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Memória Libertária

Documentos e Memórias da História do Movimento Libertário, Anarquista e Anarcosindicalista em Portugal

Documentos e Memórias da História do Movimento Libertário, Anarquista e Anarcosindicalista em Portugal

Memória Libertária

27
Fev23

MANUEL FRANCISCO RODRIGUES (1901 - 1977)


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               Por Maria João Dias

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Professor, filósofo e escritor, opositor à ditadura fascista do Estado Novo, viveu a violência da repressão. Passou por todas as prisões políticas até ser deportado para o Campo de Concentração do Tarrafal, onde esteve três anos e meio. É autor de diversas publicações, entre as quais “Tarrafal, aldeia da morte”, considerada um valioso testemunho sobre o sofrimento dos presos políticos.
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1. Manuel Francisco Rodrigues nasce em Lisboa, a 12 de Fevereiro de 1901, filho de Carlota da Conceição Vidal, natural de S. Domingues do Vale de Figueira (Santarém) e de António Guilherme Paula Rodrigues, carpinteiro, natural da freguesia de Santa Isabel, Lisboa, moradores na Estrada de Campolide. É inteligente, de espírito culto e inquieto. É assíduo frequentador da Biblioteca Nacional quando Jaime Cortesão é o Director. Torna-se partidário das ideias anarquistas e cristãs. A sua filosofia é libertária-ramo tolstoiano. Segue também doutrinas, crenças filosóficas e práticas de cariz místico. É defensor do vegetarianismo e particante do naturismo. Funda o "Grupo dos Filhos do Sol" com o enfermeiro Virgílio de Sousa, e colabora com a Liga- Anti-Alcoólica Operária". O seu idealismo cedo o levou às grades de uma prisão política, detido durante uma noite de contestação em Lisboa.
Com vinte e poucos anos, sai do país e, durante vinte anos, viaja 10.000 Km por toda a Europa. Vive na Noruega, Suécia, Estónia, Letônia , Lituânia, Alemanha...Na Bélgica, estuda e adquire um diploma em Filosofia, no Institut Philosophique de Bruxelles. Na Alemanha, vive na aldeia vegetariano-tolstoiana de Orienburg e participa na reunião da IV Internacional em Berlim.
Em 1936, está em Barcelona e, integrado no movimento anarquista, organiza na sua casa reuniões com outros membros de destaque do movimento. Casa com Aurora Reboredo, filha do anarquista José Rodrigues Reboredo (1891-1952). Em 1938 nasce a primeira filha do casal, Aurora. No eclodir da guerra civil espanhola, luta como voluntário contra os franquistas. É ferido e perde a visão do olho esquerdo. Refugia-se em França, atravessando os Pirenéus, e vive lá alguns anos com a família. Mas acaba por conhecer a dureza dos campos de concentração de Argelès-Sur-Mer; Saint-Cyprien e Gurs. Em dezembro de 1940, e já à espera do nascimento de mais uma filha, Maria, regressa a Portugal.
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2- Em Beirã (Marvão), a 15 de Dezembro de 1940, Manuel é detido com o sogro. Fica preso no posto da GNR até 20 de Dezembro, data em que é enviado para a cadeia do Aljube (Lisboa). Em Fevereiro de 1941, é transferido para a prisão de Caxias. Em Julho de 1941 dá entrada no Forte de Peniche, onde fica dois meses e, em 4 de Setembro de 1941, embarca para o Campo de Concentração do Tarrafal (Cabo Verde), com José Rodrigues Reboredo e outros antifascistas. Julga que é um engano, mas cedo as suas esperanças se desvanecem. Aí vai encontrar dois conhecidos: um antigo amigo dos tempos de juventude, o enfermeiro Virgílio de Sousa Coelho, que chegou ao Tarrafal a 12 de Junho de 1937 e de lá sairá apenas a 23 de Janeiro de 1946, e o operário metalúrgico José de Sousa Coelho, que deu entrada no Tarrafal a 29 de outubro de 1936 e sairá a 10 de Fevereiro de 1945. Conhece de nome apenas mais quatro ou cinco deportados. Considera que a sua prisão é um engano e uma injustiça, pois nem sequer foi julgado. Escreve cartas de apelo às autoridades civis e religiosas de então. Não obtém resposta. Apenas o castigo de conhecer durante vários dias a " frigideira".
