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Memória Libertária

Documentos e Memórias da História do Movimento Libertário, Anarquista e Anarcosindicalista em Portugal

Documentos e Memórias da História do Movimento Libertário, Anarquista e Anarcosindicalista em Portugal

Memória Libertária

03
Abr23

O sapateiro bejense Artur Modesto: um autodidata sempre presente na luta contra o fascismo


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Artur Modesto em casa de Acácio Tomás Aquino, c. 1980

Artur Modesto, foi um militante anarcossindicalista do Baixo-Alentejo, sapateiro de profissão. Nasceu em Beja  a 27 de maio de 1897 e morreu em Lisboa a 3 de abril de 1985.

Cunhado de Acácio Tomás de Aquino, um dos principais organizadores do 18 de janeiro de 1934, residiu em Lisboa, na Ajuda, a partir dos anos 30, colaborando com as organizações libertárias clandestinas, nomeadamente no âmbito da Federação de Solidariedade para com os Presos e Perseguidos por Questões Sociais. Depois de 1974 colaborou em várias tarefas para a edição do jornal “ A Batalha” e integrou o grupo anarquista Fanal, da zona de Belém-Ajuda.

Inicialmente esteve filiado  no Sindicato dos Sapateiros de Beja, pertencendo a várias direções e comissões do sindicato. Foi um dos fundadores das Juventudes Sindicalistas de Beja, do seu órgão na imprensa (o jornal O Rebelde) e da União dos Sindicatos Operários de Beja.

Em 1928 veio para Lisboa, integrando o Sindicato Único da Indústria de Calçado, Couro e Peles até 1933, ano da sua destruição pela ditadura fascista.

Durante o fascismo exerceu funções clandestinas na FARP, Aliança Libertária de Lisboa e na CGT.

Conseguiu não ser preso após a sublevação do 18 de janeiro de 1934, contando no seu currículo de militante apenas uma prisão, em Novembro de 1918, ainda em Beja, aquando da greve geral decretada pela União Operária Nacional.

Apesar de ter apenas a 2º classe, Artur Modesto tinha uma grande cultura, mercê da leitura e do convívio com militantes com um nível superior de estudos e uma sensibilidade e gentileza marcantes.

Toda a vida escreveu poesia e no final da vida, após Abril de 1974, viu dois dos seus livros serem editados pela Editora Sementeira. "Páginas do meu Caderno", em 1978 e "Alfarrábio Poético", em 1984.

Manteve também até final da vida uma ligação constante ao jornal A Batalha, onde, até poder, foi uma presença assídua. Manteve também colaboração com a revista “A Ideia”.

Relacionado: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2013/03/21/dia-mundial-da-poesia-dois-poemas-do-anarquista-alentejano-artur-modesto/

27
Mar23

(memória libertária) Arnaldo Simões Januário (Coimbra, 1897 – Tarrafal, 1938)


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Arnaldo Simões Januário nasceu em Coimbra a 6 de Junho de 1897 e faleceu a 27 de Março de 1938, no Campo de Morte do Tarrafal, vitimado por uma biliose anúrica, sem assistência médica, depois de vigorosos anos de combatividade e de sofrimento nos cárceres e nas deportações.

Barbeiro de profissão, foi o organizador em Coimbra dos Sindicatos Operários e estrénuo propagandista revolucionário anarquista. Foi correspondente em Coimbra do jornal “A Batalha”, órgão da C.G.T.. Em 18 de Março de 1923 tomou parte na Conferência de Alenquer como delegado do Grupo Anarquista de Coimbra de que fazia parte juntamente com João Vieira Alves, também delegado. A sua combatividade não esmoreceu com o advento do movimento do 28 de Maio antes recrudesceu. Antes porém a sua acção na propaganda tornou-se bem conhecida em sucessivos artigos em “A Batalha”, “A Comuna”, “O Anarquista”, a revista “Aurora” e muitos jornais dedicados à causa dos trabalhadores. Fez parte do Comité Nacional da União Anarquista Portuguesa (U.A.P.) formada a partir daquela célebre Conferência. Em 1927 sofreu a sua primeira prisão e seguiram-se-lhe intermináveis perseguições em todas as prisões e nos períodos de relativa liberdade que eram para ele outros tantos períodos de luta na clandestinidade. Sua ideologia acrata não lhe permitia subtilezas ou atitudes de meias tintas. Lutava em todos os escalões, pela palavra, pela escrita e pela acção.

O movimento revista de 18 de Janeiro de 1934 teve nele um dos principais organizadores. Preso pela Pide de Salazar, que num furacão de brutalidade, investe sobre os elementos operários de todo o país, declarou nobre e altivamente tomar inteira responsabilidade pro aquele movimento cujo fim era derrubar a Ditadura.

Entre 1927 e 1931 passou pelas cadeias do Governo Civil de Coimbra, Aljube e Trafaria seguidas de deportações em Angola, Açores e Cabo Verde e internamento no Campo de Concentração de Ué-Kussi ou Okussi em 22 de Novembro de 1931.

Para este campo foram crescendo em número os deportados idos da metrópole, e como o campo de Okussi não comportasse mais homens, os ditadores mandaram construir a toda a pressa outro na ilha de Ataúro ou Taúro.

Transcrevemos a seguir a descrição dos dois Campos, recolhida de apontamentos seus, escritos na prisão.

«O Campo de Concentração de Okussi funcionou de Outubro de 1931 a Maio de 1932 com uma população normal de 100 pessoas, excepto nos três primeiros meses em que essa população foi de, aproximadamente, 150 homens. O local do campo ficava, ao nível do mar e a sua construção era de palapa, material com que os indígenas faziam as suas habitações. A poucas dezenas de metros encontravam-se dois grandes pântanos onde manadas de búfalos nadavam e pastavam na maior tranquilidade. Após três meses de internamento 70% da população do campo estava gravemente impaludada. Na época das chuvas, a mais quente, o termómetro chega a acusar, 38º à sombra. O comandante militar do campo era o Tenente Óscar Ruas. Os locais escolhidos para a construção dos dois campos de concentração obedeceu a um pensamento homicida, covardemente premeditado o crime que haveria de arrancar a vida ou inutilizar a saúde a perto de quinhentos homens. Ataúro é uma ilha sem condições de vida para europeus. Sem saneamento de qualquer espécie, sem água potável, com uma temperatura excessivamente quente é justamente que se chama àquela ilha a Ilha da Morte. A alimentação dada aos confinados era má e insuficiente. Ao cabo de três meses começam a declarar-se os primeiros casos de tuberculose que se repetem duma forma alarmante. Serviços médicos não existem na ilha, quedando reduzidos à assistência dum enfermeiro militar. Quando desembarcavam em Dili os deportados de Ataúro, com destino ao hospital, deparava-se sempre com um espectáculo arrepiante que confrangia toda a gente que a ele assistia. Homens com as aspecto de cadáveres ambulantes, magros, esquálidos, os olhos luzentos de febre, esfarrapados e descalços no seu maior número. Em toda a população da cidade, mesmo naquela que é indiferente à questão política, correu m um frémito de indignação ante a hediondez nitidamente demonstrada pelo tratamento a que estavam sujeitos algumas centenas de homens. Foi necessário morrer um desgraçado e que outros fossem largando os pulmões pela boca para que o Governador, brigadeiro Justo, implorasse para Lisboa a extinção dos dois Campos de Concentração, o que vem a acontecer em fins de Janeiro e Maio de 1932».

Depois destes inauditos tormentos, Januário é posto em liberdade e regressa a Coimbra.

Após o malogro do movimento grevista de 18 de Janeiro de 1934, o operariado de todo o país sofre uma nova investida da PIDE, num furacão de brutalidade sem nome. Volta a ser encarcerado no Aljube e a seguir transferido para o Forte da Trafaria, onde é montada uma comédia-julgamento. Este improvisado julgamento condena-o a 20 anos de prisão, sendo enviado  para o Forte de S. João Batista, na Ilha Terceira, nos Açores. Era director o famigerado Capitão Paz que ali cometeu toda a espécie de arbitrariedades. Mário Castelhano e Arnaldo Januário, émulos no heroísmo, foram metidos na POTERNA, horrendo cárcere, tão horroroso como os da velha Inquisição.

Depois destes sofrimentos, Salazar, o místico da crueldade, que, da casa onde se acoitava, guardado pela G.N.R., a S. Bento, providenciava em todo o regime penal, como um velho inquisidor de há 3 séculos, ainda veio a criar o Campo da Morte do Tarrafal.

Para ali, com muitos outros, foi atitado o Januário e é já suficientemente conhecido o regime de vida que ali levavam os presos.

Arnaldo Simões Januário, lutador incansável que a tudo resistira, destruído física que não ideologicamente, sucumbe, enfim, a 27 de Março de 1938, rodeado dos cuidados possíveis dos seus companheiros, mas sem os carinhos da família onde avultavam cinco filhos menores.

