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Memória Libertária

Documentos e Memórias da História do Movimento Libertário, Anarquista e Anarcosindicalista em Portugal

Documentos e Memórias da História do Movimento Libertário, Anarquista e Anarcosindicalista em Portugal

Memória Libertária

18
Fev22

(Polémica) Trasladação dos mortos no Tarrafal: os velhos anarquistas consideraram que “se cumpriu o prometido aos companheiros que morreram” apesar das críticas ao aproveitamento comunista e ao frentismo anti-fascista


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A 18 de Fevereiro de 1978, quase quatro anos depois do 25 de Abril de 1974, foram trasladados para Portugal os corpos dos 32 portugueses mortos no Campo de Concentração do Tarrafal. Um grupo de anarquistas sobreviventes do Tarrafal, com destaque para Acácio Tomás Aquino, estiveram no centro desta homenagem aos antigos combatentes antifascistas, que mobilizou milhares de portugueses que acompanharam as urnas desde a Sociedade de Belas Artes, onde estiveram em câmara ardente, até ao cemitério do Alto de São João, em Lisboa. No entanto, a forma como a trasladação foi conduzida, o aproveitamento feito pelo PCP e a subalternização dos anarquistas mortos no Tarrafal, "recuperados" como instrumentos e símbolos da democracia foram criticados por outros sectores libertários, nomeadamente por elementos das gerações mais novas, que não tinham sentido na carne a violência de prisões como o Tarrafal.

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O relato desse dia e da emoção sentida pelos velhos militantes está bem patente no artigo publicado na edição de Março do jornal “Voz Anarquista” e assinado por José Francisco, um dos militantes anarquistas, dirigente da CGT,  ligados à preparação do 18 de janeiro de 1934. O longo título do artigo, de primeira página, não podia ser mais eloquente: “A homenagem prestada aos caídos no Campo de Concentração e Morte Lenta do Tarrafal não foi uma manifestação formalista – a sinceridade foi visível em todos os aspectos, naquele povo que acompanhava as urnas, emocionado e palpitando em uníssono na condenação de um passado maldito”.

Escreve depois José Francisco:

“Dando cumprimento ao voto da Organização Libertária Prisional, feito no Tarrafal, conforme “A Batalha” noticiou pelo Acácio Tomás de Aquino, voto feito em 1945, os restos mortais dos 32 revolucionários anti-fascistas, caídos e enterrados no Campo da Morte Lenta, vieram para Lisboa com honras nacionais prestadas pelo Governo de Cabo Verde. Desembarcados no aeroporto, ali ficaram para depois serem colocados em Câmara Ardente, na Sociedade Nacional de Belas Artes, onde deram entrada no passado dia 17 de Fevereiro. Foi comovente a saída das urnas da carreta funerária para a sala em que ficaram em velada até ao dia seguinte.

Companheiros que conseguiram vencer todas as violências físicas e morais, e regressar vivos do Tarrafal, aguentando até este grande dia, transportavam ao colo as pequenas urnas.

Mulheres e homens de todas as idades, que ladeavam a porta de entrada, choravam, não resistindo à comoção daquele acto.

Depositadas na sala, foi cada uma das urnas coberta com uma bandeira nacional. Coroas de flores já ali se encontravam, a marcar a homenagem de muitos que não puderam comparecer. Toda a noite se revezaram  os turnos de velada, não só dos tarrafalenses mas também de familiares e amigos, muitos amigos, velhos companheiros de luta dos 32 mortos do Tarrafal.

No dia 18, logo ao romper da manhã, começaram a afluir pessoas. Flores e mais flores. Cravos vermelhos, como o sangue derramado na luta anti-fascista. Verduras assinalando a esperança num Mundo melhor, pelo qual morreram tantos antifascistas não só no Tarrafal mas em outros pontos da África negra, principalmente em Angola e Timor, região esta onde se encontravam já deportados, muito antes do 28 de Maio de 1926. E não só esses, mas também os que morreram em Lisboa, e um pouco por todo o país, de norte a sul.

Eram 14 horas quando começaram os preparativos para a saída das urnas.

