Entrevista a Manuel Ricardo de Sousa e Herculano Lapa
Esta micro-história da livraria Utopia, um facto absolutamente marginal e periférico, só comprova que algumas coisas podem acontecer, e acontecem, nos interstícios do Sistema sem terem sequer, e muitas vezes não querendo ter, visibilidade, mesmo que nesta sociedade contemporânea haja a pretensão totalitária de só legitimar como existente o que se deixa ver.
A Utopia cumpre agora 40 anos, muito tempo e muitas histórias. Contem-nos um pouco como chegaram as vossas vidas à formação da Utopia, e em que ambiente foi possível germinar um projecto de afinidades libertárias num momento histórico dominado ainda por tendências autoritárias da esquerda?
Manuel Ricardo de Sousa – A ideia de abrir uma livraria alternativa no Porto, numa época em que outras já tinham encerrado, como a Erva Daninha e a Contra-a-Corrente, deve-se em parte ao facto de ter rompido com as FP25 e termos decidido, eu e a minha companheira, mudar-nos para o Porto, onde já tinha relações com companheiros anarquistas de Vila do Conde. Também influenciou o facto de estarmos ligados à histórica editora Centelha, de Coimbra, onde na época editámos livros como A Europa da Repressão ou a Insegurança do Estado, Uma Campanha de Salubridade de Júlio Carrapato e A Anarquia Perante os Tribunais de Pietro Gori, em grande parte sustentada pelo entusiasmo militante do advogado e cooperativista Sobral Martins. Curiosamente nessa pequena vila de pescadores surgira um activo núcleo de libertários resultante das relações dos irmãos Veiga (Joaquim, recentemente falecido, e Armando, um dos organizadores dos acampamentos anarquistas em Izeda). Após Joaquim se ter exilado em França, através dele começaram a chegar as ideias anarquistas a jovens trabalhadores da vila, o que gerou esse núcleo que apareceu após o 25 de Abril e nunca desapareceu, ao contrário do que ocorreu noutras cidades. Foi com esses companheiros que em grande medida se desenvolveu a ideia da livraria Utopia e vários deles estiveram envolvidos nas obras de adaptação do espaço. Quem também colaborou foi o Karpov, que conhecia do Grupo Anti-militarista e Ecológico da AAC e do activismo anarquista em Coimbra, e que nesse momento estava a tirar no Porto um curso de formação profissional de pedreiro. Quando abrimos já o ambiente radical da cidade estava em desagregação, na ressaca da estabilização política, e diversos militantes que tinham participado em grupos de extrema-esquerda, em particular do «Grito do Povo», que teve relevância no Porto e no Norte no pós-25 de Abril, tinham rompido com o leninismo, alguns aproximando-se de posições libertárias
À volta da Utopia acabou por reunir-se um grupo diverso de pessoas. Que projectos, actividades e publicações nasceram entre aquelas estantes repletas de livros?
MRS – Sendo um espaço um pouco periférico na geografia comercial — e sendo reduzido o ambiente libertário e alternativo da cidade, como o é ainda hoje — que já estava vendida à lógica da reestruturação capitalista, e com a militância esquerdista a reciclar-se, a vida não era fácil para uma livraria como a Utopia. Também não tínhamos espaço para actividades, exceptuando pequenos encontros de algumas pessoas, mas fomos resistindo — quer como Utopia, quer como Grupo Germinal de Vila do Conde, que era constituído pelo Lano, Ramiro, Quim, Gena e eu — acompanhando as iniciativas dos grupos libertários, principalmente dos companheiros de Coimbra e Leiria, os encontros, campanhas, conferências, acampamentos que se foram realizando. Um pouco à margem do que se passava em Lisboa, com todos os seus conflitos, onde só íamos irregularmente e com pouso certo na Bica, na casa do velho peixeiro e anarquista heterodoxo Zé de Brito. Na Utopia começaram a aparecer, aos poucos, alguns companheiros com os quais não tínhamos ainda contacto regular como o Paiva, a Fany, o António, o agitador da contracultura tripeira, e o restante grupo da Rádio Caos, o Alvão e o Figueiredo, entre outros, além dos curiosos clientes de livros usados, que são uma fauna muito particular que frequenta esses espaços e sente ao longe o cheiro de livro velho. Não havia muitos livros mas tínhamos os suficientes, além das publicações anarquistas da época e fanzines, que marcavam a diferença…
Manifesto do grupo Anarquista”O Geminal” de Vila do Conde, onde após o 25 de Abril surgiu um activo núcleo de libertários no qual viria a desenvolver-se a ideia de abertura da livraria Utopia.