É assim que deixa de pulsar o coração generoso do Homem que tudo sacrificou ao seu ideal, ideal de fraternidade humana que não se compadecia com situações fascistas e nazis, tendo o seu corpo ficado sepultado na terra que tanto o viu sofrer.

(Publicado em "Voz Anarquista", nº 13, Abril de 1976)

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Arnaldo Simões Januário, aquando da deportação para Timor. Em Dili, Agosto de 1932.

(projecto mosca)

24
Mar23

Mário Domingues (Ilha do Príncipe, 3 de julho de 1899 — Costa da Caparica, 24 de março de 1977)


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Mário Domingues e Alexandre Vieira, em casa do primeiro (c.1954). (aqui)

Mário Domingues foi um escritor talentoso e prolixo, um jornalista muito activo e um militante libertário, desde muito cedo empenhado na denuncia do racismo que grassava na sociedade portuguesa e nas colónias ultramarinas, em que a cor da pele era uma das condições básicas para o sucesso social e económico. Jornalista do diário anarco-sindicalista, A Batalha, ficaram famosos alguns dos seus artigos e crónicas recentemente reunidos em livro (“Mário Domingues – A afirmação Negra e a Questão Colonial”, ensaio e selecção de José Luís Garcia, Edições Tinta da China, Lisboa 2022)

Mário Domingues nasceu na ilha do Príncipe, na roça Infante D. Henrique, propriedade da firma Casa Lima & Gama, com sede e escritório em Lisboa, filho de mãe angolana natural de Malanje, de nome Kongola ou Munga, que tinha ido para a ilha do Príncipe como contratada (à força) com quinze anos de idade, e de António Alexandre José Domingues, oriundo de famílias liberais de Lisboa. Com dezoito meses de idade foi enviado para Lisboa, sendo educado pela avó paterna.

Aos dezanove anos de idade aderiu ao ideário do anarquismo e iniciou colaboração no diário anarco-sindicalista A Batalha e, posteriormente, no jornal anarquista A Comuna, da cidade do Porto. Nesse período participou nas atividades de um grupo libertário que, entre outros, integrava Cristiano Lima e David de Carvalho. Fez parte da redação da revista Renovação (1925-1926) e colaborou na organização do congresso anarquista da União Anarquista Portuguesa (UAP).

Após o golpe fascista de 28 de Maio de 1926, e a proibição da imprensa anarquista e anarco-sindicalista,  dedicou-se ao jornalismo e tornou-se escritor profissional. Voltou-se para a história e para os romances policiais, escrevendo mais de uma centena de livros, com os mais diversos pseudónimos..

Sem nunca abandonar o ideário anarquista, deixou a militância activa durante largos anos. Apesar disso quando em 1975 surgiu o jornal “ Voz Anarquista”, escreveu uma carta ao seu diretor e amigo, Francisco Quintal, onde dizia : “Agora, mais do que nunca, é preciso proclamar bem alto que o anarquismo não é a desordem, a violência e o crime, como as forças reacionárias têm querido qualificá-lo. Urge desfazer essa lenda tenebrosa e demonstrar ao grande público, enganado por essas torpes mentiras, que o anarquista ama e defende o ideal supremo da ordem, exercida numa Sociedade edificada na Liberdade, na Fraternidade e na Justiça Social. À Voz Anarquista cabe essa sublime tarefa, recordando o exemplo de homens superiormente lúcidos como foram Proudhon, Eliseu Reclus, Sébastien Faure, Bakunine, Kropotkine, Neno Vasco, Pinto Quartin, Campos Lima, Cristiano Lima, Aurélio Quintanilha e outros propositadamente esquecidos, que abriram aos homens o Caminho da Liberdade.”

relacionado:

https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2022/01/11/a-liberdade-nao-se-concede-conquista-se-que-a-conquistem-os-negros-artigo-sobre-mario-domingues-no-publico-suplemento-ipsilon-de-30-3-2018/

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27
Fev23

Manuel Joaquim de Sousa (1883-1944)


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Manuel Joaquim de Sousa foi um destacado militante anarquista e dirigente sindical. Sapateiro, natural do Porto, foi o primeiro secretário-geral da CGT, tendo também dirigido o diário "A Batalha" durante algum tempo. Participa na criação da Aliança Libertária, já durante o período fascista, sendo preso. Está na prisão quando se dá o levantamento do 18 de janeiro de 1934 contra a fascização dos sindicatos.
 
Manuel Joaquim de Sousa nasceu a 24 de Novembro de 1883 na freguesia de Paranhos, Porto. Depois de escassos meses de escola primária, as necessidades económicas da família atiraram-no, ainda criança, para o mundo do trabalho e da exploração. Servente de carpinteiro e de alfaiate, aos 12 anos começou a trabalhar de sapateiro, o que viria a ser a sua profissão.
Desde muito novo interessado pelas leituras, é atraído pelos ambientes anarquistas nortenhos do fim do século 19 e faz a sua aprendizagem militante nas associações de classe dos sapateiros portuenses. Carlos Nobre, Benjamim Relido e, sobretudo, Serafim Lucena, são então homens de grande projecção do anarquismo. Com eles se forma Manuel Joaquim, bem como na actividade editorial e militante do jornal O Despertar.
Por volta de 1908 participa no Grupo de Propaganda Libertária onde publica um folheto intitulado O primeiro de Maio e as suas Origens - grupo que em seguida se transforma no Cómité de Propaganda Sindicalista do Porto, peça importante na construção do sindicalismo revolucionário.
Toma parte activa no 1.° e no 2.° Congresso Sindicalista. Neste último, em 1911, são constituídas duas Uniões Operárias, a de Lisboa e a do Porto, sendo Manuel Joaquim de Sousa escolhido para secretário-geral da última.
Participa do jornal anarquista A Vida e impulsiona a actividade do Centro e Biblioteca de Estudos Sociais, verdadeiro foco de irradiação cultural e doutrinária do anarquismo nortenho. Publica então um livro intitulado O Sindicalismo e a Acção Directa. Em 1914 representa a organização sindicalista do norte no Congresso Operário de Tomar, onde nasce a União Operária Nacional, a primeira central sindical portuguesa, de orientação nitidamente sindicalista revolucionária. Tomou também parte na delegação portuguesa ao Congresso Cóntra a Guerra, em 1915, no Ferrol, a qual foi presa e expulsa para Portugal.
Tempos depois passou a viver em Lisboa e no ano de 1919 participa do Congresso de Coimbra onde a UON dá lugar à CGT. Manuel Joaquim de Sousa foi redactor das bases da Confederação, bem como da tese "Relações Internacionais". Eleito secretário-geral do primeiro Comité Confederal, ocupou esse cargo durante três anos, até ao Congresso da Covilhã. Anos de intensa fermentação revolucionária, o entusiasmo suscitado pela revolução russa, as lutas na Alemanha, na Hungria, na Itália; e, em Portugal, as greves de grandes proporções dos ferroviários, dos correios e telégrafos, do professorado, do funcionalismo, da construção civil, da metalurgia, e outros movimentos proletários. Sousa propõe a criação e redige as bases da Liga Operária de Expropriação Económica, que, seria paralelamente à C.G.T. e no plano consumidor, o organismo económico da Revolução.
Ainda neste período, e como anarco-sindicalista, Manuel Joaquim de Sousa critica publicamente as posições e actividades dos maximalistas e do Partido Comunista numa série de artigos intitulados "A boa paz", publicados por A Batalha, de que era, ao tempo, director. Em 1925 representa a sua Federação do Calçado no Congresso de Santarém.
Preso após o 7 de Fevereiro de 1928, é forçado, como todos os outros, a uma semi-clandestinidade. Participa então na criação da Aliança Libertária, e entra no seu comité executivo de Lisboa. Por estas actividades, é de novo preso, em 1933, encontrando-se na cadeia na altura do 18 de Janeiro do ano seguinte.
Doente, mas sempre mantendo o contacto com os companheiros inteira-se das suas actividades clandestinas. Morreu em Lisboa, a 27 de Fevereiro de 1944.
Os seus livros "O Sindicalismo em Portugal", com várias edições,  e "Os últimos tempos da acção sindical livre e do anarquismo militante (1926-1938)", publicado originalmente pelo jornal "Voz Anarquista", são dos melhores documentos desses tempos, passados mas não esquecidos. Foi um militante dos mais produtivos, dos mais coerentes, um lutador que dignificou a causa dos libertários.
 
Fontes: E. Rodrigues (1982). A oposição Libertária em Portugal. 1939-1974. Lisboa. Sementeira.
 

