“Aos heróicos mineiros e metalúrgicos de Aljustrel”
Esta fotografia mostra diversas Associações de Classe e Sindicatos de vários pontos do País, com as suas bandeiras, que em 1923 vieram apoiar e solidarizar-se com a greve dos mineiros de Aljustrel travada alguns meses antes. Muitas destas associações já tinham demonstrado a sua solidariedade quando os filhos dos mineiros – eventualmente alguns ou a totalidade das crianças que estão na foto – foram recebidos em Beja, Lisboa ou Barreiro por famílias operárias, enquanto a greve decorria.
Em baixo publicamos dois artigos de jornal. Um datado de Outubro de 1922, publicado no jornal “O Século”, não assinado, em que se dá conta da greve nas Minas de Aljustrel e da chegada de um grupo de filhos de mineiros a Lisboa, que fugiam assim à fome e à falta de condições que os pais em greve não lhes podiam dar.
O segundo artigo foi escrito cerca de 90 anos depois, em Maio de 2012 e publicado, como opinião, no “Diário do Alentejo”, pelo psicólogo Marcos Aguiar. São as memórias ainda vivas de um passado de luta que deve orgulhar gerações de aljustrelenses a quem, por este ou aquele motivo, esta gesta heróica tem sido ocultada. O roubo da memória colectiva é um instrumento do fascismo e das ditaduras.
Os resultados de uma gréve
Chegam a Lisboa 19 filhos dos mineiros grévistas de Aljustrel, para se acolherem á proteção dos operarios da capital
Nas minas de Aljustrel declarou-se ha cêrca de um mez uma gréve que, até hoje, ainda não teve solução satisfatoria. Nem os industriaes transigem nem os operarios e estes debatem-se hoje na mais agonica das miserias. As suas reclamações são de mais tres escudos por dia, o que, junto aos 3$50 que ganhavam, lhes dava uma totalidade de 6$50, pouco mais ou menos o que tem qualquer operario em qualquer terra do paiz. Não transigem uns nem outros e assim as crianças, filhas dos mineiros, passavam já fome e inclemencias, o que, sabido dos operarios de Lisboa, resolveram estes tomar conta d’elas, mandando-as vir, para o que foi a Aljustrel um delegado da C. G. T. Antehontem partiram de Aljustrel para Beja 25, vindo depois 24 para Lisboa, por n’aquela cidade ter ficado uma, a cargo de uma familia compassiva. No Barreiro o operariado d’aquela vila tomou a seu cargo 5, chegando hontem, no comboio da manhã, 19 a Lisboa.
Estas eram esperadas por inumeras pessoas, que disputavam entre si a primasia no bemfazer.
A vinda das crianças, cujo aspéto não era feliz, como se calcula, deu logar a cenas comoventes. Bem cedo começam a sentir as agruras da vida os pobres inocentes que nenhuma culpa teem nos conflitos de que são vitimas. E bom seria que das lutas como esta não saisse apenas uma obstinada irredutibilidade. Essa leva apenas, como se está vendo, á miseria negra, aos prejuizos incalculaveis e á ruina economica das regiões onde se dá. Mais crianças se esperam por estes dias, pois parece que tão cedo o conflito não terá solução.
(jornal O Século – 29.10.1922)
O longo inverno dos mineiros de Aljustrel
Na passagem de 1922 para 1923, os mineiros da minha terra – Aljustrel – estiveram quatro meses em greve. Quatro meses que figuram na história do movimento anarcossindicalista como uma das mais longas paralisações de sempre, que colheu solidariedade em todo o País e, inclusivamente, além-fronteiras, junto do operariado do mundo industrializado de então. Muitos se identificaram com a causa dos mineiros de Aljustrel, documentada diariamente no jornal “A Batalha”, destacando-se um episódio, em particular, que me entusiasma e comove sempre que o evoco.
Tendo-se a greve arrastado por tanto tempo, a CGT (Confederação Geral do Trabalho) apelou ao proletariado nacional para que apoiasse os mineiros, ajudando os filhos dos grevistas. Assim, durante a greve dos mineiros de Aljustrel, mais de 200 crianças foram colocadas em comboios para serem recebidas e alimentadas pelos operários de Lisboa. A cargo do operariado de Beja ficaram 25 crianças e no Barreiro mais 50. Imagine-se um cortejo de centenas e centenas de pessoas em sofrimentos profundo, percorrendo o percurso que separa Aljustrel da estação de comboios do Carregueiro, para expedir voluntariamente os filhos da terra para as mãos de estranhos. Afigure-se o desespero que levou esta gente a tomar medidas tão extremas para proteger as suas crianças da miséria que a greve pressupunha. Invoque-se o medo que esta gente foi obrigada a dominar, tratando-se de tempos em que as greves eram reprimidas através do despedimento sumário e, não poucas vezes, pela violência e prisão.
Como é possível correr assim o risco de perder o pouco que se tem? Quem eram estas pessoas anónimas que afrontaram a todo–poderosa empresa mineira estrangeira? Mas o que moveu os meus conterrâneos para este gesto de afirmação social que envolveu tantos perigos? A resposta é complexa e ao mesmo tempo muito simples – a desesperança! Foi a desesperança perante as horríveis condições de trabalho e os baixos salários que levou esta gente simples a agir de forma tão radical. Em Aljustrel, no inverno de 1922/1923, da desesperança, nasceram heróis que, vencida a luta contra a prepotência do patrão estrangeiro, foram aclamados em todo o mundo industrializado como um exemplo a seguir.
Hoje, em Portugal, o desânimo é generalizado, ao ponto de alguns confundirem a “paz podre” que vivemos com a aceitação social das indignidades que nos são impostas. Não, não estamos em paz, estamos em torpor, incapazes de reagir a quem nos agride. Não, não estamos satisfeitos, estamos em apatia, observando, distantes, a forma como o País se carcome a si mesmo. Não, não estamos felizes, estamos em desesperança profunda, simplesmente ainda não conseguimos ter, nem por um momento, a mesma valentia dos mineiros de Aljustrel daquele longo inverno de há 90 anos.