Tendo a Utopia sido inaugurada no período de normalização democrática e entrada na sociedade de consumo, mas onde a luta armada ainda era uma realidade na luta anti-capitalista tanto em Portugal como em Espanha, de que forma o colectivo de pessoas que girava à volta da Utopia, foi fundamental no apoio a companheiros e companheiras que mantinham actividades ilegais?
MRS – É necessário ter presente que ainda não tinha ocorrido todo o processo de «normalização» política, nem sequer a sociedade de consumo estava ainda instalada, só com a adesão à CEE esse ciclo se começa a fechar no final dos anos 80, início dos 90. Mantínhamos então contactos frequentes com companheiros do estado espanhol e foi através deles que mais tarde, Luís Andrés Edo, um histórico militante anarquista catalão do pós-guerra, já falecido, nos faria chegar o pedido de apoio a companheiros libertários em fuga. Pela Utopia passariam, entre outros, Alberto e Conchita, ele escapado da prisão numa das mais espectaculares e curiosas fugas ocorridas em Espanha nos anos 80, quando trocou de lugar na prisão com o seu irmão gémeo. Acabariam indo para a Nicarágua e para o México, só voltando à Catalunha muitos anos mais tarde. Esses companheiros e outros ligados aos Comandos Autónomas Anti-Capitalistas, bem como à COPEL, o Manolo e a Iza, que eram maioritariamente libertários, mas à margem das organizações históricas CNT/FAI, seriam alguns dos que foram apoiados nessa rede ilegal e informal de afinidades libertárias. Mas também companheiros portugueses com problemas legais. Foi nessa época que conheci, nas idas a Espanha e a França, entre outros, Abraham Guillén, Octávio Alberola, Ariane Gransac, António Tellez, Abel Paz, activos militantes espanhóis da geração pós-Guerra Civil envolvidos na resistência anti-franquista. Era a geração de «transição», embora muito ligada ainda à Guerra Civil, mas que tinha após os anos 60 tentado através das Juventudes Libertárias e da acção directa, dar uma nova vida ao activismo revolucionário anarquista. Activismo que continuou, ainda pelos anos 70, com diversos grupos em Espanha, França e Itália, e que obviamente ainda se prolongou na geração seguinte.
Como se dá já nos anos 80 a tua saída da Utopia e o Lano assume a responsabilidade da livraria?
MRS – Pelas razões já referidas do meu envolvimento na fase inicial das FP 25, assunto sobre o qual já escrevi e não vale a pena aprofundar, e a passagem de diversos companheiros com problemas legais pelo nosso espaço, mas principalmente pela denúncia de um bufo, a Utopia foi colocada sob observação pelos homens da DCCB. Quando se tornou evidente essa vigilância e que a qualquer momento iriam ocorrer prisões, eu e a minha companheira abandonámos a livraria e a cidade. Mas, apesar de tudo, era importante que a livraria continuasse a funcionar independentemente deste acidente de percurso. Herculano que desde sempre era um trabalhador assalariado com pouca vontade de o ser, mostrou-se disponível para assumir a Utopia até porque a polícia nunca teve nada de concreto contra a livraria para lá do cheiro a esturro que o seu faro apurado sempre é capaz de detectar. Por sorte nossa, e azar deles, também não nos conseguiu então prender pelo que o máximo que podiam fazer era manter a livraria sob vigilância e escutas. Tudo ficou na obscuridade do jogo do rato e do gato, não chegando ao espectáculo jornalístico. Mais tarde, ocorreria a minha prisão, mas já em Coimbra, e logo em seguida, a fuga colectiva da EPL. Após isso nos meses seguintes sabendo que as opções eram escassas neste pequeno país, e que mais dia, menos dia, iria voltar a ser preso, decidimos sair para o estrangeiro. Antes disso tivemos um encontro com os companheiros de Vila do Conde em que discutimos com o Herculano a continuidade da livraria pois sabia que pelo menos por dez ou quinze anos, na melhor das hipóteses, não poderia voltar a viver em Portugal. É a partir daí que o Herculano assume integralmente os rumos desse espaço alternativo do Porto demonstrando uma capacidade de resistência notável nas décadas seguintes, conseguindo fazer sobreviver a Utopia a todas as adversidades sociais, económicas e livreiras. Mesmo sabendo que teria uma vida mais tranquila, e acomodada, na condição de predestinado à vida de assalariado.