Frente à Sociedade Nacional de Belas Artes via-se já um mar de gente que a cada momento aumentava. Pedidos para deixarem livre a rua, a fim de facilitar a movimentação das carretas e dos carros de Bombeiros, eram atendidos com dificuldade.

Começam a sair as coroas de flores, em dois carros de bombeiros e um atrelado. As carretas funerárias transportavam flores em todos os sítios possíveis. Atrás do grandioso cortejo, mulheres e homens levavam mais coroas e palmas de flores, alguns com as coroas ao pescoço; cravos vermelhos eram aos milhares.

Às 15 h. o desfile inicia-se com aquela mole de gente que nem a chuva impediu que a Homenagem Nacional aos Mortos no Tarrafal atingisse o que nunca fora visto em Lisboa. Dizia uma mulher que nem o funeral do D. Carlos, nem no enterro do Presidente Sidónio Pais, vita tanta gente e tantas flores oferecidas pelo Povo de Portugal.

À medida que o cortejo passava, mais gente se incorporava nele. A chuva continuava e continuou sempre. Os que seguiam na rectaguarda tinham de marcar passo, para dar lugar aos que ladeavam ruas e avenidas.

A chegada ao cemitério do Alto de S. João, foi pelas 17,30 e já noite, ainda continuavam pessoas a chegar, sem poderem entrar no recinto. E lá ficaram os 32 anti-fascistas, mortos do Tarrafal, num Mausoléu, construído por subscrição pública, mausoléu coberto de flores em quantidade nunca vista em Lisboa (…)”

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Posições discordantes: Júlio Figueiras

No entanto, a forma como esta homenagem decorreu motivou protestos públicos de alguns sectores anarquistas, nomeadamente de Júlio Figueiras (pseudónimo de João Freire, de “A Ideia”) e do grupo “Acção Directa”.

Na mesma edição da “Voz Anarquista” (nº 29) em que José Francisco escreve o texto atrás citado, e na mesma 1ª página, o jornal publica, a menos de meia coluna, um pequeno texto de Júlio Figueiras intitulado: “Que desgosto!!!”

“Que os companheiros sobreviventes do Tarrafal, me perdõem, se não puderem compreender-me.

Foi com desgosto que segui a operação do partido comunista português que recuperou e capitalizou inteiramente em seu favor o sacrifício daqueles que sofreram e morreram no Campo do Tarrafal.

Foi com desgosto que vi tratados de «democratas» militantes operários que tão perseguidos haviam sido pela Democracia.

Foi com desgosto que vi cobertas com a bandeira do Estado Português as urnas de anarquistas que justamente pretenderam lutar contra esse mesmo Estado e implantar uma FRATERNIDADE UNIVERSAL.

Foi com desgosto que vos vi a vós no meio de tais companhias: ministros, militares, chefes de partidos.

Foi com desgosto que vi insensíveis e indiferentes a tudo isto, não poucos dos libertários que conheço.

Foi, enfim, com desgosto que me senti impotente para lançar o grito desmistificador, de dor ou de revolta.” – escreve Júlio Figueiras

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Posições discordantes: Acção Directa

Também a revista “Acção Directa” volta a este tema na sua edição nº 11, de Abril/Maio, com um desenho, na primeira página, de um esqueleto  a ser transportado por uma carreta e com a legenda: “Morto do Tarrafal de regresso à Pátria-Mãe” e, na última página, com um artigo, não assinado, intitulado: “O Tarrafal e o culto dos mortos”, em que se pode ler:

“Concluíram-se há bem pouco tempo as celebrações organizadas à volta da trasladação dos mortos do Tarrafal para o cemitério do Alto de S. João, em Lisboa. Vem, pois, muito a propósito a publicação duma recolha de textos de Albert Libertad (publicados na mesma edição da revista, nota A.) sobre o culto dos mortos, na qual é salientada a importância deste culto na manutenção da ordem social. Porém, além dessa questão de fundo, este caso dos mortos do Tarrafal tem outras implicações devido à manobra de carácter  político que desde o início presidiu à dita trasladação. Com efeito, o objectivo desta era claro: arrastar os vivos para a luta política anti-fascista através da utilização de algumas dezenas de cadáveres de indivíduos que lutaram, foram perseguidos, torturados, deportados e finalmente liquidados pela Sociedade. Também é fácil perceber que quem terá lucrado mais com esta operação foram as várias organizações políticas situadas na chamada esquerda, sobretudo o Partido Comunista Português.

