro de 1941, embarca para o Campo de Concentração do Tarrafal (Cabo Verde), com José Rodrigues Reboredo e outros antifascistas. Julga que é um engano, mas cedo as suas esperanças se desvanecem. Aí vai encontrar dois conhecidos: um antigo amigo dos tempos de juventude, o enfermeiro Virgílio de Sousa Coelho, que chegou ao Tarrafal a 12 de Junho de 1937 e de lá sairá apenas a 23 de Janeiro de 1946, e o operário metalúrgico José de Sousa Coelho, que deu entrada no Tarrafal a 29 de outubro de 1936 e sairá a 10 de Fevereiro de 1945. Conhece de nome apenas mais quatro ou cinco deportados. Considera que a sua prisão é um engano e uma injustiça, pois nem sequer foi julgado. Escreve cartas de apelo às autoridades civis e religiosas de então. Não obtém resposta. Apenas o castigo de conhecer durante vários dias a " frigideira".
Ao fim de 3 anos e meio de cativeiro, sem julgamento, regressa do “Campo da morte lenta” em 20 de Fevereiro de 1945 (1). Vai residir para o Porto e fica impedido de sair do país. Dedica-se à tradução e à docência. Em 1946, casa com Lucília Branca Dias, natural do Porto, professora de Educação Musical em vários liceus do Porto e Chaves. Em 1948, nasce a única filha do casal, Lucília Dias Rodrigues. Vive com a família em Matosinhos, durante alguns anos. Regressa ao Porto e vai residir para a Rua de Santa Catarina. Lecciona Filosofia e Línguas na Escola Comercial Oliveira Martins, no Liceu Nacional de Chaves, no Instituto Francês e em vários Colégios particulares. Liga-se a várias colectividades, entre as quais a Associação de Jornalistas e Homens do Porto, à Liga Portuguesa de Profilaxia Social , onde trabalhou com o Dr. António Emílio de Magalhães em vários projectos, um dos quais era acabar com o "hábito" de andar descalço. Em 1958, apoia a candidatura do General Humberto Delgado. Vai esperá-lo à estação de S.Bento, e é um dos que o carrega em ombros .
Nas décadas de 50 e 60, publica vários livros, em edição de autor, com o pseudónimo Oryam. Memórias (1950) e Cântico de Oryam contam experiências vividas por ele (3). Recebe um prémio literário pela União de Autores Latinos.
Em 1974, adoece e pouco usufrui do tempo em Liberdade. Organiza tudo o que tinha escrito, há muito, sobre o Tarrafal e a 3 de Julho, em edição de autor, finalmente pode publicar a sua obra mais importante e escondida durante décadas: "Tarrafal aldeia da morte | O diário da B5”. É um dos primeiros livros publicados sobre o campo de concentração. Trata-se de um relato na primeira pessoa, em 327 páginas, de uma obra ilustrada. Nesse ano, a obra tem mais duas edições, pela Brasília Editora (2) e recebe o Prémio Literário " 25 de Abril" para Ensaio Político, na Feira do Livro do Porto. Anuncia a publicação de mais três livros, que não chegarão ao prelo, devido ao seu estado de saúde. Mas publica ainda " Socialismo em Liberdade", em 1975.
Considerado um homem bondoso e simples, os últimos anos de vida passa-os doente e cego, mas “conservou sempre o aprumo que lhe tinham querido roubar nas prisões fascistas”. Morre no Porto, a 28 de setembro de 1977, tão anónimo e tão discreto como viveu (4).
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2 - Depoimentos:
Por Antónia Gato
«Manuel Francisco Rodrigues foi um homem extraordinário. A sua obra “Tarrafal Aldeia da Morte - o diário da B5”, é a melhor obra sobre o Campo do Tarrafal. Anarca-cristão tolstoiano, trabalhou como repórter, professor, tradutor de línguas estrangeiras e autor de várias obras literárias onde se apresenta ao público com o pseudónimo de Oryam. Integrado no movimento anarquista, casou em Espanha com a filha de José Rodrigues Reboredo e combateu como voluntário na guerra civil contra os franquistas.
Acompanhado pela família atravessou os Pirenéus e refugiou-se em França mas acabou por conhecer a dureza dos campos de concentração de Argelès-Sur-Mer; Saint-Cyprien e Gurs. Em dezembro de 1940 regressa a Portugal e, juntamente com o sogro, é detido e posteriormente deportado para o Tarrafal " -
In: Tese de Doutoramento de Antónia Maria Gato Pinto, TARRAFAL: RESISTIR COMO PROMESSA - O poder de transformar uma experiência de opressão numa história de grandeza. In: file:///C:/Users/Utilizador/Downloads/CCT.pdf
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Por Diana Cortez:
"Manuel Francisco Rodrigues era meu vizinho. Tinha uma sala cheia de livros, tantos que chegavam ao tecto. Estava cego, já não os lia... Passava os dias de sol no quintal, à sombra da japoneira e os restantes em casa a ouvir música clássica. Às vezes pedia-me que lhe lesse. Eu não entendia o que lhe lia, muito menos porque sorria quando me ouvia. Diziam ser muito inteligente mas eu não sabia porquê.
Hoje sei que era filósofo, poeta, professor e escritor, cujo pseudónimo era Oryam.
Foi perseguido por ser inteligente e ter ideais anti-fascistas, esteve detido em vários lugares, entre eles, o campo de concentração Tarrafal, onde terá vivido dias de terror."

3. Outras publicações
O Cântico de Oryam, Colecção Oryam (Nº 2) Editora: Edição do Autor, 1ª Edição, 1957, Porto – Imprensa Social Secção da Coop. do Povo Portuense.
A Ideia Venceu a Morte, Colecção Oryam (Nº 3). Edição do Autor, 1ª Edição, 1958, Porto – Tip. J. R. Gonçalves, Limitada.
Socialismo em Liberdade, 1ª ed ,1975

Notas:
(1) Chegaram ao Tarrafal sucessivas levas de presos. As primeiras ocorreram em 1936 (151 deportados) e em 1937 (57 deportados). Mais tarde, à medida que a II Guerra Mundial foi evoluindo favoravelmente para os Aliados, decresceram os números da deportação. Na sua maioria, esses presos ultrapassaram largamente as penas a que tinham sido condenados; e, por vezes, nem sequer eram julgados, funcionando o campo como um desterro sem lei, isto é, de acordo com as leis fascistas de Salazar. Em 1939 verificam-se as primeiras saídas do campo, esporádicas, mas só em 1944 se regista um movimento significativo de libertações, cerca de uma trintena. O campo, aberto em Outubro de 1936, seria fechado em 1954. Foram 36 os prisioneiros políticos que morreram no Tarrafal: 32 portugueses, 2 angolanos e 2 guineenses. Os restos mortais dos portugueses só depois do 25 de Abril puderam voltar à pátria: Em 1961, o Ministro do Ultramar Adriano Moreira reabre-o para nacionalistas africanos, com a designação de Campo de Trabalho de Chão Bom.
(2) Excertos da sua obra "Tarrafal aldeia da morte":
«Quando os primeiros deportados chegaram, encontraram pedregulhos, vento, calor e mosquitos. Então ainda não havia as casernas, nem o «Posto de Socorros», nem a cozinha, nem as oficinas. Tudo isso se fez depois. O que havia já era o arame farpado e a água do poço. Fizeram umas toscas barracas de lona e, passados alguns meses, morreram os primeiros oito reclusos... Só num dia morreram três... depois mais três... e mais dois... Os cadáveres foram transportados a pau e corda para o cemitério. Então ainda não havia o luxo da camioneta. (,,) Depois, abriu-se a pedreira e mandou-se fazer uma marreta que pesava uma arroba. Sob os raios quentíssimos do sol, os forçados arrancavam e transportavam a pedra e, em longa e interminável fileira custodiada por soldados negros, acarretavam a água do poço para as necessidades do povo da aldeia. Quando um escravo caía, vítima do paludismo mortífero, outro era imediatamente escolhido para o substituir. E, depois, como se tudo isso não bastasse, construíu-se a célebre «Frigideira»...isto é: -a antecâmara do cemitério. A «Frigideira» é um bloco de cimento, dentro do qual há um orifício onde emparedam os reclusos que caem na desgraça de não agradar aos que estabelecem as ordens.
(…) Sob a acção do sol, a temperatura vai subindo dentro do buraco... sobe... sobe... sobe!... O desgraçado ou desgraçados que lá estão vão suando... suando... até ficarem cozidos e depois assados. É claro que, submetidos a esse tratamento, morrem muito mais depressa, sobretudo quando o ingresso no buraco se faz ao som das chicotadas do cavalo- marinho rasgando as costas dos condenado, às quais se seguem os consagrados rigores do jejum periódico forçado.»
(3) Catalogado na Livraria Fernando Sanos em Filosofia, em 244 páginas e com a descrição: «10.000 kms através da Europa. – A aldeia vegetariano-tolstoiana de Orienburg. – A lição dos Três Profetas na maravilha nevada do Wildhorn sobre o Homem e o Universo. – O país do sol da meia-noite, o acampamento de Krishnamurti e o ocaso de Viena de Áustria. – Franz Korscnher e Stefan Zweig. – A Academia de Estudos filosóficos fundada por Anakreon no oásis grego de Zágora».
(4) «Quando o conheci era um velho no limite da resistência humana, deixara em vários cativeiros o vigor, a força e a vontade férrea que sempre o tinham animado. (…) Da vida que dedicou à Paz no mundo restam apenas, além dos seus livros, recordações mais ou menos vagas daqueles que o conheceram. (…) Se continuarmos assim, esquecendo ou minimizando, de ânimo leve, Homens de tal envergadura, o “dia em que soará na terra a hora da fraternidade, da Paz justa e sincera” estará cada vez mais longe e, em breve, estaremos de novo envoltos nessa paz podre e vergonhosa de que tão dificilmente nos libertámos» - Sílvia Barata Gonçalves da Silva (Rio Tinto) em “Tribuna Livre”, 27 Maio 1979.
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Fontes:
- ANTT Registo Geral dos Presos nº 12946
https://www.livrariafernandosantos.com/.../memorias-de.../
http://im-parcial.blogspot.com/.../tarrafal-aldeia-da...
https://seculopassadolivros.com/.../a-ideia-venceu-a.../
http://media.diariocoimbra.pt/.../55b02a81-e5dc-469e-9676...;
https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4820829
- Tribuna Livre (secção de jornal não identificado) – artigo de Sílvia Barata Gonçalves da Siva, em homenagem a Manuel Francisco Rodrigues
- Correspondência de MFR com leitores das suas obras.
Informações da filha, Lucília Dias Rodrigues, Diana Cortez e da investigadora Antónia Gato Pinto. 

aqui: https://www.facebook.com/FascismoNuncaMais/photos/a.559109110865139/2332024566906909/

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20
Jan23

Abílio Gonçalves: o último sobrevivente anarco-sindicalista do Campo de concentração do Tarrafal, em Portugal, morreu a 20 de janeiro de 2004


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(foto publicada na revista Utopia, 17)

Com a morte de Abílio Gonçalves (1911-2004), antigo amassador de pão, resistente anarquista ao fascismo,  desaparecia, em Portugal, o último sobrevivente anarco-sindicalista do Campo de concentração do Tarrafal.  Vivo permanecia ainda Manuel Firmo, também antigo preso anarco-sindicalista do Tarrafal, mas a viver há longos anos em Barcelona. Morreu um ano mais tarde, em Janeiro de 2005, com 95 anos.