Nos anos seguintes quais foram as principais actividades na área libertária em que a Utopia esteve envolvida? Quais foram as relações com os grupos jovens informais que publicavam fanzines e com o colectivo Inquietação do Porto e com a revista Utopia?
Herculano Lapa – Quando fiquei na Utopia, os contactos regulares foram ainda com as pessoas ligadas à Rádio Caos, que emitia a partir da Praça da República aqui ao lado da Utopia. Nesta rádio, que vivia em plena autogestão até ao momento em que foi silenciada pela lei do audiovisual, foi possível participar com estreita colaboração em programas, através de entrevistas, partilha de livros e revistas, alguns deles emitidos a partir da Utopia. No campo das edições continuamos continuámos a colaborar com a Centelha/Fora do Texto, nesse período pertenciam também ao colectivo da Centelha, o Chico, o Karpov e o Zé Tavares, até ao seu desaparecimento com a morte de Sobral Martins. Foram editados nesse período livros como À Tribo dos Irrecuperáveis, Guerrilha no Asfalto e A Resistência do Índio à Dominação do Brasil, um livro de Jorge Valadas e outro do João Bernardo para falar de alguns dos mais interessantes. Uma das apresentações interessantes que fizemos foi o de uma nova edição do Discurso sobre o Filho da Puta de Alberto Pimenta, que o autor dedicou à URSS-EUA e foi um momento marcante, como sempre acontecia com as perfomances do Pimenta. A publicação de fanzines de música, pequenos contos, poesia e política, fazia aparecer ainda alguns jovens com curiosidade e gosto pela leitura dessas publicações, um dos quais, o Noé, passou a colaborar regularmente com a livraria. Num período tivemos também discos e cassetes de música punk e literatura libertária vinda de Inglaterra e Estados Unidos, que o João encomendava para distribuir na sua distribuidora, Confronto. No final dos anos 80 foi possível com jovens companheiros libertários, organizar debates contra as comemorações dos «descobrimentos», onde denunciámos o roubo e massacre das populações indígenas e o tráfico de escravos, todo o lado sombrio da nossa história. Nesta campanha contra a expansão portuguesa, colaboramos com o MAR – movimento anti-racista, anticolonialista, antí-nacionalista, e distribuímos o seu Boletim que denunciava a história colonial portuguesa. Com o César Figueiredo e o Germinal organizámos uma exposição de Mail Art internacional, que esteve em exposição em Vila do Conde onde se debateu «os encobrimentos», com a colaboração do Júlio Henriques, também companheiro nosso na Centelha, que agora edita a revista Flauta de Luz. Com o Paiva fui participando em diferentes actividades sobre o anarquismo; com o Luis Chambel participei no Inquietação. Este colectivo que durou mais de uma década era composto por algumas pessoas mais próximas da extrema-esquerda mas também alguns libertários, lembro do Rui Ribeiro agora editor em Lisboa e o Paulo Esperança, nessa altura os debates mais apaixonantes foram a desmontar as eleições e o vanguardismo como herança do marxismo-leninismo! Destas experiências nasceram as Jornadas Libertárias do Porto e as Feiras do Livro Anarquistas na cidade.