Não nos admira absolutamente nada que tais organizações, sendo de carácter religioso no sentido lato (sobretudo as de ideologia marxista), com os seus mártires, os seus guias, as suas bíblias, os seus líderes (vivos), os seus homens exemplares (mortos), se empenhem constantemente em criar nos seus adeptos e nas pessoas em geral uma mentalidade de tipo religioso, um respeito devoto pela autoridade dos seus chefes, uma crença absoluta na infalibilidade das suas previsões, na inexorabilidade da realização dos seus programas; que tendo como objectivo a conquista do poder, utilizem a carne morta como mais um meio de propaganda política.

O que já nos poderia espantar é que alguns indivíduos, anarquistas ou anarco-sindicalistas, que deveriam ser por temperamento e convicção, avessos a tais manobras, tenham alinhado com essas comemorações. Na nossa opinião, a única explicação desta atitude é alguns anarquistas acharem útil a participação no movimento anti-fascista, cujo objectivo é defender a democracia e as «liberdades constitucionais», isto é, manter a actual sociedade de exploração.

Ora, para nós a democracia não é essencialmente diferente do fascismo, dado que é apenas uma outra maneira, normalmente mais eficaz, de manter a opressão e o privilégio sociais.  A democracia, ao substituir o fascismo, tem, ao fim e ao cabo, assegurado que a pirâmide social, com a sal hierarquia do topo até à base, se mantenha no essencial, para além de uma ou outra convulsão mais profunda não prevista pelos democratas. Outra coisa não tem vindo a significar a institucionalização da democracia, a legislação das liberdades, a politização (partidarização) das mentalidades desde o 25 de Abril. Que resta do entusiasmo inicial, das liberdades reais adquiridas nos meses seguintes ao 25 de Abril, da apropriação bem real que nessa altura fizeram muitas pessoas dos meios que lhes faltavam para a realização dos seus desejos, para a satisfação das suas necessidades? Nada, a não ser apertar cada vez mais o cinto e defender a Constituição e as «liberdades» democráticas.

Se queremos de facto ser livres não podemos cair no engodo de defender a democracia, apresente-se ela com os rótulos que quiser: representativa, popular ou qualquer outro. A liberdade é incompatível com qualquer forma de organização hierárquica dos indivíduos, portanto incompatível com a democracia”.

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Presos anarquistas no Tarrafal. Da esquerda para a direita na 1ª fila sentados: José Ramos, Bernardo Casaleiro Pratas; Joaquim Duarte Ferreira e Américo Fernandes. Na 2ª fila em pé: Joaquim Pedro; Custódio Costa; José Ventura Paixão: José Ricardo do Vale; António Gato Pinto e Acácio Tomás de Aquino.

*

Às vítimas do Tarrafal, por Acácio Tomás de Aquino

 

Oh excelsa poesia, chama imortal

Que de heróicos prodígios tu tens feito,

Poetisa a dor que sinto no meu peito

Que te darei um poema sem rival!

 

Dá-me de Camões, poeta genial,

A sua vocação, seu alto jeito,

P´ra escrever em verso bem perfeito,

Tudo o que se sofreu no Tarrafal!

 

Desde o baixo e vil roubo à agressão,

Do ódio figadal à vilania,

Do trabalho forçado à castração.

 

Da elevada firmeza à rebeldia

Tudo isso focaria, sem omissão,

Das mais intensas dores, à agonia.

 

Tarrafal, 9 de Setembro de 1943

(in O Segredo das Prisões Atlânticas, Regra do Jogo, 1978)

16
Nov21

Participação anarquista e anarco-sindicalista na manifestação do 1º de Maio de 1974


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Os anarquistas e membros da antiga CGT anarco-sindicalista, José Francisco e Acácio Tomás Aquino, na manifestação do 1º de Maio de 1974, na Avenida Almirante Reis, transportando a bandeira do Sindicato Único das Classes Metalúrgicas de Lisboa (a que também pertenceu Emidio Santana), aderente à CGT, e que Aquino conservou e guardou durante várias dezenas de anos, apesar da fúria repressiva das forças policiais do Estado fascista que apreendeu o mais diverso material dos sindicatos anarquistas, para além do roubo das suas sedes e da prisão dos seus principais dirigentes e militantes.