Ao fim de 3 anos e meio de cativeiro, sem julgamento, regressa do “Campo da morte lenta” em 20 de Fevereiro de 1945 (1). Vai residir para o Porto e fica impedido de sair do país. Dedica-se à tradução e à docência. Em 1946, casa com Lucília Branca Dias, natural do Porto, professora de Educação Musical em vários liceus do Porto e Chaves. Em 1948, nasce a única filha do casal, Lucília Dias Rodrigues. Vive com a família em Matosinhos, durante alguns anos. Regressa ao Porto e vai residir para a Rua de Santa Catarina. Lecciona Filosofia e Línguas na Escola Comercial Oliveira Martins, no Liceu Nacional de Chaves, no Instituto Francês e em vários Colégios particulares. Liga-se a várias colectividades, entre as quais a Associação de Jornalistas e Homens do Porto, à Liga Portuguesa de Profilaxia Social , onde trabalhou com o Dr. António Emílio de Magalhães em vários projectos, um dos quais era acabar com o "hábito" de andar descalço. Em 1958, apoia a candidatura do General Humberto Delgado. Vai esperá-lo à estação de S.Bento, e é um dos que o carrega em ombros .
Nas décadas de 50 e 60, publica vários livros, em edição de autor, com o pseudónimo Oryam. Memórias (1950) e Cântico de Oryam contam experiências vividas por ele (3). Recebe um prémio literário pela União de Autores Latinos.
Em 1974, adoece e pouco usufrui do tempo em Liberdade. Organiza tudo o que tinha escrito, há muito, sobre o Tarrafal e a 3 de Julho, em edição de autor, finalmente pode publicar a sua obra mais importante e escondida durante décadas: "Tarrafal aldeia da morte | O diário da B5”. É um dos primeiros livros publicados sobre o campo de concentração. Trata-se de um relato na primeira pessoa, em 327 páginas, de uma obra ilustrada. Nesse ano, a obra tem mais duas edições, pela Brasília Editora (2) e recebe o Prémio Literário " 25 de Abril" para Ensaio Político, na Feira do Livro do Porto. Anuncia a publicação de mais três livros, que não chegarão ao prelo, devido ao seu estado de saúde. Mas publica ainda " Socialismo em Liberdade", em 1975.
Considerado um homem bondoso e simples, os últimos anos de vida passa-os doente e cego, mas “conservou sempre o aprumo que lhe tinham querido roubar nas prisões fascistas”. Morre no Porto, a 28 de setembro de 1977, tão anónimo e tão discreto como viveu (4).
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2 - Depoimentos:
Por Antónia Gato
«Manuel Francisco Rodrigues foi um homem extraordinário. A sua obra “Tarrafal Aldeia da Morte - o diário da B5”, é a melhor obra sobre o Campo do Tarrafal. Anarca-cristão tolstoiano, trabalhou como repórter, professor, tradutor de línguas estrangeiras e autor de várias obras literárias onde se apresenta ao público com o pseudónimo de Oryam. Integrado no movimento anarquista, casou em Espanha com a filha de José Rodrigues Reboredo e combateu como voluntário na guerra civil contra os franquistas.
Acompanhado pela família atravessou os Pirenéus e refugiou-se em França mas acabou por conhecer a dureza dos campos de concentração de Argelès-Sur-Mer; Saint-Cyprien e Gurs. Em dezembro de 1940 regressa a Portugal e, juntamente com o sogro, é detido e posteriormente deportado para o Tarrafal " -
In: Tese de Doutoramento de Antónia Maria Gato Pinto, TARRAFAL: RESISTIR COMO PROMESSA - O poder de transformar uma experiência de opressão numa história de grandeza. In: file:///C:/Users/Utilizador/Downloads/CCT.pdf
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Por Diana Cortez:
"Manuel Francisco Rodrigues era meu vizinho. Tinha uma sala cheia de livros, tantos que chegavam ao tecto. Estava cego, já não os lia... Passava os dias de sol no quintal, à sombra da japoneira e os restantes em casa a ouvir música clássica. Às vezes pedia-me que lhe lesse. Eu não entendia o que lhe lia, muito menos porque sorria quando me ouvia. Diziam ser muito inteligente mas eu não sabia porquê.
Hoje sei que era filósofo, poeta, professor e escritor, cujo pseudónimo era Oryam.
Foi perseguido por ser inteligente e ter ideais anti-fascistas, esteve detido em vários lugares, entre eles, o campo de concentração Tarrafal, onde terá vivido dias de terror."