Abilio Gonçalves foi preso no próprio dia 18 de janeiro de 1934, em Lisboa, sendo desterrado para o Campo do Tarrafal logo na primeira leva de presos, tendo estado ali detido durante 10 anos (1936-1946),  sujeito aos piores maus tratos.

Nos anos a seguir ao 25 de Abril de 1974, Abílio Gonçalves explorou um pequeno restaurante em Pinheiro de Loures, juntando à sua volta um grupo de jovens muito activo, de raíz operária e estudantil.

Colaborou também no reaparecimento de A Batalha e a sua presença na sede da Angelina Vidal era frequente. O jornal A Batalha, nº 203, traçava deste modo o retrato do companheiro desaparecido:

"Na madrugada de terça feira, 20 de Janeiro próximo passado (2004), faleceu na sua residência em Pinheiro de Loures, aos 92 anos, o companheiro Abílio Gonçalves. Nos últimos meses a sua precária saúde obrigara a sucessivos internamentos hospitalares. Abílio Gonçalves nasceu no lugar de Vinhó, próximo de Coja, concelho de Arganil, em 16 de Outubro de 1911. Era filho de José Gonçalves e Guilhermina de Jesus. Dificuldades económicas familiares apenas lhe permitiram frequentar por pouco tempo a instrução primária, lançando-o precocemente no mundo do trabalho. Após alguns anos nas fainas agro-pastoris veio para Lisboa onde foi marçano, aprendendo em seguida o ofício de padeiro (amassador). Casou e teve uma filha.

Filiado na Associação de Classe dos Manipuladores de Pão frequentou na respectiva escola sindical o ensino elementar. Foi eleito secretário da Mesa da Assembleia Geral e, mais tarde, membro da Comissão Administrativa do sindicato. Foi nesta qualidade que participou activamente na organização da greve geral de 18 de Janeiro de 1934 contra a fascização dos sindicatos. Estava então empregado numa padaria da Rua D. Pedro V.

Denunciado por um colega de trabalho que era informador da polícia política, foi preso naquele mesmo dia 18 após o fracasso do movimento. Seguiram-se os interrogatórios e espancamentos policiais, a transferência para o Presídio Militar da Trafaria e o julgamento em Tribunal Militar com condenação a 10 anos de prisão e degredo. A 8 de Setembro de 1934 é enviado a bordo do «Lima» para o forte de S. João Baptista, em Angra do Heroísmo, aonde aportou ao cabo de 5 dias de viagem. Em Angra foi, como os outros, sujeito a frequentes espancamentos e a encerramento de castigo na poterna. Permaneceu nesta fortaleza até 23 de Outubro de 1936, data em que foram embarcados no vapor «Luanda» com destino ao campo de concentração do Tarrafal (Cabo Verde). Aí sofreu todas as agruras do campo, nomeadamente a inclusão na «brigada brava» e demoradas estadias na célebre "frigideira". Assistiu impotente à doença e morte, sem assistência médica, de vários companheiros, entre os quais Pedro Matos Filipe, Arnaldo Simões Januário, Mário Castelhano, Abílio Augusto Belchior, Joaquim Montes, Manuel Augusto da Costa, etc.

Abrangido pelo decreto de amnistia de Outubro de 1945, regressou à metrópole em 1 de Fevereiro de 1946, a bordo do paquete «Guiné», sendo posto em liberdade. Atravessou dificuldades consideráveis para arranjar trabalho, nasceu nessa época o seu segundo filho e algum tempo depois foi para Moçambique, onde se lhe juntariam os filhos. Alguns anos depois foi para a Suazilãndia. Regressou a Portugal algum tempo depois do 25 de Abril, tendo montado um pequeno restaurante em Pinheiro de Loures. Suspendeu a sua actividade há cerca de dez anos.Sócio do Centro de Estudos Libertários, foi presidente do seu Conselho Fiscal (1987) e membro da sua Comissão Administrativa (1988 e 1989). Foi igualmente assinante e colaborador do jornal A Batalha. Com a sua morte desaparece, em Portugal, o último sobrevivente anarco-sindicalista do Campo de concentração do Tarrafal. No funeral estiveram presentes familiares, amigos, dois sobreviventes do Tarrafal, o CEL / A Batalha e outros companheiros libertários."

A morte de Abilio Gonçaves foi também registada nas páginas da revista Utopia. por José Maria Carvalho Ferreira.

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aqui

 

16
Jan23

PAULO JOSÉ DIAS (1904 - 1943), assassinado pelo fascismo no Tarrafal


 

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Sobre Paulo José Dias, morto no Tarrafal a 13 de Janeiro de 1943, de tuberculose, não há muitos dados. A sua morte é, no entanto, sentidamente relatada no livro do anarquista Manuel Francisco Rodrigues ("Tarrafal, aldeia da morte") que refere ter sido ele acompanhado até ao último suspiro pelo anarquista Joaquim Duarte Ferreira, um elemento destacado da Organização Libertária Prisional. 
 
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Natural de Lisboa, nasceu a 24 de Janeiro de 1904, filho de José Paulo Dias e de Maria Picôto Dias. Fogueiro marítimo, libertário, foi preso em 7 de julho de 1939, "para averiguações" - segundo informação do Registo Geral de Presos da PVDE. Quinze dias depois, foi transferido para o Reduto Norte da Cadeia de Caxias.
Em despacho do Director da PVDE (capitão Agostinho Lourenço), de 29 de Fevereiro de 1940, foi determinado que se mantivesse em prisão preventiva, devendo ser transferido para Cabo Verde até se esclarecer a situação internacional [ este curioso despacho precede o envio de Paulo Dias para a 1.ª Esquadra, em 4 de Junho de 1940 e, de novo, para o Reduto Norte de Caxias em 7 de Junho de 1940.
Em 21 de junho de 1940, embarcou com destino ao Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, onde faleceu, com 39 anos de idade, a 13 de janeiro de 1943. (1)

(1) «Manuel Francisco Rodrigues, um dos tarrafalistas que sobreviveu à " aldeia da morte", assistiu à morte de Paulo Dias, que
morreu de tuberculose galopante, após 4 meses de cama. Escreveu no seu livro: " Dizia-me ele, três dias antes de morrer: -- A hora da justiça vai chegar e eu, que estou aqui injustamente, sem culpas , sem processo e sem julgamento, voltarei em breve abraçar os meus fllhos, sim, os meus filhos, pobrezinhos!...» À cabeceira da cama tinha uma moldura com as fotografias dos filhos e da esposa. Eram tão bonitos, os filhos!... Mas já não os verá mais. Já morreu!...»
In "Tarrafal, Aldeia da Morte" de Manuel Francisco Rodrigues, pág. 107.

https://www.facebook.com/FascismoNuncaMais/photos/a.559109110865139/3369027133206642/

30
Nov22

Acácio Tomás de Aquino (1899-1998): O testemunho anarquista da violência das prisões atlânticas do fascismo


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Acácio Tomás de Aquino (Lisboa, Alcântara, 9 de Novembro de 1899 - Lisboa, 30 de Novembro de 1998), militou nas Juventudes Sindicalistas e depois na Confederação Geral do Trabalho, tendo colaborado também  no jornal "A Batalha" e participado na preparação do 18 de Janeiro de 1934. Preso e deportado primeiro para Angra do Heroísmo, esteve depois 13 anos no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde.

Acácio Tomás de Aquino nasceu, em Lisboa, no bairro de Alcântara, a 9 de Novembro de 1899 e aí morreu a 30 de Novembro de 1998.  Exerceu várias profissões: operário da construção civil, trabalhador da Câmara Municipal de Lisboa, de 1918 a 1922, e ferroviário, de 1926 até à sua prisão, em 1933.

Foi militante anarco-sindicalista da Confederação-Geral do Trabalho, filiado nos Sindicatos dos Metalúrgicos, dos Trabalhadores do Município e da Construção Civil, entre 1919 e 1933.Foi, ainda, secretário da Federação dos Sindicatos da Construção Civil e da Confederação Geral do Trabalho.

Foi colaborador da imprensa operária e sindical, nos jornais A Batalha e O Construtor. Membro do comité da CGT organizador da greve geral de 18 de Janeiro de 1934, foi preso a 11 de Dezembro de 1933, sob acusação de ter entregue bombas a outro activista na Estação do Rossio, estando, por isso preso quando se deu a greve geral .

Foi condenado a 12 anos de degredo em prisão, pelo Tribunal Militar Especial, no dia 9 de Março de 1934. A 8 de Setembro desse ano seguiu primeiro para Angra do Heroísmo, sendo transferido para o Tarrafal, Cabo Verde, a 23 de Outubro de 1936. Teve um papel preponderante na Organização Libertária Prisional, que agrupava os presos libertários que se encontravam no Tarrafal. Regressou a Portugal a 10 de Novembro de 1949, mas só alcançou a liberdade total, a 22 de Novembro de 1952.