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27
Fev23

MANUEL FRANCISCO RODRIGUES (1901 - 1977)


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               Por Maria João Dias

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Professor, filósofo e escritor, opositor à ditadura fascista do Estado Novo, viveu a violência da repressão. Passou por todas as prisões políticas até ser deportado para o Campo de Concentração do Tarrafal, onde esteve três anos e meio. É autor de diversas publicações, entre as quais “Tarrafal, aldeia da morte”, considerada um valioso testemunho sobre o sofrimento dos presos políticos.
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1. Manuel Francisco Rodrigues nasce em Lisboa, a 12 de Fevereiro de 1901, filho de Carlota da Conceição Vidal, natural de S. Domingues do Vale de Figueira (Santarém) e de António Guilherme Paula Rodrigues, carpinteiro, natural da freguesia de Santa Isabel, Lisboa, moradores na Estrada de Campolide. É inteligente, de espírito culto e inquieto. É assíduo frequentador da Biblioteca Nacional quando Jaime Cortesão é o Director. Torna-se partidário das ideias anarquistas e cristãs. A sua filosofia é libertária-ramo tolstoiano. Segue também doutrinas, crenças filosóficas e práticas de cariz místico. É defensor do vegetarianismo e particante do naturismo. Funda o "Grupo dos Filhos do Sol" com o enfermeiro Virgílio de Sousa, e colabora com a Liga- Anti-Alcoólica Operária". O seu idealismo cedo o levou às grades de uma prisão política, detido durante uma noite de contestação em Lisboa.
Com vinte e poucos anos, sai do país e, durante vinte anos, viaja 10.000 Km por toda a Europa. Vive na Noruega, Suécia, Estónia, Letônia , Lituânia, Alemanha...Na Bélgica, estuda e adquire um diploma em Filosofia, no Institut Philosophique de Bruxelles. Na Alemanha, vive na aldeia vegetariano-tolstoiana de Orienburg e participa na reunião da IV Internacional em Berlim.
Em 1936, está em Barcelona e, integrado no movimento anarquista, organiza na sua casa reuniões com outros membros de destaque do movimento. Casa com Aurora Reboredo, filha do anarquista José Rodrigues Reboredo (1891-1952). Em 1938 nasce a primeira filha do casal, Aurora. No eclodir da guerra civil espanhola, luta como voluntário contra os franquistas. É ferido e perde a visão do olho esquerdo. Refugia-se em França, atravessando os Pirenéus, e vive lá alguns anos com a família. Mas acaba por conhecer a dureza dos campos de concentração de Argelès-Sur-Mer; Saint-Cyprien e Gurs. Em dezembro de 1940, e já à espera do nascimento de mais uma filha, Maria, regressa a Portugal.
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2- Em Beirã (Marvão), a 15 de Dezembro de 1940, Manuel é detido com o sogro. Fica preso no posto da GNR até 20 de Dezembro, data em que é enviado para a cadeia do Aljube (Lisboa). Em Fevereiro de 1941, é transferido para a prisão de Caxias. Em Julho de 1941 dá entrada no Forte de Peniche, onde fica dois meses e, em 4 de Setembro de 1941, embarca para o Campo de Concentração do Tarrafal (Cabo Verde), com José Rodrigues Reboredo e outros antifascistas. Julga que é um engano, mas cedo as suas esperanças se desvanecem. Aí vai encontrar dois conhecidos: um antigo amigo dos tempos de juventude, o enfermeiro Virgílio de Sousa Coelho, que chegou ao Tarrafal a 12 de Junho de 1937 e de lá sairá apenas a 23 de Janeiro de 1946, e o operário metalúrgico José de Sousa Coelho, que deu entrada no Tarrafal a 29 de outubro de 1936 e sairá a 10 de Fevereiro de 1945. Conhece de nome apenas mais quatro ou cinco deportados. Considera que a sua prisão é um engano e uma injustiça, pois nem sequer foi julgado. Escreve cartas de apelo às autoridades civis e religiosas de então. Não obtém resposta. Apenas o castigo de conhecer durante vários dias a " frigideira".
Ao fim de 3 anos e meio de cativeiro, sem julgamento, regressa do “Campo da morte lenta” em 20 de Fevereiro de 1945 (1). Vai residir para o Porto e fica impedido de sair do país. Dedica-se à tradução e à docência. Em 1946, casa com Lucília Branca Dias, natural do Porto, professora de Educação Musical em vários liceus do Porto e Chaves. Em 1948, nasce a única filha do casal, Lucília Dias Rodrigues. Vive com a família em Matosinhos, durante alguns anos. Regressa ao Porto e vai residir para a Rua de Santa Catarina. Lecciona Filosofia e Línguas na Escola Comercial Oliveira Martins, no Liceu Nacional de Chaves, no Instituto Francês e em vários Colégios particulares. Liga-se a várias colectividades, entre as quais a Associação de Jornalistas e Homens do Porto, à Liga Portuguesa de Profilaxia Social , onde trabalhou com o Dr. António Emílio de Magalhães em vários projectos, um dos quais era acabar com o "hábito" de andar descalço. Em 1958, apoia a candidatura do General Humberto Delgado. Vai esperá-lo à estação de S.Bento, e é um dos que o carrega em ombros .
Nas décadas de 50 e 60, publica vários livros, em edição de autor, com o pseudónimo Oryam. Memórias (1950) e Cântico de Oryam contam experiências vividas por ele (3). Recebe um prémio literário pela União de Autores Latinos.
Em 1974, adoece e pouco usufrui do tempo em Liberdade. Organiza tudo o que tinha escrito, há muito, sobre o Tarrafal e a 3 de Julho, em edição de autor, finalmente pode publicar a sua obra mais importante e escondida durante décadas: "Tarrafal aldeia da morte | O diário da B5”. É um dos primeiros livros publicados sobre o campo de concentração. Trata-se de um relato na primeira pessoa, em 327 páginas, de uma obra ilustrada. Nesse ano, a obra tem mais duas edições, pela Brasília Editora (2) e recebe o Prémio Literário " 25 de Abril" para Ensaio Político, na Feira do Livro do Porto. Anuncia a publicação de mais três livros, que não chegarão ao prelo, devido ao seu estado de saúde. Mas publica ainda " Socialismo em Liberdade", em 1975.
Considerado um homem bondoso e simples, os últimos anos de vida passa-os doente e cego, mas “conservou sempre o aprumo que lhe tinham querido roubar nas prisões fascistas”. Morre no Porto, a 28 de setembro de 1977, tão anónimo e tão discreto como viveu (4).
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2 - Depoimentos:
Por Antónia Gato
«Manuel Francisco Rodrigues foi um homem extraordinário. A sua obra “Tarrafal Aldeia da Morte - o diário da B5”, é a melhor obra sobre o Campo do Tarrafal. Anarca-cristão tolstoiano, trabalhou como repórter, professor, tradutor de línguas estrangeiras e autor de várias obras literárias onde se apresenta ao público com o pseudónimo de Oryam. Integrado no movimento anarquista, casou em Espanha com a filha de José Rodrigues Reboredo e combateu como voluntário na guerra civil contra os franquistas.
Acompanhado pela família atravessou os Pirenéus e refugiou-se em França mas acabou por conhecer a dureza dos campos de concentração de Argelès-Sur-Mer; Saint-Cyprien e Gurs. Em dezembro de 1940 regressa a Portugal e, juntamente com o sogro, é detido e posteriormente deportado para o Tarrafal " -
In: Tese de Doutoramento de Antónia Maria Gato Pinto, TARRAFAL: RESISTIR COMO PROMESSA - O poder de transformar uma experiência de opressão numa história de grandeza. In: file:///C:/Users/Utilizador/Downloads/CCT.pdf
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Por Diana Cortez:
"Manuel Francisco Rodrigues era meu vizinho. Tinha uma sala cheia de livros, tantos que chegavam ao tecto. Estava cego, já não os lia... Passava os dias de sol no quintal, à sombra da japoneira e os restantes em casa a ouvir música clássica. Às vezes pedia-me que lhe lesse. Eu não entendia o que lhe lia, muito menos porque sorria quando me ouvia. Diziam ser muito inteligente mas eu não sabia porquê.
Hoje sei que era filósofo, poeta, professor e escritor, cujo pseudónimo era Oryam.
Foi perseguido por ser inteligente e ter ideais anti-fascistas, esteve detido em vários lugares, entre eles, o campo de concentração Tarrafal, onde terá vivido dias de terror."