3. Outras publicações
O Cântico de Oryam, Colecção Oryam (Nº 2) Editora: Edição do Autor, 1ª Edição, 1957, Porto – Imprensa Social Secção da Coop. do Povo Portuense.
A Ideia Venceu a Morte, Colecção Oryam (Nº 3). Edição do Autor, 1ª Edição, 1958, Porto – Tip. J. R. Gonçalves, Limitada.
Socialismo em Liberdade, 1ª ed ,1975

Notas:
(1) Chegaram ao Tarrafal sucessivas levas de presos. As primeiras ocorreram em 1936 (151 deportados) e em 1937 (57 deportados). Mais tarde, à medida que a II Guerra Mundial foi evoluindo favoravelmente para os Aliados, decresceram os números da deportação. Na sua maioria, esses presos ultrapassaram largamente as penas a que tinham sido condenados; e, por vezes, nem sequer eram julgados, funcionando o campo como um desterro sem lei, isto é, de acordo com as leis fascistas de Salazar. Em 1939 verificam-se as primeiras saídas do campo, esporádicas, mas só em 1944 se regista um movimento significativo de libertações, cerca de uma trintena. O campo, aberto em Outubro de 1936, seria fechado em 1954. Foram 36 os prisioneiros políticos que morreram no Tarrafal: 32 portugueses, 2 angolanos e 2 guineenses. Os restos mortais dos portugueses só depois do 25 de Abril puderam voltar à pátria: Em 1961, o Ministro do Ultramar Adriano Moreira reabre-o para nacionalistas africanos, com a designação de Campo de Trabalho de Chão Bom.
(2) Excertos da sua obra "Tarrafal aldeia da morte":
«Quando os primeiros deportados chegaram, encontraram pedregulhos, vento, calor e mosquitos. Então ainda não havia as casernas, nem o «Posto de Socorros», nem a cozinha, nem as oficinas. Tudo isso se fez depois. O que havia já era o arame farpado e a água do poço. Fizeram umas toscas barracas de lona e, passados alguns meses, morreram os primeiros oito reclusos... Só num dia morreram três... depois mais três... e mais dois... Os cadáveres foram transportados a pau e corda para o cemitério. Então ainda não havia o luxo da camioneta. (,,) Depois, abriu-se a pedreira e mandou-se fazer uma marreta que pesava uma arroba. Sob os raios quentíssimos do sol, os forçados arrancavam e transportavam a pedra e, em longa e interminável fileira custodiada por soldados negros, acarretavam a água do poço para as necessidades do povo da aldeia. Quando um escravo caía, vítima do paludismo mortífero, outro era imediatamente escolhido para o substituir. E, depois, como se tudo isso não bastasse, construíu-se a célebre «Frigideira»...isto é: -a antecâmara do cemitério. A «Frigideira» é um bloco de cimento, dentro do qual há um orifício onde emparedam os reclusos que caem na desgraça de não agradar aos que estabelecem as ordens.
(…) Sob a acção do sol, a temperatura vai subindo dentro do buraco... sobe... sobe... sobe!... O desgraçado ou desgraçados que lá estão vão suando... suando... até ficarem cozidos e depois assados. É claro que, submetidos a esse tratamento, morrem muito mais depressa, sobretudo quando o ingresso no buraco se faz ao som das chicotadas do cavalo- marinho rasgando as costas dos condenado, às quais se seguem os consagrados rigores do jejum periódico forçado.»
(3) Catalogado na Livraria Fernando Sanos em Filosofia, em 244 páginas e com a descrição: «10.000 kms através da Europa. – A aldeia vegetariano-tolstoiana de Orienburg. – A lição dos Três Profetas na maravilha nevada do Wildhorn sobre o Homem e o Universo. – O país do sol da meia-noite, o acampamento de Krishnamurti e o ocaso de Viena de Áustria. – Franz Korscnher e Stefan Zweig. – A Academia de Estudos filosóficos fundada por Anakreon no oásis grego de Zágora».
(4) «Quando o conheci era um velho no limite da resistência humana, deixara em vários cativeiros o vigor, a força e a vontade férrea que sempre o tinham animado. (…) Da vida que dedicou à Paz no mundo restam apenas, além dos seus livros, recordações mais ou menos vagas daqueles que o conheceram. (…) Se continuarmos assim, esquecendo ou minimizando, de ânimo leve, Homens de tal envergadura, o “dia em que soará na terra a hora da fraternidade, da Paz justa e sincera” estará cada vez mais longe e, em breve, estaremos de novo envoltos nessa paz podre e vergonhosa de que tão dificilmente nos libertámos» - Sílvia Barata Gonçalves da Silva (Rio Tinto) em “Tribuna Livre”, 27 Maio 1979.
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Fontes:
- ANTT Registo Geral dos Presos nº 12946
https://www.livrariafernandosantos.com/.../memorias-de.../
http://im-parcial.blogspot.com/.../tarrafal-aldeia-da...
https://seculopassadolivros.com/.../a-ideia-venceu-a.../
http://media.diariocoimbra.pt/.../55b02a81-e5dc-469e-9676...;
https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4820829
- Tribuna Livre (secção de jornal não identificado) – artigo de Sílvia Barata Gonçalves da Siva, em homenagem a Manuel Francisco Rodrigues
- Correspondência de MFR com leitores das suas obras.
Informações da filha, Lucília Dias Rodrigues, Diana Cortez e da investigadora Antónia Gato Pinto. 