Depois do 25 de Abril de 1974, colaborou com diversas organizações e jornais libertários, sobretudo no jornal A Batalha, que ajudou a renascer, e publica um dos livros mais importantes sobre a vivência dos presos quer em Angra do Heroísmo, quer no Tarrafal, com inúmeros documentos daquela época “O Segredo das Prisões Atlânticas, em que relata também as divergências entre os anarquistas e os comunistas, transcrevendo correspondência entre a Organização Comunista Prisional e a Organização Libertária Prisional, em que critica os comunistas, nomeadamente, Bento Gonçalves, Secretário- geral do Partido Comunista Português, entre outros, acusando-os de colaboracionismo.

Pertenceu à cooperativa editora de A Batalha, ao Centro de Estudos Libertários, ao Grupo Fanal, federado na FARP, e também à URAP, a União dos Resistentes Antifascistas Portugueses, colaborando empenhadamente na trasladação para Portugal dos restos mortais dos antifascistas portugueses mortos no Tarrafal.

No 1º de Maio de 1974 desfilou com o seu companheiro, também ex-militante da CGT,  José Francisco, na Avenida Almirante Reis, na primeira grande manifestação após o 25 de Abril, erguendo a bandeira da Secção de Belém do Sindicato Único Metalúrgico, vermelha listada-a-preto, que tinha guardada e escondida durante todos aqueles anos. Aos dois companheiros, Acácio Tomás de Aquino e José Fransciiso, rapidamente se juntaram dezenas de companheiros nessa primeira e imponente manifestação do 1º de Maio,

Para além de “ O Segredo das Prisões Atlânticas, Lisboa, A Regra do Jogo, 1978”, colaborou também no livro colectivo “O 18 de Janeiro e Alguns Antecedentes, Lisboa, A Regra do Jogo, 1978", repondo a verdade história sobre a greve geral contra a fascização dos sindicatos.

Ver: "Quatro Itinerários Anarquistas - Botelho, Quintal, Santana e Aquino -, de João Freire, edições A Batalha, 2019.

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22
Nov22

Custódio da Costa (1904-1980): o militante escolhido para dar o sinal do início do 18 de janeiro em Lisboa


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Custódio da Costa, o militante anarcosindicalista escolhido para dar o sinal do 18 de janeiro de 1934, em Lisboa, morreu a 22 de Novembro de 1980, há precisamente 42 anos

Custódio da Costa, natural de Esgueira, Aveiro, onde nasceu a 10/1/1904. foi militante anarcossindicalista, padeiro de profissão (em particular na marinha mercante), filiado no Sindicato dos Manipuladores de Pão, integrado na CGT, e esteve envolvido na organização do movimento insurrecional de janeiro de 1934 contra o Estado Novo. Estava incumbido  de fazer explodir uma bomba no Miradouro da Senhora do Monte, na Graça, em Lisboa, às 3 horas da manhã do dia 18 de Janeiro de 1934, sinal combinado para fazer eclodir o movimento contra a fascização dos sindicatos. Não o fez por decisão do Comité Nacional da CGT, uma vez que no dia anterior um atentado comunista contra a linha férrea na Póva de Santa Iria tinha posto a polícia de sobreaviso. Durante todo o dia são mandados telegramas e outra forma de avisos para vários pontos do país informando que o movimento tinha sido suspenso. No entanto, há levantamentos operários em localidades como Almada, Silves e Marinha Grande.

Preso e condenado, foi degredado para os Açores e, de seguida, para o campo de concentração do Tarrafal, onde ficou até novembro de 1949.

Da ficha da Pide consta que foi “preso em 4/2/934. Transportou e entregou a Romão Duarte ingredientes para o fabrico de bombas e ainda transportou da Cova da Piedade para Lisboa cerca de 80 bombas que foram distribuídas a vários indivíduos, indo algumas para a Marinha Grande.”

Foi condenado pelo Tribunal Militar Especial em 8/3/1935 a “12 anos de degredo numa das colónias c/ prisão” e multa de 20.000$00. Em 8/9/934 segue para Angra do Heroísmo, sendo transferido para Cabo Verde em 23/10/36. Em 6/8/49 foi-lhe concedida a liberdade condicional pelo prazo de 3 anos com as seguintes condições: “1º Fixação da residência em Cabo Verde, sem prejuízo da vinda à Metrópole, mediante autorização da entidade fiscalizadora; 2º Não frequentar meios ou locais especialmente procurados por elementos suspeitos ou perturbadores da ordem pública; 3º Não acompanhar pessoas suspeitas ou de má conduta, designadamente antigos companheiros que tenham estado ligados a actividades subversivas; 4º Aceitar a protecção e indicações de uma instituição do Patronato ou de pessoa encarregada de o exercer”.

Foi “solto condicionalmente em 1/4/49, pelo prazo de 3 anos e com residência fixada em Cabo Verde, sem prejuízo da vinda à Metrópole, mediante autorização da entidade fiscalizadora” (Director do Tarrafal e a PIDE). Desembarca em Lisboa a 10/11/949, devendo apresentar-se todos os meses, no dia 11, no Piquete da PIDE.

Foi-lhe concedida a liberdade definitiva por sentença de 24/10/952. No total, entre prisão e liberdade condicional, esteve debaixo do jugo das autoridades fascistas durante 18 anos.

Depois da sua libertação, colaborou com Emidio Santana e outros libertários na Associação dos Inquilinos Lisbonenses, uma das associações onde estes mantiveram uma forte influência durante um longo período, sobretudo durante as décadas de 60 e 70.

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Custódio da Costa no jardim da sede de A Batalha, na Rua Angelina Vidal, em Lisboa, c.1975

Após o 25 de Abril de 1974, colaborou dedicadamente na reaparição do jornal “A Batalha” e do movimento libertário, tendo durante vários anos assegurado o funcionamento das instalações deste jornal, que servia também de sede a vários outros grupos e actividade do Movimento Libertário (da Rua Angelina Vidal à Av.Alvares Cabral).

Participou também no depoimento colectivo de antigos tarrafalistas, editado pela Regra do Jogo, em 1978, "O 18 de janeiro de 1934 e alguns antecedentes" , em que antigos responsáveis pelo movimento do 18 de janeiro (Acácio Tomáz de Aquino, Américo Martins, Custódio da Costa, José Francisco, Marcelino Mesquita e Emidio Santana que o coligiu) repunham a verdade histórica, depois das tentativas de apropriação e adulteramento que sobre ele o PCP fazia, tentando chamar a si a organização de um movimento que, na altura, classificou como "anarqueirada".

Custódio da Costa morreu em Lisboa a 20 de novembro de 1980.

referências: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2015/01/18/entrevista-custodio-da-costa-o-anarquista-encarregue-de-dar-o-sinal-para-o-18-de-janeiro-de-1934-em-lisboa/

http://mosca-servidor.xdi.uevora.pt/arquivo/?p=collections/findingaid&id=56&q=

https://silenciosememorias.blogspot.com/2020/01/2269-custodio-da-costa-i-greve-geral-de.html

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28
Out22

Carta/comunicado de José Correia Pires e José Rodrigues Reboredo aos seus camaradas da OLP, ao deixarem o Tarrafal em 1945 , sobre a unidade entre os anarquistas


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Ficha prisional de José Correia Pires 

https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4285647

*

José Correia Pires foi libertado do Tarrafal 8 anos depois de ali ter chegado, sem julgamento. Em fevereiro de 1945, quando as autoridades carcerárias o informaram de que ia ser libertado em breve, com o seu também companheiro libertário José Rodrigues Reboredo (que esteve cerca de 3,5 anos no Tarrafal depois de uma vida de exilio, que o levou a Espanha e a França, onde conheceu os campos de concentração do fascismo), decidiram escrever uma carta de despedida aos seus companheiros da Organização Libertária do Campo do Tarrafal.

Nesta carta, que faz parte do espólio deixado pelo também libertário e tarrafalista António Gato Pinto, Correia Pires e Rodrigues Reboredo apelam à unidade de "sindicalistas, anarco-sindicalistas e anarquistas" para preservarem intacta a CGT, fundamental para "o triunfo dos sublimes ideais de emancipação humana por que lutamos", e  impedindo que ela e "A Batalha"  fossem "tomadas" pelos comunistas que, na altura, depois da reorganização partidária de 1940/41 e do fim da II Guerra Mundial gozavam de prestígio e apoio. Para os autores da missiva "separados os sindicalistas dos anarquistas ou os anarquistas dos sindicalistas, o nosso Movimento será absorvido pelos comunistas, pois todas as suas propostas de unidade e colaboração, por mais amigos e sinceros que se mostrem, não visam mais que um fim: o desaparecimento do nosso Movimento, para os comunistas estabelecerem o seu predomínio."

Para isso é fundamental a união e o companheirismo entre os libertários, mesmo que com opiniões diversas, uma vez que "desde (há) longos anos que combatemos juntos pela mesma causa, desde há muito tempo que o nosso sangue se verte na rua em conjunto, nas barricadas e em todos os locais de luta, morrendo lado a lado, varados pelas mesmas balas assassinas das hostes mercenárias da Burguesia ou abatidos traiçoeiramente pelas febres e outras doenças do clima tropical e doentio das regiões inóspitas da África, de Timor ou do maldito Tarrafal, mil vezes maldito pelas vítimas produzidas entre os nossos camaradas" referem os dois anarquistas no momento de deixarem o Tarrafal.

É essa carta/comunicado que a seguir se publica no dia em se assinalam os 46 anos da morte de José Correia Pires.

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(1945), "A todos os componentes da Organização Libertária do Campo do Tarrafal", Fundação Mário Soares / António Gato Pinto, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_160528 .  Cópia manuscrita de comunicado de José Rodrigues Reboredo e de José Correia Pires aos membros da Organização Libertária do Campo do Tarrafal, no momento da sua saída do campo. Fevereiro de 1945. 3 páginas.