19
Out21

18 DE JANEIRO DE 1934: DEPOIMENTO COLECTIVO DE DIVERSOS MILITANTES CONFEDERAIS LIGADOS À SUA ORGANIZAÇÃO


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Em mais um aniversário do levantamento dos trabalhadores portugueses contra o fascismo, a 18 de Janeiro de 1934, organizado pela CGT anarcosindicalista e por outros elementos ligados ao movimento sindical, reproduzimos um texto da autoria de um grupo de militantes confederais com responsabilidades no movimento e que, na sua maioria, foram por isso deportados para o Tarrafal. O texto foi escrito e publicado já depois do 25 de Abril de 1974, numa altura em que o PCP tentou recuperar para si a organização deste movimento que teve dimensão nacional, mas em que a insurreição operária apenas teve visibilidade nalguns locais mais circunscritos: Silves, Almada, Sines, Marinha Grande, etc.. (colectivo libertário de évora)

Como a verdade ressalta

Com a prisão, julgamentos e deportação para o Tarrafal dos elementos que participaram no 18 de Janeiro e o período de intensa repressão que se seguiu e veio a agravar-se com a eclosão da guerra civil de Espanha, o acontecimento cobriu-se de esquecimento que se prolongou por quarenta anos.

Na altura o 18 de Janeiro veio a público apenas na versão dos comunicados oficiais e com os ataques da Imprensa. A verdade dos acontecimentos, dos seus objectivos e da sua organização e preparação ficou oculta.

Algum tempo mais tarde, de vez em quando, o partido comunista foi insinuando as suas versões do 18 de Janeiro, apropriando-as com a sua técnica stalinista de história controlada e pré-fabricada ao modo conveniente, à formação da auréola de «partido da resistência» que foram criando, até muito especialmente coma ajuda da propaganda reaccionária, do seu «papão comunista», ou na costumada expressão de Salazar insistindo no «perigo do comunismo internacional».

Necessariamente, para criar credibilidade e como base técnica da sua habitual propaganda, teriam de eliminar, denegrindo e insultando com o seu indispensável apodo de traidores, os homens e as organizações não comunistas que na verdade organizaram e sustentaram a luta, cujos méritos e feitos ainda não foram devidamente apreciados.

Bento Gonçalves, que nessa altura era o secretário-geral do partido comunista, construiu esse processo de adulteração histórica, anos depois e já na deportação, escrevendo um folheto intitulado «Duas Palavras», partindo dum ataque demolidor dos objectivos e acções do movimento, mistificando os factos e disfarçando uma acção reformista por certo calculada, embora numa aparência perfeitamente infantil, terminando por demegrir o movimento classificando-o de «pura anarqueirada».

O partido comunista sob a sua chefia opunha-se ao 18 de Janeiro como movimento de greve geral revolucionária, como acção personalizada da organização sindical, porque afinal queriam converter todas as manifestações ao domínio do partido. Todavia, nessa altura, o partido não estava apto a exercer esse liderismo pois atravessava uma crise interna bastante profunda e confessa.

É Bento Gonçalves que nos diz:«No Partido o ambiente geral era de fuga para as acções isoladas. A maior parte dos camaradas de base do Partido, aliás cheios de denodo revolucionário e cuja sinceridade proletariana ninguém ainda pôs em dúvida, eram novos e desprovidos da mínima experiência sobre a actividade sindical e sobre os métodos sãos da táctica do movimento operário. No Comité Regional de Lisboa se criou a tendência geral para a acção directa. Em quase todos os outros sítios a situação era idêntica (…) E entretanto era absolutamente necessário vir a público para resolver a questão no interior do Partido, todas em quase todos os escalões pro essa duplicidade de táctica».