aqui: https://www.facebook.com/FascismoNuncaMais/photos/a.559109110865139/2332024566906909/

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28
Out22

Carta/comunicado de José Correia Pires e José Rodrigues Reboredo aos seus camaradas da OLP, ao deixarem o Tarrafal em 1945 , sobre a unidade entre os anarquistas


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Ficha prisional de José Correia Pires 

https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4285647

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José Correia Pires foi libertado do Tarrafal 8 anos depois de ali ter chegado, sem julgamento. Em fevereiro de 1945, quando as autoridades carcerárias o informaram de que ia ser libertado em breve, com o seu também companheiro libertário José Rodrigues Reboredo (que esteve cerca de 3,5 anos no Tarrafal depois de uma vida de exilio, que o levou a Espanha e a França, onde conheceu os campos de concentração do fascismo), decidiram escrever uma carta de despedida aos seus companheiros da Organização Libertária do Campo do Tarrafal.

Nesta carta, que faz parte do espólio deixado pelo também libertário e tarrafalista António Gato Pinto, Correia Pires e Rodrigues Reboredo apelam à unidade de "sindicalistas, anarco-sindicalistas e anarquistas" para preservarem intacta a CGT, fundamental para "o triunfo dos sublimes ideais de emancipação humana por que lutamos", e  impedindo que ela e "A Batalha"  fossem "tomadas" pelos comunistas que, na altura, depois da reorganização partidária de 1940/41 e do fim da II Guerra Mundial gozavam de prestígio e apoio. Para os autores da missiva "separados os sindicalistas dos anarquistas ou os anarquistas dos sindicalistas, o nosso Movimento será absorvido pelos comunistas, pois todas as suas propostas de unidade e colaboração, por mais amigos e sinceros que se mostrem, não visam mais que um fim: o desaparecimento do nosso Movimento, para os comunistas estabelecerem o seu predomínio."

Para isso é fundamental a união e o companheirismo entre os libertários, mesmo que com opiniões diversas, uma vez que "desde (há) longos anos que combatemos juntos pela mesma causa, desde há muito tempo que o nosso sangue se verte na rua em conjunto, nas barricadas e em todos os locais de luta, morrendo lado a lado, varados pelas mesmas balas assassinas das hostes mercenárias da Burguesia ou abatidos traiçoeiramente pelas febres e outras doenças do clima tropical e doentio das regiões inóspitas da África, de Timor ou do maldito Tarrafal, mil vezes maldito pelas vítimas produzidas entre os nossos camaradas" referem os dois anarquistas no momento de deixarem o Tarrafal.

É essa carta/comunicado que a seguir se publica no dia em se assinalam os 46 anos da morte de José Correia Pires.

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(1945), "A todos os componentes da Organização Libertária do Campo do Tarrafal", Fundação Mário Soares / António Gato Pinto, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_160528 .  Cópia manuscrita de comunicado de José Rodrigues Reboredo e de José Correia Pires aos membros da Organização Libertária do Campo do Tarrafal, no momento da sua saída do campo. Fevereiro de 1945. 3 páginas.