*

A todos os componentes da organização Libertária do Campo do Tarrafal

Prezados camaradas:

É costume  corrente quando mudamos de localidade ou de país, despedirmo-nos dos nossos parentes, dos nossos amigos e todas as pessoas, enfim a quem nos sentimos ligados por laços de família, de amizade ou de companheirismo.

Ora, se é certo que há costumes que tendem a desaparecer por erróneos ou caricatos, o dever de cortesia, é crença nossa, perdurará pelas idades fora, porque tem um fundo humano, constitui uma prova dos instintos de sociabilidade do homem e, por consequência, corresponde  a uma necessidade social.

Sendo assim, nós, ao deixarmos o Tarrafal faltaríamos a um dos mais elementares preceitos de civilidade, se não cumpríssemos o dever de nos despedirmos de todo os camaradas que compõem a nossa organização, aqui no campo.

É esse, pois, o motivo porque resolvemos dirigir-vos as presentes linhas como motivo da nossa despedida.

Certamente que poderíamos cumprir este dever indo pessoalmente junto de cada camarada.

Mas todos vós sabeis o que se passa aqui, no campo, quando estamos para sairmos. Em primeiro lugar não sabemos o dia nem a hora a que somos chamados e, quando nos chamam, não nos permitem mais falas com quer que seja. Em segundo lugar, uma despedida antecipada, não só perde o seu verdadeiro significado, como arrisca-nos a cair no rídiculo se a nossa saída se não realizar por qualquer motivo imprevisto.

Ponderadas, pois, todas estas circunstâncias optámos, antes, por dirigir-vos algumas linhas por escrito, como afirmação do nosso sincero espírito de solidariedade para com todos vós, linhas em que sintetizamos alguns pontos do nosso pensamento, neste momento de separação das nossas pessoas.

Ao deixarmos este maldito Tarrafal, mil vezes maldito pelos imensos sofrimentos nele padecidos por todos os nossos camaradas, alguns dos quais aqui encontraram a negra morte – camaradas para os quais vai, neste instante da nossa partida, a nossa mais comovida homenagem -, nós queremos que vós nitidamente saibais que, não obstante a diferença de critérios, talvez, entre nós existentes quanto a alguns problemas da nossa organização, não obstante, porventura, (d)a diferença de ideias que entre nós possa haver quanto à solução do problema social e humano, nós partimos deste campo mantendo para convosco a máxima estima e consideração, sentindo-nos ligados pelos laços da mais fraternal camaradagem, estabelecida e mantida sobre a égide da C.G.T. e da Organização Específica, Organismos, certamente, que todos nós desejamos ver fortes e engrandecidos, com uma extensão cada vez maior e mais rica em resultados concernentes ao triunfo dos sublimes ideais de emancipação humana por que lutamos.

Falamos assim porque estamos absolutamente convencidos de que todos desejamos atingir o mesmo fim: realizarmos a transformação social e estabelecermos um sistema de vida que assegure à classe trabalhadora, a todos os homens, a garantia dos direitos que lhe são devidos por direito próprio e condição natural.

Porque pensamos desta forma, entendemos que era nosso dever neste momento de separação (decerto breve) dar-vos conta da nossa incondicional solidariedade hoje, e amanhã, lá fora, em qualquer parte [em] que nos encontremos, dentro dos organismos acima indicados.

Podeis estar certos que encontrareis sempre em nós o melhor dos desejos, a maior boa vontade e o máximo interesse de contribuir, tanto quanto possível, para a união da família Libertária. Entendemos sempre e continuamos a manter o mesmo critério de que todas as opiniões são respeitáveis, todos os juízos devem ser tomados em consideração e todas as ideias devem ser ouvidas dentro das nossas organizações.

O que é necessário é que respeitando-se precisamente este princípio, cada um respeite a opinião dos demais e haja a maior elevação possível na exposição das ideias e conceitos, buscando-se uma solução conciliadora, sempre que surjam critérios diferentes acerca dos problemas em causa.

Dentro desta orientação, possivelmente, (que) chegaremos em todas as ocasiões a um bom e franco entendimento e observar-se-á a harmonia e a confiança necessárias para continuarmos a lutar juntos contra o inimigo comum.

Permiti-nos, camaradas, dizer-vos com toda a sinceridade: qualquer rompimento entre nós representaria um perigo gravíssimo para o nosso Movimento. Seria a destruição de todo o labor realizado com tanto sacrifício, através de longos anos dos nossos camaradas, seria a perda de milhares de esforços que foi necessário despender para levar a cabo a nossa organização.

A desunião entre nós não pode produzir mais que o enfraquecimento imediato da nossa querida C.G.T., ocasionando que, no futuro, essa seja tomada pelos nossos adversários.

Haja em vista, camaradas, o que se passou em França com o Movimento Operário que, fracionando-se, tinha três C.G.T.!

Sindicalistas neutros, anarco-sindicalistas e anarquistas, todos unidos e lutando dentro de uma só C.G.T., representam uma força poderosa no nosso país – a única que pode garantir confiança às massas -, podem fazer-se respeitar pelas outras correntes, impedindo que estas se apoderem da C.G.T., e podem vantajosamente sustentar a luta contra a burguesia.

Separados os sindicalistas dos anarquistas ou os anarquistas dos sindicalistas, o nosso Movimento será absorvido pelos comunistas, pois todas as suas propostas de unidade e colaboração, por mais amigos e sinceros que se mostrem, não visam mais que um fim: o desaparecimento do nosso Movimento, para os comunistas estabelecerem o seu predomínio.

É este, camaradas, o panorama que se oferece neste momento à nossa Organização Confederal.

Através desta simples anunciação se pode ver o enormíssimo perigo que representa uma rutura no nosso Movimento – o Movimento Libertário –, ou seja dentro da C.G.T., mal já agravado com a criação da célebre Comissão Inter-sindical e outras dissenções anteriores.

Em face de tudo isto, camaradas, afigura-se-nos que devemos congregar todos os esforços para que esse perigo desapareça. É preciso conjugarmos todas as nossas energias para que os nossos adversários não possam amanhã apoderar-se da C.G.T. e do nosso jornal “A Batalha”, valendo-se da nossa desunião. Alerta, camaradas. Alerta, que o adversário é activo, tenaz e inteligente. Não é de estranhar que ele busque os meios para estabelecer um choque entre nós. Dividir para reinar! Eis a máxima de todos que pretendem vencer para estabelecerem o seu reinado.

Pensemos, pois, seriamente na responsabilidade que pesa sobre os nossos ombros, se contribuíssemos, porventura, para uma cisão entre nós.

Desde longos anos que combatemos juntos pela mesma causa, desde há muito tempo que o nosso sangue se verte na rua em conjunto, nas barricadas e em todos os locais de luta, morrendo lado a lado, varados pelas mesmas balas assassinas das hostes mercenárias da Burguesia ou abatidos traiçoeiramente pelas febres e outras doenças do clima tropical e doentio das regiões inóspitas da África, de Timor ou do maldito Tarrafal, mil vezes maldito pelas vítimas produzidas entre os nossos camaradas.

Pois bem! Evitemos romper essa união consagrada por tantos anos de luta em conjunto, essa união cimentada sobre tantas dores e tanto sangue vertido! Continuemos irmanados e identifiquemos mais, se é possível, ainda os nossos propósitos de união. Dentro da C.G.T. há lugar para todos desenvolverem a sua actividade e darem expansão ao seu saber e à sua capacidade construtiva e revolucionária. Que é necessário dar mais amplitude à C.G.T.  para que ela possa estar à altura das circunstâncias? Nisso estamos todos de acordo. Unamo-nos, pois, para que isso se faça, para que a C.G.T. viva e se torne cada vez maior, realizando a missão histórica que lhe cabe na obra de transformação económica-social da classe trabalhadora no nosso país. É este o nosso pensamento, neste momento, camaradas. E fiéis a ele, partimos de aqui absolutamente convictos de que amanhã, dentro da C.G.T., não surgirão quaisquer motivos que nos possam separar, tanto na luta pela realização dos nossos ideais, como na luta contra o sistema capitalista.

Partimos de aqui desejosos de contribuir o mais possível para a nossa união. Não alimentamos quaisquer ressentimentos que, porventura, possam impedir a mais estreita e leal colaboração entre todos nós em relação aos futuros trabalhos dentro do nosso Movimento.

São estes, camaradas, os propósitos que nos animam ao sairmos de aqui e que vos fazer conhecer neste momento da nossa despedida do Tarrafal. Recebei, camaradas, as nossas mais fraternais saudações, vossos e da causa, Tarrafal Fevereiro 1945

a) José R. R. e J. C P

(Actualizados vocabulário e pontuação do texto)

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Ficha prisional de José Rodrigues Reboredo

https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4293448

 

28
Out22

José Correia Pires: textos e notas por ocasião do 46º aniversário da sua morte


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O anarquista e antigo tarrafalista José Correia Pires nasceu em 1907, em Messines, no Algarve e morreu a 28 de Outubro de 1976, em Almada, onde residia. Um vida dedicada à militância anarquista primeiro em tempos de Republica; depois contra o fascismo, na clandestinidade e no Tarrafal;  mais tarde, já em democracia, com a fundação do jornal Voz Anarquista e do Centro de Cultura Libertária, em Almada.

Carlos Gordilho, que o conheceu e acompanhou, recolheu alguns dados sobre José Correia Pires e coligiu-os, levantando a questão dele – tão prolixo na escrita – ter deixado tão poucos textos enquanto esteve no Tarrafal (8 anos) e lançando a pergunta: “após 46 anos da sua morte, emerge a questão da sobrevivência dos seus escritos do campo de concentração do Tarrafal. Os escritos deste autor desapareceram ou encontram-se depositados, organizados e indevidamente identificados em fundos documentais?”

O também tarrafalista António Gato Pinto, residente no Barreiro, foi um dos seus amigos e companheiro e a ele se deve ter guardado no seu espólio alguns textos de José Correia Pires, entre os quais a versão original do livro “A Revolução Social e a sua Interpretação Anarquista” (publicado em 1975).