3. Outras publicações
O Cântico de Oryam, Colecção Oryam (Nº 2) Editora: Edição do Autor, 1ª Edição, 1957, Porto – Imprensa Social Secção da Coop. do Povo Portuense.
A Ideia Venceu a Morte, Colecção Oryam (Nº 3). Edição do Autor, 1ª Edição, 1958, Porto – Tip. J. R. Gonçalves, Limitada.
Socialismo em Liberdade, 1ª ed ,1975

Notas:
(1) Chegaram ao Tarrafal sucessivas levas de presos. As primeiras ocorreram em 1936 (151 deportados) e em 1937 (57 deportados). Mais tarde, à medida que a II Guerra Mundial foi evoluindo favoravelmente para os Aliados, decresceram os números da deportação. Na sua maioria, esses presos ultrapassaram largamente as penas a que tinham sido condenados; e, por vezes, nem sequer eram julgados, funcionando o campo como um desterro sem lei, isto é, de acordo com as leis fascistas de Salazar. Em 1939 verificam-se as primeiras saídas do campo, esporádicas, mas só em 1944 se regista um movimento significativo de libertações, cerca de uma trintena. O campo, aberto em Outubro de 1936, seria fechado em 1954. Foram 36 os prisioneiros políticos que morreram no Tarrafal: 32 portugueses, 2 angolanos e 2 guineenses. Os restos mortais dos portugueses só depois do 25 de Abril puderam voltar à pátria: Em 1961, o Ministro do Ultramar Adriano Moreira reabre-o para nacionalistas africanos, com a designação de Campo de Trabalho de Chão Bom.
(2) Excertos da sua obra "Tarrafal aldeia da morte":
«Quando os primeiros deportados chegaram, encontraram pedregulhos, vento, calor e mosquitos. Então ainda não havia as casernas, nem o «Posto de Socorros», nem a cozinha, nem as oficinas. Tudo isso se fez depois. O que havia já era o arame farpado e a água do poço. Fizeram umas toscas barracas de lona e, passados alguns meses, morreram os primeiros oito reclusos... Só num dia morreram três... depois mais três... e mais dois... Os cadáveres foram transportados a pau e corda para o cemitério. Então ainda não havia o luxo da camioneta. (,,) Depois, abriu-se a pedreira e mandou-se fazer uma marreta que pesava uma arroba. Sob os raios quentíssimos do sol, os forçados arrancavam e transportavam a pedra e, em longa e interminável fileira custodiada por soldados negros, acarretavam a água do poço para as necessidades do povo da aldeia. Quando um escravo caía, vítima do paludismo mortífero, outro era imediatamente escolhido para o substituir. E, depois, como se tudo isso não bastasse, construíu-se a célebre «Frigideira»...isto é: -a antecâmara do cemitério. A «Frigideira» é um bloco de cimento, dentro do qual há um orifício onde emparedam os reclusos que caem na desgraça de não agradar aos que estabelecem as ordens.
(…) Sob a acção do sol, a temperatura vai subindo dentro do buraco... sobe... sobe... sobe!... O desgraçado ou desgraçados que lá estão vão suando... suando... até ficarem cozidos e depois assados. É claro que, submetidos a esse tratamento, morrem muito mais depressa, sobretudo quando o ingresso no buraco se faz ao som das chicotadas do cavalo- marinho rasgando as costas dos condenado, às quais se seguem os consagrados rigores do jejum periódico forçado.»
(3) Catalogado na Livraria Fernando Sanos em Filosofia, em 244 páginas e com a descrição: «10.000 kms através da Europa. – A aldeia vegetariano-tolstoiana de Orienburg. – A lição dos Três Profetas na maravilha nevada do Wildhorn sobre o Homem e o Universo. – O país do sol da meia-noite, o acampamento de Krishnamurti e o ocaso de Viena de Áustria. – Franz Korscnher e Stefan Zweig. – A Academia de Estudos filosóficos fundada por Anakreon no oásis grego de Zágora».
(4) «Quando o conheci era um velho no limite da resistência humana, deixara em vários cativeiros o vigor, a força e a vontade férrea que sempre o tinham animado. (…) Da vida que dedicou à Paz no mundo restam apenas, além dos seus livros, recordações mais ou menos vagas daqueles que o conheceram. (…) Se continuarmos assim, esquecendo ou minimizando, de ânimo leve, Homens de tal envergadura, o “dia em que soará na terra a hora da fraternidade, da Paz justa e sincera” estará cada vez mais longe e, em breve, estaremos de novo envoltos nessa paz podre e vergonhosa de que tão dificilmente nos libertámos» - Sílvia Barata Gonçalves da Silva (Rio Tinto) em “Tribuna Livre”, 27 Maio 1979.
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Fontes:
- ANTT Registo Geral dos Presos nº 12946
https://www.livrariafernandosantos.com/.../memorias-de.../
http://im-parcial.blogspot.com/.../tarrafal-aldeia-da...
https://seculopassadolivros.com/.../a-ideia-venceu-a.../
http://media.diariocoimbra.pt/.../55b02a81-e5dc-469e-9676...;
https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4820829
- Tribuna Livre (secção de jornal não identificado) – artigo de Sílvia Barata Gonçalves da Siva, em homenagem a Manuel Francisco Rodrigues
- Correspondência de MFR com leitores das suas obras.
Informações da filha, Lucília Dias Rodrigues, Diana Cortez e da investigadora Antónia Gato Pinto. 

aqui: https://www.facebook.com/FascismoNuncaMais/photos/a.559109110865139/2332024566906909/

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30
Jan23

Manuel Firmo, uma vida de combatente anarquista: da resistência ao fascismo em Portugal à guerra civil espanhola, dos campos de concentração franceses ao Tarrafal


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Manuel Firmo durante a Guerra Civil Espanhola

Na madrugada de 30 de Janeiro (de 2005) faleceu no seu domicílio, em Barcelona, o último (tanto quanto sabemos) militante libertário que combateu na Guerra Civil da vizinha Espanha, de 1936 a 1939, e o último também dos que padeceram no campo de concentração do Tarrafal.

Manuel Firmo, o mais velho de três irmãos – todos libertários – nasceu no Barreiro a 9 de Setembro de 1909, filho dum maquinista do Caminho de Ferro do Sul e Sueste. O pai foi transferido para Faro em 1914 e foi nesta cidade que Manuel frequentou a instrução primária.

 Regressado com a família ao Barreiro em Dezembro de 1918 começou a trabalhar numa fábrica de cortiça com doze anos incompletos. Despedido em consequência duma greve, foi sucessivamente servente de pedreiro, contínuo nos escritórios da CUF (donde foi despedido por se recusar a denunciar dois colegas) e novamente operário da indústria corticeira.

 Desejoso de melhorar os seus conhecimentos frequentou a biblioteca da Associação dos Corticeiros e, posteriormente, a do Sindicato dos Ferroviários. Fez exame de admissão às Oficinas Gerais do Caminho de Ferro do Sul e Sueste onde aprendeu o ofício de serralheiro. Aprendeu Esperanto e iniciou a sua militância anarco-sindicalista.

Em 1936, estando em risco iminente de ser preso pela polícia política em virtude da sua actividade militante, fugiu para Espanha. Detido por entrada ilegal, foi libertado ao cabo de algumas semanas por intervenção do antigo presidente da República Bernardino Machado, então exilado em Madrid.

 Para esta cidade se dirigiu e um mês depois deu-se o golpe militar fascista de 18 de Julho. Manuel Firmo incorporou-se nas milícias da CNT e foi enviado para a frente, em Somossierra. Dadas as más condições de alojamento, vestuário e alimentação combinadas com o frio rigoroso desse primeiro inverno adoeceu com pneumonia, numa época em que não existiam ainda antibióticos. A gravidade da situação determinou a sua evacuação, primeiro para Madrid e depois para Valência, onde convalesceu.

Com a incorporação das milícias no exército regular da República, Manuel Firmo, dadas as suas habilitações profissionais, foi integrado na aviação republicana como sargento mecânico.

O avanço nacionalista levou à evacuação da força aérea para Barcelona e, posteriormente, à retirada do exército governamental para a fronteira pirenáica, no que foi acompanhado por muitos milhares de civis.

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Manuel Firmo no Campo de Concentração de Gurs (França)

Ao entrar em França foi internado, como a maior parte dos refugiados, em campos de concentração sem as mínimas condições de alojamento, higiene ou alimentação. Passou pelos ignominiosos campos de Argelés-sur-Mer e de Gurs, sendo requisitado para trabalhar numa fábrica de material aeronáutico após a entrada da França em guerra com a Alemanha. À capitulação seguiu-se o reenvio para o campo concentração e ulterior incorporação em companhias de trabalho com características de companhias disciplinares.

Ao ter conhecimento de que se projectava o envio para a Alemanha duma força de trabalho composta de refugiados espanhóis, Manuel Firmo decidiu fugir de França e regressar a Portugal. Detido na fronteira, passou longos meses em prisões metropolitanas (Aljube, Caxias, Peniche) sendo finalmente enviado para o campo de concentração do Tarrafal, sem sombra de processo judicial.

 Finda a II Guerra Mundial foi libertado ao fim de 53 meses de encarceramento. Sendo-lhe muito difícil encontrar trabalho em Portugal, ao fim de dois anos emigrou para Angola onde esteve colocado inicialmente numa empresa de exploração de sisal e, mais tarde, na Companhia dos Caminhos de Ferro de Benguela. Aí se lhe juntaram os dois irmãos.

Regressou a Portugal e, decorridos dois anos, partiu para Barcelona onde reside a família da esposa, aí permanecendo até à sua morte.