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A todos os componentes da organização Libertária do Campo do Tarrafal

Prezados camaradas:

É costume  corrente quando mudamos de localidade ou de país, despedirmo-nos dos nossos parentes, dos nossos amigos e todas as pessoas, enfim a quem nos sentimos ligados por laços de família, de amizade ou de companheirismo.

Ora, se é certo que há costumes que tendem a desaparecer por erróneos ou caricatos, o dever de cortesia, é crença nossa, perdurará pelas idades fora, porque tem um fundo humano, constitui uma prova dos instintos de sociabilidade do homem e, por consequência, corresponde  a uma necessidade social.

Sendo assim, nós, ao deixarmos o Tarrafal faltaríamos a um dos mais elementares preceitos de civilidade, se não cumpríssemos o dever de nos despedirmos de todo os camaradas que compõem a nossa organização, aqui no campo.

É esse, pois, o motivo porque resolvemos dirigir-vos as presentes linhas como motivo da nossa despedida.

Certamente que poderíamos cumprir este dever indo pessoalmente junto de cada camarada.

Mas todos vós sabeis o que se passa aqui, no campo, quando estamos para sairmos. Em primeiro lugar não sabemos o dia nem a hora a que somos chamados e, quando nos chamam, não nos permitem mais falas com quer que seja. Em segundo lugar, uma despedida antecipada, não só perde o seu verdadeiro significado, como arrisca-nos a cair no rídiculo se a nossa saída se não realizar por qualquer motivo imprevisto.

Ponderadas, pois, todas estas circunstâncias optámos, antes, por dirigir-vos algumas linhas por escrito, como afirmação do nosso sincero espírito de solidariedade para com todos vós, linhas em que sintetizamos alguns pontos do nosso pensamento, neste momento de separação das nossas pessoas.

Ao deixarmos este maldito Tarrafal, mil vezes maldito pelos imensos sofrimentos nele padecidos por todos os nossos camaradas, alguns dos quais aqui encontraram a negra morte – camaradas para os quais vai, neste instante da nossa partida, a nossa mais comovida homenagem -, nós queremos que vós nitidamente saibais que, não obstante a diferença de critérios, talvez, entre nós existentes quanto a alguns problemas da nossa organização, não obstante, porventura, (d)a diferença de ideias que entre nós possa haver quanto à solução do problema social e humano, nós partimos deste campo mantendo para convosco a máxima estima e consideração, sentindo-nos ligados pelos laços da mais fraternal camaradagem, estabelecida e mantida sobre a égide da C.G.T. e da Organização Específica, Organismos, certamente, que todos nós desejamos ver fortes e engrandecidos, com uma extensão cada vez maior e mais rica em resultados concernentes ao triunfo dos sublimes ideais de emancipação humana por que lutamos.

Falamos assim porque estamos absolutamente convencidos de que todos desejamos atingir o mesmo fim: realizarmos a transformação social e estabelecermos um sistema de vida que assegure à classe trabalhadora, a todos os homens, a garantia dos direitos que lhe são devidos por direito próprio e condição natural.

Porque pensamos desta forma, entendemos que era nosso dever neste momento de separação (decerto breve) dar-vos conta da nossa incondicional solidariedade hoje, e amanhã, lá fora, em qualquer parte [em] que nos encontremos, dentro dos organismos acima indicados.

Podeis estar certos que encontrareis sempre em nós o melhor dos desejos, a maior boa vontade e o máximo interesse de contribuir, tanto quanto possível, para a união da família Libertária. Entendemos sempre e continuamos a manter o mesmo critério de que todas as opiniões são respeitáveis, todos os juízos devem ser tomados em consideração e todas as ideias devem ser ouvidas dentro das nossas organizações.

O que é necessário é que respeitando-se precisamente este princípio, cada um respeite a opinião dos demais e haja a maior elevação possível na exposição das ideias e conceitos, buscando-se uma solução conciliadora, sempre que surjam critérios diferentes acerca dos problemas em causa.

Dentro desta orientação, possivelmente, (que) chegaremos em todas as ocasiões a um bom e franco entendimento e observar-se-á a harmonia e a confiança necessárias para continuarmos a lutar juntos contra o inimigo comum.

Permiti-nos, camaradas, dizer-vos com toda a sinceridade: qualquer rompimento entre nós representaria um perigo gravíssimo para o nosso Movimento. Seria a destruição de todo o labor realizado com tanto sacrifício, através de longos anos dos nossos camaradas, seria a perda de milhares de esforços que foi necessário despender para levar a cabo a nossa organização.