Textos e anotações sobre José Correia Pires, anarquista, coligidos e contextualizados por Carlos Gordilho

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José Correia Pires

"Podem chacinar-nos, podem algemar a liberdade, podem erguer uma prisão em cada lar e abrir uma sepultura em cada metro de terra! Os homens tombarão, mas as ideias nobres ficarão sempre de pé até que, por sua vez, possam triunfar sobre o último dos algoses".

(J. Correia Pires)

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Campo de Concentração do Tarrafal onde José Correia Pires  esteve preso durante 8 anos

1 – ONDE PARAM OS ESCRITOS DE JOSÉ CORREIA PIRES NO TARRAFAL?

O tarrafalista António Gato Pinto, nunca se declarou anarquista, mas era de orientação libertária. Entrou no campo de concentração do Tarrafal na primeira leva de prisioneiros, em 29 de outubro de 1936. Libertado, saiu em 1949. Conhece José Correia Pires no primeiro momento em que este chega ao campo, no dia 12 de junho de 1937. Ficam amigos por longos anos. E nessa posição de entreajuda, trabalham em conjunto, quando José Correia Pires instala uma carpintaria e uma loja de mobiliário, ambos os espaços na avenida D. Afonso Henriques, em Almada, e uma sucursal na Baixa da Banheira, Barreiro, área onde reside António Gato Pinto.

C. Pedro, pseudónimo de José Correia Pires, entra a 1 de março de 1946 no Comité Confederal, substituindo "Camilo", como elemento de ligação entre o Comité e o Conselho Confederal. No vigésimo nono ano da fundação do jornal «A Batalha», "apreciou-se o artigo de fundo escrito por C. Pedro para o próximo número de «A Batalha», que foi aprovado, embora Pinto e Lima (pseudónimos) tivessem feito algumas observações por causa das alusões à Rússia".

Esta referência à pratica de escrita de José Correia Pires, procura destacar a sua participação dotada de uma preparação intelectual e desambigua afirmação ideológica. Por esse motivo é surpreendente que lhe seja atribuído, isto no âmbito do espólio de António Gato Pinto,  a autoria de só dois manuscritos (um artigo de fundo que circulou no sector libertário do campo (1938) e  uma carta de despedida (1945) em co-autoria com José Rodrigues Reboredo, quando saiu do campo), tendo-se em conta que antes de ser deportado, em 1937, para o campo de concentração do Tarrafal, onde permaneceu oito anos, já publicava artigos de opinião na imprensa regional do sul do país. No período do seu exílio em Espanha (1932), editou um número do órgão da Federação Anarquista de Portugueses Exilados, «Rebelião», inserindo nesta publicação com 25 páginas vários artigos da sua autoria.

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Imagem: visita de Edgar Rodrigues (à direita) a Paiva Moura, em Almada.

2 - PERFIL BIOGRÁFICO DE JOSÉ CORREIA PIRES, POR EDGAR RODRIGUES.

Correia Pires nasceu em Messines, Algarve no ano de 1907.

Ali aprendeu três importantes conhecimentos: a ler, a profissão de carpinteiro e as ideias anarquistas.

Pouco depois ingressa nas Juventudes Sindicalistas e luta até ser preso em 1932, sendo então conduzido para o Aljube de Lisboa.

Libertado, volta à luta e participa do movimento de 18 de Janeiro de 1934. Mas o insucesso deste obriga-o a exilar-se em Espanha onde chega clandestinamente.

Ali viveu algum tempo sem conseguir emprego. Foi o seu amigo José Rodrigues Reboredo quem lhe conseguiu meios para sobreviver pelo seu próprio esforço.

Antes de explodir a revolução em Espanha retorna a Portugal e depois de viver na clandestinidade por algum tempo, trabalhando no sector da Federação Anarquista da Região Portuguesa (F.A.R.P.) acaba preso, processado e enviado para o Campo de Concentração do Tarrafal, de onde regressou combalido, praticamente incapaz fisicamente de exercer a sua profissão.

Assim mesmo não perdeu as convicções anarquistas. Lutou sempre escrevendo e dando exemplos de tolerância, de bondade e de coerência libertária.

Estudou na universidade da vida que lhe abriu suas portas bem cedo, e nela conseguiu grandes conhecimentos, uma excelente cultura sociológica, tornou-se um autodidacta respeitável, um homem bom!

Escrevia e falava sem dificuldades, com fluência, raciocinava progressivamente, fora sempre um anarquista actualizado.

Com o derrube da ditadura fascista portuguesa, uniu-se aos seus companheiros que haviam escapado aos 48 anos de perseguições. A todos movia a mesma intenção: publicar A Batalha. Mas o comportamento autoritário, de intolerância e o desejo de supremacia de alguns sobreviventes, fê-lo retornar a Almada e com Francisco Quintal, Sebastião Almeida, Jorge Quaresma, José Eduardo, Paulo Lola, Adriano Botelho, entre outros, fundar Voz Anarquista, onde colaborou até morrer, em Outubro de 1976.

Antes, porém escreveu a publicou 2 livros: Memórias de Um Prisioneiro do Tarrafal e A Revolução Social e a sua Interpretação Anarquista.

Pode dizer-se que Correia Pires se realizou, assistiu à derrocada da ditadura fascista portuguesa, ao desfalecimento dos seus algozes, a famigerada P.I.D.E., pôde ajudar a fundar um jornal genuinamente anarquista e morreu como viveu, de bem consigo mesmo, com o seu Eu, homem bom como sempre fôra.

(in Edgar Rodrigues, «A Oposição Libertária em Portugal - 1939/1974», pp. 203)

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3 - O PAPEL DE JOSÉ CORREIA PIRES, NO REAPARECIMENTO DO MOVIMENTO ANARQUISTA ORGANIZADO

É um elemento do grupo anarquista de Almada «Luz e Vida», e a partir de março de 1946, é também membro do comité confederal da C.G.T..

"Informei então das tentativas feitas no sentido de dar vida ao anarquismo militante, com organização própria, a primeira por um grupo de Lisboa, da qual fazia parte o camarada Lima, há perto de dois anos, que distribuiu um questionário aos camaradas e grupos anarquistas conhecidos e em actividade, pedindo a sua opinião sobre os vários pontos apresentados, entre os quais estava o sistematizado que devíamos optar de relação com o movimento operário. Era intenção do grupo distribuidor do questionário fazer uma publicação com todas as respostas recebidas e se as mesmas fossem favoráveis á organização específica dos anarquistas ou à criação dum simples comité de relações entre os grupos autónomos, convocar todos os grupos e camaradas para uma conferência plenária onde se tomariam acordos definitivos, num ou noutro sentido.

Só dois grupos, de lisboa, mandaram resposta ao questionário. Ultimamente um grupo de Almada, "Luz e Vida", distribuiu uma circular interessando os camaradas anarquistas na sua organização regional."

(Texto extraído do relatório do delegado da C.G.T. a Coimbra em 8 de novembro de 1947, in Edgar Rodrigues, «A Oposição Libertária em Portugal - 1939/1974», pp. 298-307)

Observação: o camarada Lima é o anarquista Adriano Botelho. A carta-questionário foi distribuída no ano de 1945. Mais tarde, em 1982, foi publicado no livro de Edgar Rodrigues, por nós aqui destacado,  pp. 95-97. O relatório está assinado por Vicente, pseudónimo  de Vivaldo Fagundes, e pelas letras M.R. (Moisés Ramos), Lisboa, 8/11/1947.  Aquando da sua chegada a Lisboa, no regresso do campo de Concentação do Tarrafal, onde permaneceu oito anos, José Correia Pires foi libertado no Forte de Caxias, a 9 de março de 1945.

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4-GRUPO ANARQUISTA DE ALMADA (CLANDESTINO) «LUZ E VIDA»

O grupo anarquista “Luz e Vida” é o grupo anarquista de Almada (clandestino), que depois de 25 de Abril de 1974 veio a designar-se “Grupo Cultura e Acção Libertária”, editor do jornal Voz Anarquista.        

“Prezados camaradas:

Subordinados à ideia de dar às actividades dos anarquistas portugueses um carácter homogéneo e eficiente, tanto na defesa e empenhamento do anarquismo, como na conquista de mais liberdade [...], foi, por um grupo anarquista de Lisboa, distribuído uma circular questionário, que este grupo (Luz e Vida) considera oportuno e assás interessante e à qual nos propomos responder:

A) organização especifica - à pergunta feita se veem os indivíduos continuarem a agrupar-se à base de afinidade ou entre os que vivem mais próximos, diremos: - o princípio de afinidade deverá ser sempre o preferido, não só como determinação a nosso princípio ideal mas muito especialmente como exigência de um maior aproveitamento do nosso labor revolucionário e ideológico, sabido com é que todo e qualquer empreendimento reclama sempre muita compreensão e geral entendimento entre os respectivos empreendedores. Diz-nos a experiência que quando não há a verdadeira afinidade entre um agrupamento, uma organização perde-se um tempo enorme com discussões inúteis e dificilmente pode surgir trabalho eficiente e valioso de agrupamentos que não assentem no princípio de afinidade. Assiste-se muitas vezes entre camaradas nossos a discussões estéreis e facilmente altercando-se sem motivo justificado exactamente por não haver entre si muita simpatia e menos afinidade, explodindo por vezes tempestades pouco edificantes e que em nada nos elevam. Significa isto, que o princípio de afinidade é entre nós o preferido, embora não deixemos de reconhecer que onde não seja possível a sua total aplicação, por falta de elementos ou ainda pela sua dispersão, se opte por qualquer sistema, sendo forçoso onde hajam anarquistas que se agrupem, pois se outros motivos não houverem a forçar os nossos vinculos e a nossa aproximação, bastam-nos a nossa comum repulsa pelo autoritarismo e apêgo às ideias de liberdade.