Enquanto a saúde lho permitiu vinha a Portugal todos os anos, nas férias estivais. Nessa altura costumava frequentar o C.E.L., participando nas suas actividades e, nomeadamente, proferindo aí algumas palestras.

Manuel Firmo era um homem culto, autodidacta, que escrevia com elegância. Deixou-nos um livro autobiográfico, "Nas Trevas da Longa Noite, da Guerra de Espanha ao Campo do Tarrafal", editado por Publicações Europa-América.

A sua colaboração em A Batalha, encontra-se reunido «Caderno d' A Batalha» – Em torno da Guerra Civil Espanhola – publicado em 2003. Deixa ainda outra obra que não chegou a ser editada por haver adoecido e não poder acompanhar a sua revisão.

Mas o que sempre mais nos impressionou nele foi a extrema correcção e delicadeza, a atitude tolerante e bondosa, o bom senso, a simplicidade e a sua cultura.

Para a esposa Josefa, que o acompanhou nos momentos dificeis do exílio, também ela internada num campo de refugiados em França, que sofreu a separação dos longos anos de prisão e o acompanhou indefectivelmente em Portugal, Angola e Espanha, nomeadamente nos últimos anos de doença e invalidez, vai a manifestação do nosso pesar, bem como para o seu irmão, cunhada e sobrinhos, familiares da esposa e amigos mais íntimos.

O Colectivo Redactorial de A Batalha, nº 209 (Março, 2005)

Relacionado: http://utopia.pt/edicoes/Binder19.pdf

https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Firmo

https://rastrosderostros.wordpress.com/2014/12/13/manuel-firmo-sindicalista-anarquista-y-esperantista/

https://estudossobrecomunismo2.wordpress.com/2005/02/05/morte-de-manuel-firmo-sindicalista-anarquista-e-esperantista/

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https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4293964

 

20
Jan23

Abílio Gonçalves: o último sobrevivente anarco-sindicalista do Campo de concentração do Tarrafal, em Portugal, morreu a 20 de janeiro de 2004


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(foto publicada na revista Utopia, 17)

Com a morte de Abílio Gonçalves (1911-2004), antigo amassador de pão, resistente anarquista ao fascismo,  desaparecia, em Portugal, o último sobrevivente anarco-sindicalista do Campo de concentração do Tarrafal.  Vivo permanecia ainda Manuel Firmo, também antigo preso anarco-sindicalista do Tarrafal, mas a viver há longos anos em Barcelona. Morreu um ano mais tarde, em Janeiro de 2005, com 95 anos.

Abilio Gonçalves foi preso no próprio dia 18 de janeiro de 1934, em Lisboa, sendo desterrado para o Campo do Tarrafal logo na primeira leva de presos, tendo estado ali detido durante 10 anos (1936-1946),  sujeito aos piores maus tratos.

Nos anos a seguir ao 25 de Abril de 1974, Abílio Gonçalves explorou um pequeno restaurante em Pinheiro de Loures, juntando à sua volta um grupo de jovens muito activo, de raíz operária e estudantil.

Colaborou também no reaparecimento de A Batalha e a sua presença na sede da Angelina Vidal era frequente. O jornal A Batalha, nº 203, traçava deste modo o retrato do companheiro desaparecido:

"Na madrugada de terça feira, 20 de Janeiro próximo passado (2004), faleceu na sua residência em Pinheiro de Loures, aos 92 anos, o companheiro Abílio Gonçalves. Nos últimos meses a sua precária saúde obrigara a sucessivos internamentos hospitalares. Abílio Gonçalves nasceu no lugar de Vinhó, próximo de Coja, concelho de Arganil, em 16 de Outubro de 1911. Era filho de José Gonçalves e Guilhermina de Jesus. Dificuldades económicas familiares apenas lhe permitiram frequentar por pouco tempo a instrução primária, lançando-o precocemente no mundo do trabalho. Após alguns anos nas fainas agro-pastoris veio para Lisboa onde foi marçano, aprendendo em seguida o ofício de padeiro (amassador). Casou e teve uma filha.

Filiado na Associação de Classe dos Manipuladores de Pão frequentou na respectiva escola sindical o ensino elementar. Foi eleito secretário da Mesa da Assembleia Geral e, mais tarde, membro da Comissão Administrativa do sindicato. Foi nesta qualidade que participou activamente na organização da greve geral de 18 de Janeiro de 1934 contra a fascização dos sindicatos. Estava então empregado numa padaria da Rua D. Pedro V.

Denunciado por um colega de trabalho que era informador da polícia política, foi preso naquele mesmo dia 18 após o fracasso do movimento. Seguiram-se os interrogatórios e espancamentos policiais, a transferência para o Presídio Militar da Trafaria e o julgamento em Tribunal Militar com condenação a 10 anos de prisão e degredo. A 8 de Setembro de 1934 é enviado a bordo do «Lima» para o forte de S. João Baptista, em Angra do Heroísmo, aonde aportou ao cabo de 5 dias de viagem. Em Angra foi, como os outros, sujeito a frequentes espancamentos e a encerramento de castigo na poterna. Permaneceu nesta fortaleza até 23 de Outubro de 1936, data em que foram embarcados no vapor «Luanda» com destino ao campo de concentração do Tarrafal (Cabo Verde). Aí sofreu todas as agruras do campo, nomeadamente a inclusão na «brigada brava» e demoradas estadias na célebre "frigideira". Assistiu impotente à doença e morte, sem assistência médica, de vários companheiros, entre os quais Pedro Matos Filipe, Arnaldo Simões Januário, Mário Castelhano, Abílio Augusto Belchior, Joaquim Montes, Manuel Augusto da Costa, etc.

Abrangido pelo decreto de amnistia de Outubro de 1945, regressou à metrópole em 1 de Fevereiro de 1946, a bordo do paquete «Guiné», sendo posto em liberdade. Atravessou dificuldades consideráveis para arranjar trabalho, nasceu nessa época o seu segundo filho e algum tempo depois foi para Moçambique, onde se lhe juntariam os filhos. Alguns anos depois foi para a Suazilãndia. Regressou a Portugal algum tempo depois do 25 de Abril, tendo montado um pequeno restaurante em Pinheiro de Loures. Suspendeu a sua actividade há cerca de dez anos.Sócio do Centro de Estudos Libertários, foi presidente do seu Conselho Fiscal (1987) e membro da sua Comissão Administrativa (1988 e 1989). Foi igualmente assinante e colaborador do jornal A Batalha. Com a sua morte desaparece, em Portugal, o último sobrevivente anarco-sindicalista do Campo de concentração do Tarrafal. No funeral estiveram presentes familiares, amigos, dois sobreviventes do Tarrafal, o CEL / A Batalha e outros companheiros libertários."

A morte de Abilio Gonçaves foi também registada nas páginas da revista Utopia. por José Maria Carvalho Ferreira.

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aqui

 

16
Jan23

PAULO JOSÉ DIAS (1904 - 1943), assassinado pelo fascismo no Tarrafal


 

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Sobre Paulo José Dias, morto no Tarrafal a 13 de Janeiro de 1943, de tuberculose, não há muitos dados. A sua morte é, no entanto, sentidamente relatada no livro do anarquista Manuel Francisco Rodrigues ("Tarrafal, aldeia da morte") que refere ter sido ele acompanhado até ao último suspiro pelo anarquista Joaquim Duarte Ferreira, um elemento destacado da Organização Libertária Prisional. 
 
*
 

Natural de Lisboa, nasceu a 24 de Janeiro de 1904, filho de José Paulo Dias e de Maria Picôto Dias. Fogueiro marítimo, libertário, foi preso em 7 de julho de 1939, "para averiguações" - segundo informação do Registo Geral de Presos da PVDE. Quinze dias depois, foi transferido para o Reduto Norte da Cadeia de Caxias.
Em despacho do Director da PVDE (capitão Agostinho Lourenço), de 29 de Fevereiro de 1940, foi determinado que se mantivesse em prisão preventiva, devendo ser transferido para Cabo Verde até se esclarecer a situação internacional [ este curioso despacho precede o envio de Paulo Dias para a 1.ª Esquadra, em 4 de Junho de 1940 e, de novo, para o Reduto Norte de Caxias em 7 de Junho de 1940.
Em 21 de junho de 1940, embarcou com destino ao Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, onde faleceu, com 39 anos de idade, a 13 de janeiro de 1943. (1)

(1) «Manuel Francisco Rodrigues, um dos tarrafalistas que sobreviveu à " aldeia da morte", assistiu à morte de Paulo Dias, que
morreu de tuberculose galopante, após 4 meses de cama. Escreveu no seu livro: " Dizia-me ele, três dias antes de morrer: -- A hora da justiça vai chegar e eu, que estou aqui injustamente, sem culpas , sem processo e sem julgamento, voltarei em breve abraçar os meus fllhos, sim, os meus filhos, pobrezinhos!...» À cabeceira da cama tinha uma moldura com as fotografias dos filhos e da esposa. Eram tão bonitos, os filhos!... Mas já não os verá mais. Já morreu!...»
In "Tarrafal, Aldeia da Morte" de Manuel Francisco Rodrigues, pág. 107.