A desunião entre nós não pode produzir mais que o enfraquecimento imediato da nossa querida C.G.T., ocasionando que, no futuro, essa seja tomada pelos nossos adversários.

Haja em vista, camaradas, o que se passou em França com o Movimento Operário que, fracionando-se, tinha três C.G.T.!

Sindicalistas neutros, anarco-sindicalistas e anarquistas, todos unidos e lutando dentro de uma só C.G.T., representam uma força poderosa no nosso país – a única que pode garantir confiança às massas -, podem fazer-se respeitar pelas outras correntes, impedindo que estas se apoderem da C.G.T., e podem vantajosamente sustentar a luta contra a burguesia.

Separados os sindicalistas dos anarquistas ou os anarquistas dos sindicalistas, o nosso Movimento será absorvido pelos comunistas, pois todas as suas propostas de unidade e colaboração, por mais amigos e sinceros que se mostrem, não visam mais que um fim: o desaparecimento do nosso Movimento, para os comunistas estabelecerem o seu predomínio.

É este, camaradas, o panorama que se oferece neste momento à nossa Organização Confederal.

Através desta simples anunciação se pode ver o enormíssimo perigo que representa uma rutura no nosso Movimento – o Movimento Libertário –, ou seja dentro da C.G.T., mal já agravado com a criação da célebre Comissão Inter-sindical e outras dissenções anteriores.

Em face de tudo isto, camaradas, afigura-se-nos que devemos congregar todos os esforços para que esse perigo desapareça. É preciso conjugarmos todas as nossas energias para que os nossos adversários não possam amanhã apoderar-se da C.G.T. e do nosso jornal “A Batalha”, valendo-se da nossa desunião. Alerta, camaradas. Alerta, que o adversário é activo, tenaz e inteligente. Não é de estranhar que ele busque os meios para estabelecer um choque entre nós. Dividir para reinar! Eis a máxima de todos que pretendem vencer para estabelecerem o seu reinado.

Pensemos, pois, seriamente na responsabilidade que pesa sobre os nossos ombros, se contribuíssemos, porventura, para uma cisão entre nós.

Desde longos anos que combatemos juntos pela mesma causa, desde há muito tempo que o nosso sangue se verte na rua em conjunto, nas barricadas e em todos os locais de luta, morrendo lado a lado, varados pelas mesmas balas assassinas das hostes mercenárias da Burguesia ou abatidos traiçoeiramente pelas febres e outras doenças do clima tropical e doentio das regiões inóspitas da África, de Timor ou do maldito Tarrafal, mil vezes maldito pelas vítimas produzidas entre os nossos camaradas.

Pois bem! Evitemos romper essa união consagrada por tantos anos de luta em conjunto, essa união cimentada sobre tantas dores e tanto sangue vertido! Continuemos irmanados e identifiquemos mais, se é possível, ainda os nossos propósitos de união. Dentro da C.G.T. há lugar para todos desenvolverem a sua actividade e darem expansão ao seu saber e à sua capacidade construtiva e revolucionária. Que é necessário dar mais amplitude à C.G.T.  para que ela possa estar à altura das circunstâncias? Nisso estamos todos de acordo. Unamo-nos, pois, para que isso se faça, para que a C.G.T. viva e se torne cada vez maior, realizando a missão histórica que lhe cabe na obra de transformação económica-social da classe trabalhadora no nosso país. É este o nosso pensamento, neste momento, camaradas. E fiéis a ele, partimos de aqui absolutamente convictos de que amanhã, dentro da C.G.T., não surgirão quaisquer motivos que nos possam separar, tanto na luta pela realização dos nossos ideais, como na luta contra o sistema capitalista.

Partimos de aqui desejosos de contribuir o mais possível para a nossa união. Não alimentamos quaisquer ressentimentos que, porventura, possam impedir a mais estreita e leal colaboração entre todos nós em relação aos futuros trabalhos dentro do nosso Movimento.

São estes, camaradas, os propósitos que nos animam ao sairmos de aqui e que vos fazer conhecer neste momento da nossa despedida do Tarrafal. Recebei, camaradas, as nossas mais fraternais saudações, vossos e da causa, Tarrafal Fevereiro 1945

a) José R. R. e J. C P

(Actualizados vocabulário e pontuação do texto)

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Ficha prisional de José Rodrigues Reboredo

https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4293448