B) como se devem relacionar-se os grupos e indivíduos isolados? O anarquismo é essencialmente contrário a todo o princípio de uniformidade, a toda a ideia totalitária, por contrária à diversidade da vida e inimiga do princípio de liberdade e por isso em nenhuma das suas actividades ou desdobramentos persiste um critério rígido, inflexível, sendo notória uma maleabilidade quer no tempo quer no espaço, no referente a tática e método de luta, contrariamente ao que dizem e supõem os seus detractores. É por isso que não podemos estabelecer que as nossas relações tomem este ou aquele carácter uniforme, dado que o que não se pode fazer aqui se não poderia fazer ali e o que convenha a uma realidade pode não convir a outra. Significa isto que serão sempre as circunstâncias que terão a última palavra e os camaradas das respectivas localidades deverão ver qual o processo que melhor sirva as necessidades das nossas actividades relacionadoras. Isto quanto às relações individuais e de grupo para grupo. No referente às relações nacionais, cremos indispensável um comité relacionador que não só estreite relações com todos os grupos e camaradas isolados, como até procure compulsar as necessidades e iniciativas gerais e dar-lhes a expansão correspondente. É forçoso acentuar que em qualquer agrupamento anarquista a pratica dos princípios federalistas são sempre a sua norma e por princípios federalistas se compreende a pratica das normas gerais das actividades com observância rigorosa dos princípios de liberdade, que dizem salientar a possibilidade e conveniência do indivíduo livre no grupo livre e este dentro da realidade, e assim em toda a ordem social. Tanto em tempo de repressão como de liberdade, as nossas relações deverão ser sempre mantidas com a máxima precaução e cautela, optando materialmente pelos métodos que a experiência aconselhe. Neste sentido também não pode haver um critério único, para cada caso terão os camaradas encarregados dessa função que escolher o que menos perigos garantir.

Propaganda - Independentemente do que cada grupo ou indivíduo isolados possamos fazer, cremos ser de absoluta necessidade a criação de um comité ou secretariado de propaganda, coordenando tudo que possa concorrer para a disseminação e esclarecimento das ideias e problemas que com as mesmas se prendam e que aceitamos a ideia de um órgão na imprensa com carácter fraccional, ainda que com o apoio geral, sabido como é que de outro modo seria desbaratar energia e tempo.”

Observação:  Concordante com o seu próprio estilo de escrita, o autor do texto deve ser o José Correia Pires.

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Imagem: o texto original «A Revolução Social e a sua Interpretação Anarquista» com 21 páginas, datado de 18 de Fevereiro de 1938, encontra-se inserido no espólio de António Gato Pinto, deportado no Campo de Concentração do Tarrafal, e depositado na «Casa comum-Fundação Mário Soares», pasta 10439.001.014. Na "Introdução" da presente edição do texto que redigiu em 1971, editado em 1975, José Correia Pires escreve com imprecisão, informando o leitor que o texto circulou no Campo aí por volta dos anos 39, não está certo, e isso é prova que não teve oportunidade para dissipar a dúvida, isto é, de consultar o texto original de sua autoria. António Gato Pinto, morreu em 1973.

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José Correia Pires, (1907-1976,) discursa no encontro anarquista celebrativo do 1º Maio de 1974, na cervejaria Canecão, em Cacilhas, ladeado pelos companheiros, à esquerda, Sebastião Almeida. À direita, Emídio Santana e Francisco Quintal.

5 - RELEMBRAR A MUTAÇÃO DO GRUPO ANARQUISTA (CLANDESTINO) DE ALMADA. O MESMO GRUPO DEPOIS DO 25 DE ABRIL DE 1974, PASSA A SER DESIGNADO «GRUPO CULTURA E ACÇÃO LIBERTÁRIA», EDITOR DO JORNAL VOZ ANARQUISTA.

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Nesta "Acta", no ponto 1º, é referido a questão do Movimento Libertário Português e a publicação do jornal A Batalha. A tensão dos companheiros veteranos de Almada, com o grupo informal reunido à volta de Emídio Santana, aquando da edição em Setembro de 1974 do mencionado jornal, tem uma proveniência anterior. Ou seja, está na origem do apelo politiqueiro de Santana a candidaturas eleitorais dos anarcosindicalistas para os municípios; "O Emídio Santana, depois de sair da prisão, tentou formar um grupo político para concorrer às eleições municipais - ele e o Germinal de Sousa, filho do Manuel Joaquim de Sousa. Publicaram um manifesto e por causa disso houve uma grande bronca com os companheiros, mais ou menos chefiados pelo Correia Pires." (1)

Claro, a tensão foi acentuada, quando o Santana e os seus acólitos se apropriaram de todas as verbas enviadas do estrangeiro para o Movimento Libertário Português, aplicando esse fundo nas despesas com a produção do jornal A Batalha. Eu assisti à discussão levantada pelos companheiros Paulo Lola (elemento da FAI) e José Correia Pires, ambos delegados do GCAL, em oposição ao senhor pseudo anarquista Moisés Ramos e todos os outros implicados que acompanharam o Santana. Passaram-se quatro meses, entretanto, como águas paradas não move seja o que for, os veteranos anarquistas em conjunto respondem editando o jornal Voz Anarquista, que começa a circular nas bancas em Janeiro de 1975.

 (1) José de Brito, Retalhos da Memória, in Utopia, nº4, Outono-Inverno de 1996, pp. 63-68.

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6 - OUÇA ZACARIAS

O anarquista José Correia Pires, operário carpinteiro, sem nunca ter chegado a ser trabalhador efectivo na Companhia Portuguesa de Pesca, no sitio do Olho de Boi, aqui trabalhou dois anos e tal, isto quando se instalou em Almada, em 1945.

O documento que transcrevemos está do seguinte modo identificado: trata-se de um manuscrito reproduzindo uma carta de um carpinteiro (anónimo), após o seu despedimento. Documento de 8 páginas, com o título "Ouça Zacarias", é datado de setembro de 1947. O documento está inserido no espólio de Antonio Gato Pinto, ex-guarda nacional republicano e ferroviário, prisioneiro e amigo do Tarrafal de José Correia Pires.

“OUÇA ZACARIAS!

O que vou dizer-lhe não é propriamente uma explicação, que não lhe devo, mas antes um desabafo que não resisto à tentação de lhe fazer, exactamente porque a despeito da decepção porque me fez passar ainda tenho por você alguma consideração. É meu desejo que não veja nestas simples linhas mais que o desejo de o fazer pensar alguns minutos no meu caso, que você julgou arrumado com o meu despedimento, e que pondere as razões que tenho para estar ressentido e confessar que me enganei acerca da sua amizade e do que me prometeu, sem nada lhe ter pedido.

O que me acaba de suceder estou firmemente convencido que em nada o incomodou e nem o conteúdo desta carta lhe merecerá o menor interesse. Ora não importa. Há coisas que nos ocorrem que só nós as valorizamos, precisamente porque só nós as sentimos e compreendemos devidamente. Depois, que importa uma injustiça na pessoa de um simples operário se todos os dias e a todas as horas se praticam infâmias na pessoa de milhões? Que importância pode revestir o caso de se despedir um operário que se considera bem comportado e em tudo cumprindo os seus deveres numa fase em povos inteiros se humilham e se deprimem? Não, num mundo onde só prepondera a injustiça em nada, absolutamente em nada, conta a desconsideração e injustiça de que eu me considero vítima e nem eu quero que você lhe dê mais importância que a que lhe mereceu quando pensou incluir-me na lista dos que iam ser despedidos. Que pretendo então? Dizer-lhe que o seu espírito de justiça e lealdade está profundamente embotado e que perde muito no meu conceito todo o indivíduo que não cumpre o que promete, qualquer que seja o motivo do seu não cumprimento e muito mais quando simples futilidades são o motivo de tal procedimento. Não sei as razões que possa ter a meu respeito, mas o respeito pela sua própria dignidade e muito especialmente em obediência a uma situação que aí criei (e foi você que inicialmente mais para tal contribuiu) era forçoso da sua parte proceder de maneira diferente daquela que procedeu. Mais que uma vez e mais que um indivíduo me asseveraram espontaneamente que enquanto você estivesse à frente dos trabalhos da carpintaria eu não sairia do Olho de Boi, e isto, certamente, foi você quem propalou. Mas não foi pelo que outros me disseram, apenas guardo bem vivo na minha memória o seu prometimento de efectividade na casa, embora, como é lógico que assim fosse, nunca nada a tal respeito lhe tivesse pedido. Que aconteceu para que passados dois anos e tal de casa (situação que por si só já me dava o direito de não ser despedido por dá cá aquela palha) ser assim despedido? Disse-me você que tinha ordem para reduzir ao mínimo o pessoal e que não iria despedir carpinteiros mais velhos que eu na casa, deixando-me ficar. Absolutamente de acordo e não serei eu quem condene um tal proceder. Mas procedeu você assim? Não, e considero que os despedimentos que você ultimamente aí fez foram de uma injustiça a toda a prova e para um espírito recto e justo seriam motivo forte para sentidos arrependimentos e remorsos para toda a vida. Mas o meu caso é o mais flagrante e nunca pensei que você procedesse para mim como realmente procedeu!

Acredite que um dia me falaram muito mal de si, mas julguei estar em presença de um despeitado e não acreditei. Mais tarde mostrou-me uma ou duas cartas anónimas que também as não tomei a sério e até me revoltaram especialmente porque sempre detestei o anonimato, quando se acusa. Depois disto tudo confesso que se alguma vez mais ouvir falar mal de você não terei a mesma atitude de descrença que antes mantive. Porquê? Apenas porque embora o não considere um indivíduo mau, depois do que me fez sei que não é suficientemente cauteloso na não prática de qualquer injustiça que o ponha na alçada da critica e dos reparos dos que possam ser afectados ou tenham por habito criticar o que não for razoável e justo.