Ao escrever as «Duas Palavras» Bento Gonçalves teria de fazer derivar o imperativo da luta para hipóteses diferentes da greve geral que cobrissem a debilidade que estavam sofrendo, mas não só, para aproveitarem uma passagem suave a um sindicalismo corporativista no qual se instalassem sem dificuldades introduzindo a influência do partido. E define a posição: «Colocámo-nos no terreno da utilização das condições legais. Qualquer forma de luta ilegal ainda aí nem sequer era frisada, nem mesmo subentendidamente. Dizíamos, em substância, que os sindicatos ainda se regiam pelo velho alvará (1). Era portanto necessário lutar sobre essa base. Convocar reuniões de assembleias gerais com o fim de levar os trabalhadores a votar contra o Estatuto do Trabalho Nacional. O que era preciso patentear bem alto e bem publicamente que os trabalhadores estavam contra a fascização dos Sindicatos, que continuavam a dispor do direito de organização independente»`.

Até ao 18 de Janeiro ninguém teve a idiotia de propor a realização de assembleias para impedir a fascização dos sindicatos; a ideia é divulgada mais tarde para dar a justificação da tal  utilização das condições legais. Tal intenção seria simplesmente inexequível, porque seria para a polícia a melhor forma de poder identificar quem se opunha à legislação fascista e de poder conhecer a movimentação em preparação.

Ao partido interessava a esterilização dos sindicatos enraizados nas tradições de luta dos trabalhadores e experimentados na sua autonomia em relação ao Estado, aos partidos e ao jogo parlamentarista. O estrangulamento e a subalternização dos sindicatos permitiria, como veio a permitir depois do 25 de Abril, que qualquer partido marxista ou similar pudesse liderar as classes trabalhadoras e integrá-las no sistema político e económico.

Noutro passo podemos ainda ler: “Dum modo geral, desde Setembro de 1933 até à data da eclosão do movimento, os militantes sindicais cristalizam-se em volta da preparação do movimento grevístico e sedicioso, mandando ao diabo a questão das assembleias e das formas de protesto público de massas contra as medidas eminentes».

Conclui-se que na cúpula do partido se optava por uma forma de protesto simbólica abrindo passagem à adaptação sindical. E prossegue: «Entre os trabalhadores do Estado parece que só o Sindicato do Pessoal do Arsenal de Marinha efectuou uma assembleia, aliás largamente assistida de reprovação do ENT. Porém, mesmo neste sindicato, ainda nos recordamos do trabalho e das imposições a militantes que foi necessário fazer para conseguir a convocação da tal assembleia.»

Bento Gonçalves foi operário do Arsenal da Marinha; é estranho que diga parece que só o Sindicato do Pessoal da Marinha (o sublinhado é nosso) e por outro lado recorde das imposições a militantes (o sublinhado é nosso) para conseguir a convocação. O que não é de crer que a assembleia fosse para reprovar o ENT. A polícia estava pronta para reprimir manifestações desse género, e o pessoal não arrostaria a desencadear ordens cominatórias da direcção militar do arsenal. Tentaria a direcção do sindicato evitar que lhe fosse aplicada a supressão do direito de sindicalização prevista para os funcionários do Estado?

Deduz-se das declarações de Bento Gonçalves:

a) Que o partido estava na altura desorganizado e que nas bases se optava de preferência por uma acção revolucionária que a chfia condenava;

b) Que a cúpula do partido optava por uma acção legal que seria, naturalmente, pela aceitação da estatização dos sindicatos onde os quadros do partido se infiltrariam, facilmente acomodados ao estilo burocrático e centralista das direcções sindicais;

c) Que o partido estava em oposição a toda e qualquer acção revolucionária, preparando-se para a infiltração.

Confirma o que noutro passo escreveu: “Sobre a base desta dupla apreciação nós trazíamos todas as condições para empreender uma viragem de harmonia com o VII Congresso (2): a) os efectivos dos sindicatos ilegais deviam ser incorporados no partido; b)o centro do trabalho sindical devia deslocar-se para dentro dos sindicatos nacionais c) a unidade sindical (…) sobre a base da utilização de todas as possibilidades legais, interiores e exteriores ao sindicato nacional».

Confrontando as declarações de José Gregório num relatório tantas vezes evocado pelas várias seitas marxistas com as declarações de Bento Gonçalves, torna-se evidente a contradição.