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30
Nov22

Acácio Tomás de Aquino (1899-1998): O testemunho anarquista da violência das prisões atlânticas do fascismo


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Acácio Tomás de Aquino (Lisboa, Alcântara, 9 de Novembro de 1899 - Lisboa, 30 de Novembro de 1998), militou nas Juventudes Sindicalistas e depois na Confederação Geral do Trabalho, tendo colaborado também  no jornal "A Batalha" e participado na preparação do 18 de Janeiro de 1934. Preso e deportado primeiro para Angra do Heroísmo, esteve depois 13 anos no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde.

Acácio Tomás de Aquino nasceu, em Lisboa, no bairro de Alcântara, a 9 de Novembro de 1899 e aí morreu a 30 de Novembro de 1998.  Exerceu várias profissões: operário da construção civil, trabalhador da Câmara Municipal de Lisboa, de 1918 a 1922, e ferroviário, de 1926 até à sua prisão, em 1933.

Foi militante anarco-sindicalista da Confederação-Geral do Trabalho, filiado nos Sindicatos dos Metalúrgicos, dos Trabalhadores do Município e da Construção Civil, entre 1919 e 1933.Foi, ainda, secretário da Federação dos Sindicatos da Construção Civil e da Confederação Geral do Trabalho.

Foi colaborador da imprensa operária e sindical, nos jornais A Batalha e O Construtor. Membro do comité da CGT organizador da greve geral de 18 de Janeiro de 1934, foi preso a 11 de Dezembro de 1933, sob acusação de ter entregue bombas a outro activista na Estação do Rossio, estando, por isso preso quando se deu a greve geral .

Foi condenado a 12 anos de degredo em prisão, pelo Tribunal Militar Especial, no dia 9 de Março de 1934. A 8 de Setembro desse ano seguiu primeiro para Angra do Heroísmo, sendo transferido para o Tarrafal, Cabo Verde, a 23 de Outubro de 1936. Teve um papel preponderante na Organização Libertária Prisional, que agrupava os presos libertários que se encontravam no Tarrafal. Regressou a Portugal a 10 de Novembro de 1949, mas só alcançou a liberdade total, a 22 de Novembro de 1952.

Depois do 25 de Abril de 1974, colaborou com diversas organizações e jornais libertários, sobretudo no jornal A Batalha, que ajudou a renascer, e publica um dos livros mais importantes sobre a vivência dos presos quer em Angra do Heroísmo, quer no Tarrafal, com inúmeros documentos daquela época “O Segredo das Prisões Atlânticas, em que relata também as divergências entre os anarquistas e os comunistas, transcrevendo correspondência entre a Organização Comunista Prisional e a Organização Libertária Prisional, em que critica os comunistas, nomeadamente, Bento Gonçalves, Secretário- geral do Partido Comunista Português, entre outros, acusando-os de colaboracionismo.

Pertenceu à cooperativa editora de A Batalha, ao Centro de Estudos Libertários, ao Grupo Fanal, federado na FARP, e também à URAP, a União dos Resistentes Antifascistas Portugueses, colaborando empenhadamente na trasladação para Portugal dos restos mortais dos antifascistas portugueses mortos no Tarrafal.

No 1º de Maio de 1974 desfilou com o seu companheiro, também ex-militante da CGT,  José Francisco, na Avenida Almirante Reis, na primeira grande manifestação após o 25 de Abril, erguendo a bandeira da Secção de Belém do Sindicato Único Metalúrgico, vermelha listada-a-preto, que tinha guardada e escondida durante todos aqueles anos. Aos dois companheiros, Acácio Tomás de Aquino e José Fransciiso, rapidamente se juntaram dezenas de companheiros nessa primeira e imponente manifestação do 1º de Maio,

Para além de “ O Segredo das Prisões Atlânticas, Lisboa, A Regra do Jogo, 1978”, colaborou também no livro colectivo “O 18 de Janeiro e Alguns Antecedentes, Lisboa, A Regra do Jogo, 1978", repondo a verdade história sobre a greve geral contra a fascização dos sindicatos.

Ver: "Quatro Itinerários Anarquistas - Botelho, Quintal, Santana e Aquino -, de João Freire, edições A Batalha, 2019.

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28
Out22

José Correia Pires: textos e notas por ocasião do 46º aniversário da sua morte


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O anarquista e antigo tarrafalista José Correia Pires nasceu em 1907, em Messines, no Algarve e morreu a 28 de Outubro de 1976, em Almada, onde residia. Um vida dedicada à militância anarquista primeiro em tempos de Republica; depois contra o fascismo, na clandestinidade e no Tarrafal;  mais tarde, já em democracia, com a fundação do jornal Voz Anarquista e do Centro de Cultura Libertária, em Almada.

Carlos Gordilho, que o conheceu e acompanhou, recolheu alguns dados sobre José Correia Pires e coligiu-os, levantando a questão dele – tão prolixo na escrita – ter deixado tão poucos textos enquanto esteve no Tarrafal (8 anos) e lançando a pergunta: “após 46 anos da sua morte, emerge a questão da sobrevivência dos seus escritos do campo de concentração do Tarrafal. Os escritos deste autor desapareceram ou encontram-se depositados, organizados e indevidamente identificados em fundos documentais?”

O também tarrafalista António Gato Pinto, residente no Barreiro, foi um dos seus amigos e companheiro e a ele se deve ter guardado no seu espólio alguns textos de José Correia Pires, entre os quais a versão original do livro “A Revolução Social e a sua Interpretação Anarquista” (publicado em 1975).

Textos e anotações sobre José Correia Pires, anarquista, coligidos e contextualizados por Carlos Gordilho

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José Correia Pires

"Podem chacinar-nos, podem algemar a liberdade, podem erguer uma prisão em cada lar e abrir uma sepultura em cada metro de terra! Os homens tombarão, mas as ideias nobres ficarão sempre de pé até que, por sua vez, possam triunfar sobre o último dos algoses".

(J. Correia Pires)

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Campo de Concentração do Tarrafal onde José Correia Pires  esteve preso durante 8 anos

1 – ONDE PARAM OS ESCRITOS DE JOSÉ CORREIA PIRES NO TARRAFAL?

O tarrafalista António Gato Pinto, nunca se declarou anarquista, mas era de orientação libertária. Entrou no campo de concentração do Tarrafal na primeira leva de prisioneiros, em 29 de outubro de 1936. Libertado, saiu em 1949. Conhece José Correia Pires no primeiro momento em que este chega ao campo, no dia 12 de junho de 1937. Ficam amigos por longos anos. E nessa posição de entreajuda, trabalham em conjunto, quando José Correia Pires instala uma carpintaria e uma loja de mobiliário, ambos os espaços na avenida D. Afonso Henriques, em Almada, e uma sucursal na Baixa da Banheira, Barreiro, área onde reside António Gato Pinto.

C. Pedro, pseudónimo de José Correia Pires, entra a 1 de março de 1946 no Comité Confederal, substituindo "Camilo", como elemento de ligação entre o Comité e o Conselho Confederal. No vigésimo nono ano da fundação do jornal «A Batalha», "apreciou-se o artigo de fundo escrito por C. Pedro para o próximo número de «A Batalha», que foi aprovado, embora Pinto e Lima (pseudónimos) tivessem feito algumas observações por causa das alusões à Rússia".

Esta referência à pratica de escrita de José Correia Pires, procura destacar a sua participação dotada de uma preparação intelectual e desambigua afirmação ideológica. Por esse motivo é surpreendente que lhe seja atribuído, isto no âmbito do espólio de António Gato Pinto,  a autoria de só dois manuscritos (um artigo de fundo que circulou no sector libertário do campo (1938) e  uma carta de despedida (1945) em co-autoria com José Rodrigues Reboredo, quando saiu do campo), tendo-se em conta que antes de ser deportado, em 1937, para o campo de concentração do Tarrafal, onde permaneceu oito anos, já publicava artigos de opinião na imprensa regional do sul do país. No período do seu exílio em Espanha (1932), editou um número do órgão da Federação Anarquista de Portugueses Exilados, «Rebelião», inserindo nesta publicação com 25 páginas vários artigos da sua autoria.

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Imagem: visita de Edgar Rodrigues (à direita) a Paiva Moura, em Almada.

2 - PERFIL BIOGRÁFICO DE JOSÉ CORREIA PIRES, POR EDGAR RODRIGUES.

Correia Pires nasceu em Messines, Algarve no ano de 1907.

Ali aprendeu três importantes conhecimentos: a ler, a profissão de carpinteiro e as ideias anarquistas.

Pouco depois ingressa nas Juventudes Sindicalistas e luta até ser preso em 1932, sendo então conduzido para o Aljube de Lisboa.