Durante o tempo que aí trabalhei pude verificar que na luta que você mantinha entre a defesa dos interesses da Companhia que você representa, e a defesa dos operários que por sentimentos e responsabilidades contraídas pelas suas afirmações em parte lhe competia defender, a sua conduta interpretei-a como bastante equilibrada e até com certa inteligência, sempre mais inclinado a defender os que na verdade mais necessitam que os defendam. Significa isto que como mestre não o considero pior, outrotanto não dizendo se se trata de camarada ou simplesmente de amigo. O que me fez tenho-o como uma grande deslealdade e, para melhorar a compreensão, ponha-se no meu lugar e veja se é ou não lamentável o que me aconteceu, partindo de um indivíduo de quem não esperava, não porque fosse meu desejo que não acontecesse, mas tão somente porque até no último momento conseguiu enganar-me sem necessidade nenhuma de o fazer. Não acha que tendo você tornado a resolução de me despedir que mo devia ter dito franca e lealmente quando me comunicou que o Victor Hugo também estava despedido e que tivesse eu paciência? Quando me disse que “nos puséssemos a pau” porque não disse concretamente o que pensava fazer? Admito ainda que vacilasse e temesse directamente dar-me assim essa notícia (no seu foro íntimo você tinha consciência do que isso representava), mas não merece perdão de me não ter dito o que pensava definitivamente fazer quando me dirigi, pedindo que me explicasse o que queria dizer aquele “ponham-se a pau” e que terminou por me dizer que me fosse aguentando e que se não pudesse aguentar que me diria com antecedência. Reconsidere bem este seu último prometimento e veja que nesse mesmo dia entrava de licença e com a lista dos que iam ser despedidos nas mãos dos seus operários-chefes e no número dos quais não hesitou em me incluir. Como classificaria você um indivíduo que o tivesse como amigo e lhe fizesse uma partida destas?

Não quero nem devo continuar, e termino por lhe asseverar que sofri uma grande desilusão exactamente por o ter tomado a sério. Mas já estou curado e presentemente só lamento o tempo que aí trabalhei que talvez noutros locais teriam modificado em parte o meu modo de vida. Sem mais não lhe prometo utilidade mas garanto-lhe que nunca lhe serei prejudicial.

Observações:

  1. O anarquista que exercia a profissão de carpinteiro nessa época em Almada era o José Correia Pires;
  2. A referida pessoa instala-se em Almada em 1945, após o regresso do Campo de Concentração do Tarrafal, talvez tenha vindo para Almada devido a esta oferta de emprego no sector naval;
  3. Nesta carta dirigida ao mestre Zacarias é mencionado que o sujeito despedido trabalha há dois anos e tal no "Olho de Boi", o que corresponde à fixação de José Correia Pires em Almada e está conforme com a data da carta;
  4. Ambos os protagonistas, António Gato Pinto e José Correia Pires, vão manter uma estreita relação pessoal por longo tempo. A sua actividade clandestina de José Correia Pires nas estruturas libertárias justifica que o seu fiel amigo seja efectivamente o depositário dos documentos. De facto, não foi feita qualquer análise grafológica forense dos manuscritos, a fim de atribuir as autorias desses documentos reunidos no espólio.
  5.  No fundo documental António Gato Pinto, depositado na casa comum-fundação Mário Soares, constituído por 247 pastas, está disponível para consulta pública um manuscrito designado "cópia manuscrita", pasta 09633.033, reproduzindo uma carta de despedida do campo de concentração do Tarrafal (1945), escrito de José Correia Pires e do seu amigo José Rodrigues Reboredo. Comparando de forma empírica a grafia da escrita desse texto, com algumas letras da caligrafia do texto "ouça zacarias" (1947), por nós atribuído ao autor josé correia pires, concluímos, que o copista do manuscrito em questão é o tarrafalista antónio gato pinto. Na verdade, encontramos nalguns manuscritos não identificados e s/d, determinadas similitudes com a grafia do manuscrito "ouça zacarias". Veja você mesmo as semelhanças, consultando os documentos nas pastas que aqui mencionamos. As semelhanças são evidentes, e parecem inquestionáveis:
     
    10439.018 (a cooperação como sistema)
    10439.08 (sobre Confederação Geral do Trabalho) http://casacomum.org/cc/pesqArquivo.php?termo=10439.008
    10439.007 (intenssifiquemos o nosso labor...) http://casacomum.org/cc/pesqArquivo.php?termo=10439.007
    10439.001.010 (considerações sobre...) | Cc | PesqArquivo

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Instalações da Companhia Portuguesa de Pesca, Olho de Boi, Almada

Sobre José Correia Pires, autor de A Revolução Social e Sua Interpretação Anarquista (disponível aqui) ver textos de Irene Pimentel (aqui) e de Maria João Raminhos Duarte (aqui) e do próprio Correia Pires (aqui). Para uma contextualização dos anos 30 no movimento anarquista ver o artigo de Paulo Guimarães “Cercados e Perseguidos: a Confederação Geral doTrabalho (CGT) nos últimos anos do sindicalismo  revolucionário em Portugal (1926-1938)” (aqui), a tese de doutoramento de Antónia Gato "Tarrafal: resistir como promessa. O poder de transformar uma experiência de opressão numa história de grandeza" (aqui) ou, sobre a reconstituição do movimento anarquista pós 25 de Abril de 74, o artigo de Carlos Gordilho "Vestigios da vida do "outro" anarquismo em Almada" (aqui)

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18
Fev22

(Polémica) Trasladação dos mortos no Tarrafal: os velhos anarquistas consideraram que “se cumpriu o prometido aos companheiros que morreram” apesar das críticas ao aproveitamento comunista e ao frentismo anti-fascista


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A 18 de Fevereiro de 1978, quase quatro anos depois do 25 de Abril de 1974, foram trasladados para Portugal os corpos dos 32 portugueses mortos no Campo de Concentração do Tarrafal. Um grupo de anarquistas sobreviventes do Tarrafal, com destaque para Acácio Tomás Aquino, estiveram no centro desta homenagem aos antigos combatentes antifascistas, que mobilizou milhares de portugueses que acompanharam as urnas desde a Sociedade de Belas Artes, onde estiveram em câmara ardente, até ao cemitério do Alto de São João, em Lisboa. No entanto, a forma como a trasladação foi conduzida, o aproveitamento feito pelo PCP e a subalternização dos anarquistas mortos no Tarrafal, "recuperados" como instrumentos e símbolos da democracia foram criticados por outros sectores libertários, nomeadamente por elementos das gerações mais novas, que não tinham sentido na carne a violência de prisões como o Tarrafal.

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O relato desse dia e da emoção sentida pelos velhos militantes está bem patente no artigo publicado na edição de Março do jornal “Voz Anarquista” e assinado por José Francisco, um dos militantes anarquistas, dirigente da CGT,  ligados à preparação do 18 de janeiro de 1934. O longo título do artigo, de primeira página, não podia ser mais eloquente: “A homenagem prestada aos caídos no Campo de Concentração e Morte Lenta do Tarrafal não foi uma manifestação formalista – a sinceridade foi visível em todos os aspectos, naquele povo que acompanhava as urnas, emocionado e palpitando em uníssono na condenação de um passado maldito”.

Escreve depois José Francisco:

“Dando cumprimento ao voto da Organização Libertária Prisional, feito no Tarrafal, conforme “A Batalha” noticiou pelo Acácio Tomás de Aquino, voto feito em 1945, os restos mortais dos 32 revolucionários anti-fascistas, caídos e enterrados no Campo da Morte Lenta, vieram para Lisboa com honras nacionais prestadas pelo Governo de Cabo Verde. Desembarcados no aeroporto, ali ficaram para depois serem colocados em Câmara Ardente, na Sociedade Nacional de Belas Artes, onde deram entrada no passado dia 17 de Fevereiro. Foi comovente a saída das urnas da carreta funerária para a sala em que ficaram em velada até ao dia seguinte.

Companheiros que conseguiram vencer todas as violências físicas e morais, e regressar vivos do Tarrafal, aguentando até este grande dia, transportavam ao colo as pequenas urnas.

Mulheres e homens de todas as idades, que ladeavam a porta de entrada, choravam, não resistindo à comoção daquele acto.

Depositadas na sala, foi cada uma das urnas coberta com uma bandeira nacional. Coroas de flores já ali se encontravam, a marcar a homenagem de muitos que não puderam comparecer. Toda a noite se revezaram  os turnos de velada, não só dos tarrafalenses mas também de familiares e amigos, muitos amigos, velhos companheiros de luta dos 32 mortos do Tarrafal.

No dia 18, logo ao romper da manhã, começaram a afluir pessoas. Flores e mais flores. Cravos vermelhos, como o sangue derramado na luta anti-fascista. Verduras assinalando a esperança num Mundo melhor, pelo qual morreram tantos antifascistas não só no Tarrafal mas em outros pontos da África negra, principalmente em Angola e Timor, região esta onde se encontravam já deportados, muito antes do 28 de Maio de 1926. E não só esses, mas também os que morreram em Lisboa, e um pouco por todo o país, de norte a sul.

Eram 14 horas quando começaram os preparativos para a saída das urnas.

Frente à Sociedade Nacional de Belas Artes via-se já um mar de gente que a cada momento aumentava. Pedidos para deixarem livre a rua, a fim de facilitar a movimentação das carretas e dos carros de Bombeiros, eram atendidos com dificuldade.

Começam a sair as coroas de flores, em dois carros de bombeiros e um atrelado. As carretas funerárias transportavam flores em todos os sítios possíveis. Atrás do grandioso cortejo, mulheres e homens levavam mais coroas e palmas de flores, alguns com as coroas ao pescoço; cravos vermelhos eram aos milhares.

Às 15 h. o desfile inicia-se com aquela mole de gente que nem a chuva impediu que a Homenagem Nacional aos Mortos no Tarrafal atingisse o que nunca fora visto em Lisboa. Dizia uma mulher que nem o funeral do D. Carlos, nem no enterro do Presidente Sidónio Pais, vita tanta gente e tantas flores oferecidas pelo Povo de Portugal.

À medida que o cortejo passava, mais gente se incorporava nele. A chuva continuava e continuou sempre. Os que seguiam na rectaguarda tinham de marcar passo, para dar lugar aos que ladeavam ruas e avenidas.

A chegada ao cemitério do Alto de S. João, foi pelas 17,30 e já noite, ainda continuavam pessoas a chegar, sem poderem entrar no recinto. E lá ficaram os 32 anti-fascistas, mortos do Tarrafal, num Mausoléu, construído por subscrição pública, mausoléu coberto de flores em quantidade nunca vista em Lisboa (…)”

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Posições discordantes: Júlio Figueiras

No entanto, a forma como esta homenagem decorreu motivou protestos públicos de alguns sectores anarquistas, nomeadamente de Júlio Figueiras (pseudónimo de João Freire, de “A Ideia”) e do grupo “Acção Directa”.