Escreve José Gregório: «O Partido nomeou um comité para preparar e dirigir o movimento debaixo da seguinte orientação: Para que os operários pudessem alcançar a satisfação das suas aspirações precisavam de se apoderar das armas que estavam na posse duma força da GNR (…).»

O que vigorava no partido. a acção legalista ou a acção revolucionária? Como é que o partido nuns lados optava por uma acção de infiltração e na Marinha Grande o partido nomeava um comité para dirigir uma acção que depois viria a ser considerada putschista?

Se o partido, segundo a afirmação de José Gregório, nomeou um comité para preparar e dirigir o movimento, pode concluir-se que o 18 de Janeiro foi exclusivamente da sua iniciativa? Mas Bento Gonçalves, secretário-geral do partido, nessa altura, escreveu (3): «Esta questão (o 18 de Janeiro) não pode dizer-se que tenha entre nós uma análise completamente virgem. No «Avante!», logo após a eclosão deste movimento, conduzimos uma crítica ao caminho terrorista que, em vários sítios (por certo incluindo a Marinha Grande), se constatou nessa jornada e à táctica dominante, por vezes, no movimento sindical português que consistia em elaborar as acções muito para além das condições concretas e do estado das forças da organização operária.

«Se em vários aspectos, essa crítica foi deficiente, isso deve-se, em primeiro lugar, à deficiência dos nossos meios de informação. Por exemplo, o caso da Marinha Grande foi apresentado como um «modelo» de boa táctica. Só em Angra viemos a verificar que o feito ali, também, nem por isso tinha sido menos putchista.”

Não se compreende que tendo o partido nomeado o comité do movimento na Marinha Grande, segundo José Gregório, Bento Gonçalves venha considerar o movimento terrorista, negando-lhe a qualidade de «modelo» de boa táctica, e, o que é pior ainda, só se tivesse dado conta disso depois, já em Angra, e por deficiência de meios de informação. Esta deficiência só se pode aceitar em duas condições: ou estar afastado dos acontecimentos ou se se tivesse dado o caso de nomear o comité e tê-lo deixado desamparado.

De resto Bento Gonçalves acentua que acções daquele género (o 18 de Janeiro) de caminho terrorista era táctica dominante, por vezes, no movimento sindical português, assinalando deste modo qual era na verdade a autêntica origem do movimento e que o partido, pela boca autorizada de Bento Gonçalves, recusava e condenava.

José Gregório, presidente do Sindicato dos Vidreiros e pelo que entrou na preparação e condução do movimento na Marinha Grande, veio depois com o seu relatório dar uma contribuição falsa para a história pré-fabricada atribuindo ao partido o que fora iniciativa do sindicato. E é Bento Gonçalves que o desmente, mas por outro lado o pode acusar de pior.

Ouçamos ainda Bento Gonçalves, referindo-se à Marinha Grande: «Não estamos em presença duma acção do proletariado local, dum movimento grevista de protesto contra o Estatuto do Trabalho Nacional, que as massas alargam, em virtude da sua efervescência revolucionária, mas sim ante uma acção estruturalmente de vanguarda de membros do Partido e de comunistas sem partido, convencidos de que uma greve geral eclodiria em todo o país, à qual se junatria o reviralho» (o sublinhado é nosso).

Se José Gregório actuou como membro do partido, a sua acção, segundo Bento Gonçalves, foi uma acção estruturalmente de vanguarda e à espera do «reviralho», e não escapou à acusação de «anarqueirada».

Se Bento desmente o Gregório, este desmente ainda aquele. Se o movimento foi organizado pelo partido, segundo José Gregório, o Bento reconhece a origem sindical do movimento, que a greve geral preconizada pela CGT fora aceite, contrariamente ao que pensava o partido, que preconizava um «movimento de massas» através de assembleias gerais e pela utilização das condições legais, isto é, pela disfarçada aceitação dos «sindicatos nacionais» para neles se introduzirem, atribuindo a derrota do 18 de Janeiro ao «provincianismo anarco-sindicalista».

Todavia, apesar destas contradições, existe um nexo notável que interessa analisar.

«Duas Palavras» de Bento Gonçalves foi escrito em 1941 quando se encontrava deportado no Tarrafal, um ano antes da sua morte; o relatório Alberto, de José Gregório, está datado de Agosto de 1955.