Libertado, volta à luta e participa do movimento de 18 de Janeiro de 1934. Mas o insucesso deste obriga-o a exilar-se em Espanha onde chega clandestinamente.

Ali viveu algum tempo sem conseguir emprego. Foi o seu amigo José Rodrigues Reboredo quem lhe conseguiu meios para sobreviver pelo seu próprio esforço.

Antes de explodir a revolução em Espanha retorna a Portugal e depois de viver na clandestinidade por algum tempo, trabalhando no sector da Federação Anarquista da Região Portuguesa (F.A.R.P.) acaba preso, processado e enviado para o Campo de Concentração do Tarrafal, de onde regressou combalido, praticamente incapaz fisicamente de exercer a sua profissão.

Assim mesmo não perdeu as convicções anarquistas. Lutou sempre escrevendo e dando exemplos de tolerância, de bondade e de coerência libertária.

Estudou na universidade da vida que lhe abriu suas portas bem cedo, e nela conseguiu grandes conhecimentos, uma excelente cultura sociológica, tornou-se um autodidacta respeitável, um homem bom!

Escrevia e falava sem dificuldades, com fluência, raciocinava progressivamente, fora sempre um anarquista actualizado.

Com o derrube da ditadura fascista portuguesa, uniu-se aos seus companheiros que haviam escapado aos 48 anos de perseguições. A todos movia a mesma intenção: publicar A Batalha. Mas o comportamento autoritário, de intolerância e o desejo de supremacia de alguns sobreviventes, fê-lo retornar a Almada e com Francisco Quintal, Sebastião Almeida, Jorge Quaresma, José Eduardo, Paulo Lola, Adriano Botelho, entre outros, fundar Voz Anarquista, onde colaborou até morrer, em Outubro de 1976.

Antes, porém escreveu a publicou 2 livros: Memórias de Um Prisioneiro do Tarrafal e A Revolução Social e a sua Interpretação Anarquista.

Pode dizer-se que Correia Pires se realizou, assistiu à derrocada da ditadura fascista portuguesa, ao desfalecimento dos seus algozes, a famigerada P.I.D.E., pôde ajudar a fundar um jornal genuinamente anarquista e morreu como viveu, de bem consigo mesmo, com o seu Eu, homem bom como sempre fôra.

(in Edgar Rodrigues, «A Oposição Libertária em Portugal - 1939/1974», pp. 203)

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3 - O PAPEL DE JOSÉ CORREIA PIRES, NO REAPARECIMENTO DO MOVIMENTO ANARQUISTA ORGANIZADO

É um elemento do grupo anarquista de Almada «Luz e Vida», e a partir de março de 1946, é também membro do comité confederal da C.G.T..

"Informei então das tentativas feitas no sentido de dar vida ao anarquismo militante, com organização própria, a primeira por um grupo de Lisboa, da qual fazia parte o camarada Lima, há perto de dois anos, que distribuiu um questionário aos camaradas e grupos anarquistas conhecidos e em actividade, pedindo a sua opinião sobre os vários pontos apresentados, entre os quais estava o sistematizado que devíamos optar de relação com o movimento operário. Era intenção do grupo distribuidor do questionário fazer uma publicação com todas as respostas recebidas e se as mesmas fossem favoráveis á organização específica dos anarquistas ou à criação dum simples comité de relações entre os grupos autónomos, convocar todos os grupos e camaradas para uma conferência plenária onde se tomariam acordos definitivos, num ou noutro sentido.

Só dois grupos, de lisboa, mandaram resposta ao questionário. Ultimamente um grupo de Almada, "Luz e Vida", distribuiu uma circular interessando os camaradas anarquistas na sua organização regional."

(Texto extraído do relatório do delegado da C.G.T. a Coimbra em 8 de novembro de 1947, in Edgar Rodrigues, «A Oposição Libertária em Portugal - 1939/1974», pp. 298-307)

Observação: o camarada Lima é o anarquista Adriano Botelho. A carta-questionário foi distribuída no ano de 1945. Mais tarde, em 1982, foi publicado no livro de Edgar Rodrigues, por nós aqui destacado,  pp. 95-97. O relatório está assinado por Vicente, pseudónimo  de Vivaldo Fagundes, e pelas letras M.R. (Moisés Ramos), Lisboa, 8/11/1947.  Aquando da sua chegada a Lisboa, no regresso do campo de Concentação do Tarrafal, onde permaneceu oito anos, José Correia Pires foi libertado no Forte de Caxias, a 9 de março de 1945.

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4-GRUPO ANARQUISTA DE ALMADA (CLANDESTINO) «LUZ E VIDA»

O grupo anarquista “Luz e Vida” é o grupo anarquista de Almada (clandestino), que depois de 25 de Abril de 1974 veio a designar-se “Grupo Cultura e Acção Libertária”, editor do jornal Voz Anarquista.        

“Prezados camaradas:

Subordinados à ideia de dar às actividades dos anarquistas portugueses um carácter homogéneo e eficiente, tanto na defesa e empenhamento do anarquismo, como na conquista de mais liberdade [...], foi, por um grupo anarquista de Lisboa, distribuído uma circular questionário, que este grupo (Luz e Vida) considera oportuno e assás interessante e à qual nos propomos responder:

A) organização especifica - à pergunta feita se veem os indivíduos continuarem a agrupar-se à base de afinidade ou entre os que vivem mais próximos, diremos: - o princípio de afinidade deverá ser sempre o preferido, não só como determinação a nosso princípio ideal mas muito especialmente como exigência de um maior aproveitamento do nosso labor revolucionário e ideológico, sabido com é que todo e qualquer empreendimento reclama sempre muita compreensão e geral entendimento entre os respectivos empreendedores. Diz-nos a experiência que quando não há a verdadeira afinidade entre um agrupamento, uma organização perde-se um tempo enorme com discussões inúteis e dificilmente pode surgir trabalho eficiente e valioso de agrupamentos que não assentem no princípio de afinidade. Assiste-se muitas vezes entre camaradas nossos a discussões estéreis e facilmente altercando-se sem motivo justificado exactamente por não haver entre si muita simpatia e menos afinidade, explodindo por vezes tempestades pouco edificantes e que em nada nos elevam. Significa isto, que o princípio de afinidade é entre nós o preferido, embora não deixemos de reconhecer que onde não seja possível a sua total aplicação, por falta de elementos ou ainda pela sua dispersão, se opte por qualquer sistema, sendo forçoso onde hajam anarquistas que se agrupem, pois se outros motivos não houverem a forçar os nossos vinculos e a nossa aproximação, bastam-nos a nossa comum repulsa pelo autoritarismo e apêgo às ideias de liberdade.

B) como se devem relacionar-se os grupos e indivíduos isolados? O anarquismo é essencialmente contrário a todo o princípio de uniformidade, a toda a ideia totalitária, por contrária à diversidade da vida e inimiga do princípio de liberdade e por isso em nenhuma das suas actividades ou desdobramentos persiste um critério rígido, inflexível, sendo notória uma maleabilidade quer no tempo quer no espaço, no referente a tática e método de luta, contrariamente ao que dizem e supõem os seus detractores. É por isso que não podemos estabelecer que as nossas relações tomem este ou aquele carácter uniforme, dado que o que não se pode fazer aqui se não poderia fazer ali e o que convenha a uma realidade pode não convir a outra. Significa isto que serão sempre as circunstâncias que terão a última palavra e os camaradas das respectivas localidades deverão ver qual o processo que melhor sirva as necessidades das nossas actividades relacionadoras. Isto quanto às relações individuais e de grupo para grupo. No referente às relações nacionais, cremos indispensável um comité relacionador que não só estreite relações com todos os grupos e camaradas isolados, como até procure compulsar as necessidades e iniciativas gerais e dar-lhes a expansão correspondente. É forçoso acentuar que em qualquer agrupamento anarquista a pratica dos princípios federalistas são sempre a sua norma e por princípios federalistas se compreende a pratica das normas gerais das actividades com observância rigorosa dos princípios de liberdade, que dizem salientar a possibilidade e conveniência do indivíduo livre no grupo livre e este dentro da realidade, e assim em toda a ordem social. Tanto em tempo de repressão como de liberdade, as nossas relações deverão ser sempre mantidas com a máxima precaução e cautela, optando materialmente pelos métodos que a experiência aconselhe. Neste sentido também não pode haver um critério único, para cada caso terão os camaradas encarregados dessa função que escolher o que menos perigos garantir.

Propaganda - Independentemente do que cada grupo ou indivíduo isolados possamos fazer, cremos ser de absoluta necessidade a criação de um comité ou secretariado de propaganda, coordenando tudo que possa concorrer para a disseminação e esclarecimento das ideias e problemas que com as mesmas se prendam e que aceitamos a ideia de um órgão na imprensa com carácter fraccional, ainda que com o apoio geral, sabido como é que de outro modo seria desbaratar energia e tempo.”