Na mesma edição da “Voz Anarquista” (nº 29) em que José Francisco escreve o texto atrás citado, e na mesma 1ª página, o jornal publica, a menos de meia coluna, um pequeno texto de Júlio Figueiras intitulado: “Que desgosto!!!”

“Que os companheiros sobreviventes do Tarrafal, me perdõem, se não puderem compreender-me.

Foi com desgosto que segui a operação do partido comunista português que recuperou e capitalizou inteiramente em seu favor o sacrifício daqueles que sofreram e morreram no Campo do Tarrafal.

Foi com desgosto que vi tratados de «democratas» militantes operários que tão perseguidos haviam sido pela Democracia.

Foi com desgosto que vi cobertas com a bandeira do Estado Português as urnas de anarquistas que justamente pretenderam lutar contra esse mesmo Estado e implantar uma FRATERNIDADE UNIVERSAL.

Foi com desgosto que vos vi a vós no meio de tais companhias: ministros, militares, chefes de partidos.

Foi com desgosto que vi insensíveis e indiferentes a tudo isto, não poucos dos libertários que conheço.

Foi, enfim, com desgosto que me senti impotente para lançar o grito desmistificador, de dor ou de revolta.” – escreve Júlio Figueiras

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Posições discordantes: Acção Directa

Também a revista “Acção Directa” volta a este tema na sua edição nº 11, de Abril/Maio, com um desenho, na primeira página, de um esqueleto  a ser transportado por uma carreta e com a legenda: “Morto do Tarrafal de regresso à Pátria-Mãe” e, na última página, com um artigo, não assinado, intitulado: “O Tarrafal e o culto dos mortos”, em que se pode ler:

“Concluíram-se há bem pouco tempo as celebrações organizadas à volta da trasladação dos mortos do Tarrafal para o cemitério do Alto de S. João, em Lisboa. Vem, pois, muito a propósito a publicação duma recolha de textos de Albert Libertad (publicados na mesma edição da revista, nota A.) sobre o culto dos mortos, na qual é salientada a importância deste culto na manutenção da ordem social. Porém, além dessa questão de fundo, este caso dos mortos do Tarrafal tem outras implicações devido à manobra de carácter  político que desde o início presidiu à dita trasladação. Com efeito, o objectivo desta era claro: arrastar os vivos para a luta política anti-fascista através da utilização de algumas dezenas de cadáveres de indivíduos que lutaram, foram perseguidos, torturados, deportados e finalmente liquidados pela Sociedade. Também é fácil perceber que quem terá lucrado mais com esta operação foram as várias organizações políticas situadas na chamada esquerda, sobretudo o Partido Comunista Português.

Não nos admira absolutamente nada que tais organizações, sendo de carácter religioso no sentido lato (sobretudo as de ideologia marxista), com os seus mártires, os seus guias, as suas bíblias, os seus líderes (vivos), os seus homens exemplares (mortos), se empenhem constantemente em criar nos seus adeptos e nas pessoas em geral uma mentalidade de tipo religioso, um respeito devoto pela autoridade dos seus chefes, uma crença absoluta na infalibilidade das suas previsões, na inexorabilidade da realização dos seus programas; que tendo como objectivo a conquista do poder, utilizem a carne morta como mais um meio de propaganda política.

O que já nos poderia espantar é que alguns indivíduos, anarquistas ou anarco-sindicalistas, que deveriam ser por temperamento e convicção, avessos a tais manobras, tenham alinhado com essas comemorações. Na nossa opinião, a única explicação desta atitude é alguns anarquistas acharem útil a participação no movimento anti-fascista, cujo objectivo é defender a democracia e as «liberdades constitucionais», isto é, manter a actual sociedade de exploração.

Ora, para nós a democracia não é essencialmente diferente do fascismo, dado que é apenas uma outra maneira, normalmente mais eficaz, de manter a opressão e o privilégio sociais.  A democracia, ao substituir o fascismo, tem, ao fim e ao cabo, assegurado que a pirâmide social, com a sal hierarquia do topo até à base, se mantenha no essencial, para além de uma ou outra convulsão mais profunda não prevista pelos democratas. Outra coisa não tem vindo a significar a institucionalização da democracia, a legislação das liberdades, a politização (partidarização) das mentalidades desde o 25 de Abril. Que resta do entusiasmo inicial, das liberdades reais adquiridas nos meses seguintes ao 25 de Abril, da apropriação bem real que nessa altura fizeram muitas pessoas dos meios que lhes faltavam para a realização dos seus desejos, para a satisfação das suas necessidades? Nada, a não ser apertar cada vez mais o cinto e defender a Constituição e as «liberdades» democráticas.

Se queremos de facto ser livres não podemos cair no engodo de defender a democracia, apresente-se ela com os rótulos que quiser: representativa, popular ou qualquer outro. A liberdade é incompatível com qualquer forma de organização hierárquica dos indivíduos, portanto incompatível com a democracia”.

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Presos anarquistas no Tarrafal. Da esquerda para a direita na 1ª fila sentados: José Ramos, Bernardo Casaleiro Pratas; Joaquim Duarte Ferreira e Américo Fernandes. Na 2ª fila em pé: Joaquim Pedro; Custódio Costa; José Ventura Paixão: José Ricardo do Vale; António Gato Pinto e Acácio Tomás de Aquino.

*

Às vítimas do Tarrafal, por Acácio Tomás de Aquino

 

Oh excelsa poesia, chama imortal

Que de heróicos prodígios tu tens feito,

Poetisa a dor que sinto no meu peito

Que te darei um poema sem rival!

 

Dá-me de Camões, poeta genial,

A sua vocação, seu alto jeito,

P´ra escrever em verso bem perfeito,

Tudo o que se sofreu no Tarrafal!

 

Desde o baixo e vil roubo à agressão,

Do ódio figadal à vilania,

Do trabalho forçado à castração.

 

Da elevada firmeza à rebeldia

Tudo isso focaria, sem omissão,

Das mais intensas dores, à agonia.

 

Tarrafal, 9 de Setembro de 1943

(in O Segredo das Prisões Atlânticas, Regra do Jogo, 1978)

04
Jan22

MORTOS NO TARRAFAL: COMUNICADO DA CGT E DA FARP (1938)


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Este documento é um “Manifesto” datilografado com carimbo da Confederação do Trabalho de Portugal (CGT) e da Federação Anarquista da Região Portuguesa (FARP), intitulado: “Quadro Negro do Campo de Concentração de Cabo Verde / A Semana Trágica / A lista Macabra dos Mortos que Reclamam Vingança”. O manifesto refere os nomes, profissões, localidade, idade dos prisioneiros – comunistas, socialistas e libertários – detidos e falecidos sem assistência médica, na Colónia Penal, permitida pelo capitão Manuel Martins dos Reis, apodado de «tarado», e do médico assistente Esmeraldo Prata, alcunhado «o chacal», entre 20/9/1937 e 29/10/1937. Este documento destaca os primeiros 7 mortos no  Campo do Tarrafal. No total, até 1954, passaram pelo Campo 340 presos políticos portugueses, dos quais 32 morreram ali. (através de Fernando Mariano Cardeira )

******************

“QUADRO NEGRO DO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO DE CABO VERDE

A SEMANA TRÁGICA

A LISTA MACABRA DOS MORTOS QUE RECLAMAM VINGANÇA

1º – Pedro Matos Felipe, descarregador de Almada, 32 anos de idade, falecido em 20/9/37 (Libertário);

2º – Francisco José Pereira, marinheiro de Lisboa, 29 anos, falecido em 20/9/37 (Comunista);

3º Augusto Costa, vidreiro da Marinha Grande, 36 anos, falecido em 22/9/37 (Comunista);

4º – Francisco Domingos Quintas, cortador de Gaia, 48 anos de idade, falecido em 22/9/37 (Socialista);

5º – Rafael Tobias da Silva, relojoeiro de Lisboa, 27 anos, falecido em 22/9/37 (Comunista);

6º – Cândido Alves Barjas, marinheiro de Castro Verde, 27 anos, falecido em 24/9/37 (Comunista)

7º – Augusto Belchior, polidor de mármore do Porto, de 40 anos, falecido em 29/10/37 (Libertário)

Os primeiros seis camaradas faleceram, como se vê, de 20 a 24 de Setembro de 1937, e foram vítimas do criminoso abandono dos dirigentes da Colónia Penal, o ditador capitão Manuel Martins dos Reis, e o médico assistente Esmeraldo Prata.

ESTIVERAM MAIS DUM MÊS SEM ASSISTÊNCIA MÉDICA E SEM UM ÚNICO MEDICAMENTO, pois nem sequer havia um comprimido de quinino no acampamento.

Perto de duzentos homens estiveram à mercê do tempo durante a estação mais doentia de África (Agosto a Outubro). Exceptuando dois, foram todos atacados com febres de 40 a 41 graus, sendo simplesmente tratados a água, morrendo os 7 acima mencionados. O primeiro duma diarreia de sangue, sem tratamento, e os restantes quási todos da terrível perniciosa.

Está satisfeito o ódio dos carrascos desses presos indefesos, mas só em parte, porque o seu desejo era vê-los todos mortos.

É esta a bondade da civilização cristã tão enaltecida pela imprensa portuguesa e pelo doce Patriarca em todas as suas perlengas aos homens de boa vontade da grei, como o tardado Manuel Martins dos Reis e o chacal Esmeraldo Prata!

Estes santos acham, porém, tudo isto pouco, e por isso ainda querem implantar entre nós a odiosa pena capital.

PROLETARIADO PORTUGUÊS! É necessário pôr-se imediatamente um fim a estas atrocidades. Exigi sem demora a libertação dos presos, que se encontram em Cabo Verde e em todos os presídios do nosso país e colónias!

A C.G.T. e a F.A.R.P.”

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