Em 1941 tinham decorrido já 15 anos de regime ditatorial, a panóplia do partido estava vazia de qualquer acção contra o regime, pois até o 29 de Fevereiro de 1932, de que  nunca se fala, se cifrou num fracasso como organização e dos seus objectivos, pois uma das suas reivindicações, o subsídio de desemprego, foi aproveitada pelo governo para impor um desconto de 2% que nem o 25 de Abril nem a Intersindical contestaram. Era necessário adaptar a história, distorcer a verdade do 18 de Janeiro e pregá-los com alfinetes na panóplia vazia. O seu autor lançava assim as bases do seu culto de personalidade.

Em 1955, José Gregório, depois de ter em 1942 aparelhado com Cunhal no secretariado do partido, teria de ajudar a mistificar a história do 18 de Janeiro, aproveitando o seu título de presidente do Sindicato dos Vidreiros nessa altura para depôr com «autoridade».

Como toda a mistificação deixa sempre qualquer coisa de fora, que pode vir desmentir, assistiremos agora a José Gregório desmentir-se a si próprio.

No relatório «Alberto», José Gregório afirmou que «o partido nomeou um comité para preparar e dirigir o movimento…» faltando todavia esclarecer se isso foi a nível local ou nacional.

No mesmo relatório, referindo-se à organização e actuação do partido, faz certas análises das experiências recolhidas e tira algumas conclusões.

Analisemo-las tal como nos diz José Gregório.

«1º- A organização do Partido que foi montada em 1932 só passou a funcionar de um modo um pouco mais regular em princípios de 1933. Na prática não havia mais que um núcleo de camaradas a que se poderia dar o nome de organização local. Nas fábricas não havia organismos. Por outro lado o contacto com a direcção do Partido fazia-se muito raramente. Nestas condições os camaradas do Partido não reuniam numa base de Partido, não actuavam dentro das normas de disciplina de Partido, não se sentiam obrigados a prestar-lhe contas da sua acção. Por outro lado não era utilizada a  crítica nem a autocrítica. Criou-se o hábito de ver as coisas não sob o ponto de vista do Partido, mas sim na base individual, na base da legalidade sindical, crendo-se não poucas vezes na burocracia sindicalista (4). Tudo isso se tornou muito inconveniente para a formação e desenvolvimento dos quadros do Partido. Tudo isso contribuiu para que não fossem recrutados para o Partido bons operários de vanguarda homens e mulheres cheios de qualidade e de possibilidades para virem a ser um precioso material do Partido».

Com este quadro do partido como crer que ele fosse o organizador do 18 de Janeiro, que teve a extensão que teve. Quase temos vontade de dizer: que grande «anarquia» havia então dentro do Partido!

Esta desconformidade entre a organização interna do partido na ocasião e as proporções do 18 de Janeiro, confirma que este decorreu à margem daquele, embora elementos comunistas tivessem actuado, mas por via sindical. De resto, no mesmo relatório e ao terminar, José Gregório confessa: «O movimento de 18 de Janeiro também teve a participação dos anarquistas locais e de operários que influenciavam (certamente, dizemos nós, não orientados pelo partido). Deste modo se pode afirmar haver nesta data a  mesma característica de unidade que sempre existiu na nossa organização sindical desde 1931 até então». (O sublinhado é nosso).

1ª conclusão: «Ao elaborar o plano de acção para o 18 de Janeiro o Partido e o Comité Revolucionário, deixaram-se levar pela ideia feita de que a vitória era certa, que o fascismo seria derrubado sucedendo-lhe um regime de tipo proletário. Partindo-se deste princípio não se considerou a necessidade de encarar uma retirada de modo ordenado. Esta orientação é errada de nem sequer admitir revezes parciais…».

Deve prestar-se justiça ao José Gregório. Se ele se apropriou da organização do 18 de Janeiro para o Partido é justo que reivindique para ele os insucessos e os erros. A mesma coerência não a teve Bento Gonçalves quando apelidou o 18 de Janeiro de «pura anarqueirada».Não sabemos se José Gregório reivindicou para si e para o seu partido o insulto soez de Bento Gonçalves que por essa altura deportado no Tarrafal, lá mesmo no campo de concentração se prestou a fundir em bronze dois escudos evocativos da passagem do Carmona, manequim do regime fascista, por Cabo Verde na sua viagem a África, e ao deflagrar a guerra, ele em pessoa, foi apresentar ao director do acampamento, o sinistro capitão João Silva, a «colaboração do PC na defesa da pátria contra o imperialismo».