Uma campanha de salubridade de Júlio Carrapato, A anarquia perante os tribunais de Pietro Gori e Resistência do índio à dominação do Brasil de Luiz Luna, são algumas das ediçōes da Centelha/Fora de Texto, uma editora intimamente ligada à livraria Utopia.
Houve encontros e tentativas associativas dos meios libertários nesse período?
HL – Nos finais dos 80 e no começo dos anos 90 foram-se criando condições para uma maior aproximação e cooperação nos meios libertários em Portugal, superando alguns problemas da década anterior, talvez porque começava a ficar claro a pouca actividade individual e dos grupos dos anos anteriores. Foi assim que nasceu a Associação Cultural a Vida, da qual fui um dos fundadores, em 1995, que editou a Revista Utopia até e reuniu companheiros provenientes de diversos grupos e publicações da geração pós-25 de Abril, constituindo o colectivo mais diversificado que até então se tinha reunido. Com o Germinal distribuímos a revista pelo norte do país, com a associação participei no Acampamento Libertário de Izeda em 1997, onde mais uma vez o Armando Veiga foi fundamental, e que teve uma participação significativa. Esta iniciativa chegou a ter destaque mediático. Foi pena que o impulso resultante desse acampamento, onde surgiram novos companheiros e companheiras, não tenha sido aproveitado pelo movimento libertário para se consolidar no aspecto associativo.
Como conseguiu a Utopia sobreviver nesta fase recente, com a crise geral na área do livro e a pressão da turistificação da cidade do Porto. E como tem participado — ou se tem relacionado — com as diversas lutas que têm surgido nos últimos anos na cidade?
HL – A certa altura pensava-se que os meios digitais iriam liquidar o livro impresso e pôr fim à importância do livro, mas isso não veio a acontecer, pelo menos da forma que alguns imaginavam. O livro em papel continua, apesar de tudo, a ter uma relevante função cultural e, hoje, com pouco dinheiro podem encontrar-se obras interessantes nas livraria e alfarrabistas! No entanto, o maior problema das livrarias independentes, principalmente das alternativas como a Utopia, continua a ser conseguir que os leitores as continuem a frequentar, em vez de comprarem livros nas grandes cadeias e nas «Amazons»…
No que se refere ao impacto do turismo, basicamente tem estado a retirar as pessoas da cidade, a pandemia abrandou essa vertigem especulativa, mas os próximos anos vão indicar para onde caminhamos. Se tudo se vier a acentuar, as cidades como o Porto e Lisboa, vão ficar para as classes média e alta portuguesa e estrangeira, afastando os cidadãos comuns das cidades, principalmente os jovens e os velhos. Por isso mesmo as lutas pela habitação e em defesa do direito à cidade são das que estão mais na ordem do dia neste país, principalmente se integradas na crítica às ideias dominantes de desenvolvimento e progresso.
É necessário referir que apesar de tudo foram aparecendo diversos espaços de afinidade libertária na cidade, do Terra Viva, dedicado há muitos anos à ecologia social, à Casa Viva, já desaparecida, espaço ocupado autogestionário, onde se fez um dos últimos grandes encontros libertários, ao Musas e ao Gato Vadio, cada um com a sua forma e filosofia própria. Não esquecendo os mais recentes com a Gralha e o Maldatesta ou experiências únicas na sua mobilização como a da Es.col.A da Fontinha.
Mas a Utopia manteve-se como o único espaço exclusivamente livreiro, evidentemente falando do Porto, em Coimbra e depois em Lisboa o Zé Tavares teve a Crise Luxuosa, com todas as dificuldades associadas a esse facto. Termino dizendo que não sei quantos mais anos a Utopia irá sobreviver mas até lá reafirmo que é um espaço aberto a todos os leitores, principalmente aos que connosco têm mais afinidades, aqui sempre poderão trocar ideias e comprar algum livro que não irão encontrar nas grandes livrarias comerciais…
Artigo publicado no JornalMapa, edição #34, Maio|Julho 2022.
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