Conhecemos sempre o partido comunista como o modelo e o manual do perfeito oportunismo, do impudor das afirmações e das acusações torpes, além do exercício do mais completo reformismo embora besuntado de revolucionarismo, mas também o reconhecemos camaleónico, dizendo hoje o que ontem terá negado.

Se a CGT e os anarco-sindicalistas «traíram» o 18 de Janeiro, como também afirmam os trabalhadores, porquê o seu órgão «O Avante» de Maio de 1937, portanto 3 anos depois, com o Bento Gonçalves vivo e à frente do partido, publicava uma notícia, aliás falsa e simplesmente arquitectada, na primeira página e intitulada «Viva a Frente Única Proletária» aplaudindo a «unidade com a CGT»?

Começa a notícia assim redigida: «Pede-nos a CIS a publicação do documento que a seguir inserimos.»

«Fazemo-lo com a máxima alegria por este documento dar notícia de um acontecimento importante da vida do movimento operário português. Por ele se vê que a Frente Única Proletária está em via da sua imediata realização». E a CIS (a célebre Comissão Intersindical) dá a seguir a notícia de a CGT ter acedido às suas propostas para a constituição de um Comité de Frente Única Proletária, acrescentando: «No que se refere aos problemas de orientação da CGT nós pensamos que só a neutralidade em questões de tendência pode permitir a Unificação».

«Uma CGT comunista não contaria, com certeza com o apoio dos camaradas anarquistas, da mesma maneira uma CGT anarquista dificilmente encontraria apoio nos partidários da Ditadura do Proletariado” (5)

Além desta notícia ser totalmente desprovida de qualquer resquício de verdade é de pôr em evidência o impudor de afirmar a «máxima alegria» em quererem fazer uma união com aqueles que acusaram de traidores, de admitirem em emparceirar com os que têm denegrido.

Nunca a CGT teve qualquer contacto com o partido comunista e com a Comissão Inter-Sindical, apenas estabeleceu os contactos para o 18 de Janeiro cuja experiência e resultados deixámos já descritos.

O comportamento da CIS, toda a campanha posterior, tornaram evidente que não é possível qualquer colaboração com os comunistas como partido ou como qualquer agrupação, mesmo sindical, em que preponderem. O amoralismo dos seus processos, o desrespeito pelos compromissos assumidos produz-se logo que lhes seja oportuno.

A experiência do 18 de Janeiro não poderia voltar a permitir qualquer acercamento. Apertam a mão que não podem cortar e os acordos que estabelecerem hão-de resultar em seu benefício. Se não colherem o resultado total acusarão os outros de traidores.

(“Como a verdade ressalta”, capítulo do livro “O 18 de Janeiro de 1934 e alguns antecedentes”, um depoimento colectivo de Acácio Tomaz de Aquino, Américo Martins, Custódio da Costa, José Francisco, Marcelino Mesquista e Emídio Santana, que coligiu. Regra do Jogo, 1978.)

Notas

(1) O itálico é nosso para assinalar a declarada posição reformista. Não se compreende a relação entendida entre o alvará e a forma de actuação dos sindicatos de então. O alvará era o certificado do governo civil que reconhecia a legalidade dos sindicatos mas que não tinha qualquer relação com a sua orgânica e orientação.

(2) Ver «SEARA NOVA» nº 1513 – Março 1975, Movimento das Ideias; de Fernando Guerreiro.

(3) «Duas Palavras», de que vimos fazendo citações. O sublinhado é nosso.

(4) É surpreendente que, sendo José Gregório Presidente do Sindicato, ele não se queira responsabilizar pela «burocracia sindicalista».

(5) O Avante, Série II – 35 da 3ª semana de Maio de 1937

aqui: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2013/01/17/18-de-janeiro-de-1934-depoimento-colectivo-de-diversos-militantes-confederais-ligados-a-sua-organizacao/