Observação:  Concordante com o seu próprio estilo de escrita, o autor do texto deve ser o José Correia Pires.

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Imagem: o texto original «A Revolução Social e a sua Interpretação Anarquista» com 21 páginas, datado de 18 de Fevereiro de 1938, encontra-se inserido no espólio de António Gato Pinto, deportado no Campo de Concentração do Tarrafal, e depositado na «Casa comum-Fundação Mário Soares», pasta 10439.001.014. Na "Introdução" da presente edição do texto que redigiu em 1971, editado em 1975, José Correia Pires escreve com imprecisão, informando o leitor que o texto circulou no Campo aí por volta dos anos 39, não está certo, e isso é prova que não teve oportunidade para dissipar a dúvida, isto é, de consultar o texto original de sua autoria. António Gato Pinto, morreu em 1973.

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José Correia Pires, (1907-1976,) discursa no encontro anarquista celebrativo do 1º Maio de 1974, na cervejaria Canecão, em Cacilhas, ladeado pelos companheiros, à esquerda, Sebastião Almeida. À direita, Emídio Santana e Francisco Quintal.

5 - RELEMBRAR A MUTAÇÃO DO GRUPO ANARQUISTA (CLANDESTINO) DE ALMADA. O MESMO GRUPO DEPOIS DO 25 DE ABRIL DE 1974, PASSA A SER DESIGNADO «GRUPO CULTURA E ACÇÃO LIBERTÁRIA», EDITOR DO JORNAL VOZ ANARQUISTA.

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Nesta "Acta", no ponto 1º, é referido a questão do Movimento Libertário Português e a publicação do jornal A Batalha. A tensão dos companheiros veteranos de Almada, com o grupo informal reunido à volta de Emídio Santana, aquando da edição em Setembro de 1974 do mencionado jornal, tem uma proveniência anterior. Ou seja, está na origem do apelo politiqueiro de Santana a candidaturas eleitorais dos anarcosindicalistas para os municípios; "O Emídio Santana, depois de sair da prisão, tentou formar um grupo político para concorrer às eleições municipais - ele e o Germinal de Sousa, filho do Manuel Joaquim de Sousa. Publicaram um manifesto e por causa disso houve uma grande bronca com os companheiros, mais ou menos chefiados pelo Correia Pires." (1)

Claro, a tensão foi acentuada, quando o Santana e os seus acólitos se apropriaram de todas as verbas enviadas do estrangeiro para o Movimento Libertário Português, aplicando esse fundo nas despesas com a produção do jornal A Batalha. Eu assisti à discussão levantada pelos companheiros Paulo Lola (elemento da FAI) e José Correia Pires, ambos delegados do GCAL, em oposição ao senhor pseudo anarquista Moisés Ramos e todos os outros implicados que acompanharam o Santana. Passaram-se quatro meses, entretanto, como águas paradas não move seja o que for, os veteranos anarquistas em conjunto respondem editando o jornal Voz Anarquista, que começa a circular nas bancas em Janeiro de 1975.

 (1) José de Brito, Retalhos da Memória, in Utopia, nº4, Outono-Inverno de 1996, pp. 63-68.

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6 - OUÇA ZACARIAS

O anarquista José Correia Pires, operário carpinteiro, sem nunca ter chegado a ser trabalhador efectivo na Companhia Portuguesa de Pesca, no sitio do Olho de Boi, aqui trabalhou dois anos e tal, isto quando se instalou em Almada, em 1945.

O documento que transcrevemos está do seguinte modo identificado: trata-se de um manuscrito reproduzindo uma carta de um carpinteiro (anónimo), após o seu despedimento. Documento de 8 páginas, com o título "Ouça Zacarias", é datado de setembro de 1947. O documento está inserido no espólio de Antonio Gato Pinto, ex-guarda nacional republicano e ferroviário, prisioneiro e amigo do Tarrafal de José Correia Pires.

“OUÇA ZACARIAS!

O que vou dizer-lhe não é propriamente uma explicação, que não lhe devo, mas antes um desabafo que não resisto à tentação de lhe fazer, exactamente porque a despeito da decepção porque me fez passar ainda tenho por você alguma consideração. É meu desejo que não veja nestas simples linhas mais que o desejo de o fazer pensar alguns minutos no meu caso, que você julgou arrumado com o meu despedimento, e que pondere as razões que tenho para estar ressentido e confessar que me enganei acerca da sua amizade e do que me prometeu, sem nada lhe ter pedido.

O que me acaba de suceder estou firmemente convencido que em nada o incomodou e nem o conteúdo desta carta lhe merecerá o menor interesse. Ora não importa. Há coisas que nos ocorrem que só nós as valorizamos, precisamente porque só nós as sentimos e compreendemos devidamente. Depois, que importa uma injustiça na pessoa de um simples operário se todos os dias e a todas as horas se praticam infâmias na pessoa de milhões? Que importância pode revestir o caso de se despedir um operário que se considera bem comportado e em tudo cumprindo os seus deveres numa fase em povos inteiros se humilham e se deprimem? Não, num mundo onde só prepondera a injustiça em nada, absolutamente em nada, conta a desconsideração e injustiça de que eu me considero vítima e nem eu quero que você lhe dê mais importância que a que lhe mereceu quando pensou incluir-me na lista dos que iam ser despedidos. Que pretendo então? Dizer-lhe que o seu espírito de justiça e lealdade está profundamente embotado e que perde muito no meu conceito todo o indivíduo que não cumpre o que promete, qualquer que seja o motivo do seu não cumprimento e muito mais quando simples futilidades são o motivo de tal procedimento. Não sei as razões que possa ter a meu respeito, mas o respeito pela sua própria dignidade e muito especialmente em obediência a uma situação que aí criei (e foi você que inicialmente mais para tal contribuiu) era forçoso da sua parte proceder de maneira diferente daquela que procedeu. Mais que uma vez e mais que um indivíduo me asseveraram espontaneamente que enquanto você estivesse à frente dos trabalhos da carpintaria eu não sairia do Olho de Boi, e isto, certamente, foi você quem propalou. Mas não foi pelo que outros me disseram, apenas guardo bem vivo na minha memória o seu prometimento de efectividade na casa, embora, como é lógico que assim fosse, nunca nada a tal respeito lhe tivesse pedido. Que aconteceu para que passados dois anos e tal de casa (situação que por si só já me dava o direito de não ser despedido por dá cá aquela palha) ser assim despedido? Disse-me você que tinha ordem para reduzir ao mínimo o pessoal e que não iria despedir carpinteiros mais velhos que eu na casa, deixando-me ficar. Absolutamente de acordo e não serei eu quem condene um tal proceder. Mas procedeu você assim? Não, e considero que os despedimentos que você ultimamente aí fez foram de uma injustiça a toda a prova e para um espírito recto e justo seriam motivo forte para sentidos arrependimentos e remorsos para toda a vida. Mas o meu caso é o mais flagrante e nunca pensei que você procedesse para mim como realmente procedeu!

Acredite que um dia me falaram muito mal de si, mas julguei estar em presença de um despeitado e não acreditei. Mais tarde mostrou-me uma ou duas cartas anónimas que também as não tomei a sério e até me revoltaram especialmente porque sempre detestei o anonimato, quando se acusa. Depois disto tudo confesso que se alguma vez mais ouvir falar mal de você não terei a mesma atitude de descrença que antes mantive. Porquê? Apenas porque embora o não considere um indivíduo mau, depois do que me fez sei que não é suficientemente cauteloso na não prática de qualquer injustiça que o ponha na alçada da critica e dos reparos dos que possam ser afectados ou tenham por habito criticar o que não for razoável e justo.

Durante o tempo que aí trabalhei pude verificar que na luta que você mantinha entre a defesa dos interesses da Companhia que você representa, e a defesa dos operários que por sentimentos e responsabilidades contraídas pelas suas afirmações em parte lhe competia defender, a sua conduta interpretei-a como bastante equilibrada e até com certa inteligência, sempre mais inclinado a defender os que na verdade mais necessitam que os defendam. Significa isto que como mestre não o considero pior, outrotanto não dizendo se se trata de camarada ou simplesmente de amigo. O que me fez tenho-o como uma grande deslealdade e, para melhorar a compreensão, ponha-se no meu lugar e veja se é ou não lamentável o que me aconteceu, partindo de um indivíduo de quem não esperava, não porque fosse meu desejo que não acontecesse, mas tão somente porque até no último momento conseguiu enganar-me sem necessidade nenhuma de o fazer. Não acha que tendo você tornado a resolução de me despedir que mo devia ter dito franca e lealmente quando me comunicou que o Victor Hugo também estava despedido e que tivesse eu paciência? Quando me disse que “nos puséssemos a pau” porque não disse concretamente o que pensava fazer? Admito ainda que vacilasse e temesse directamente dar-me assim essa notícia (no seu foro íntimo você tinha consciência do que isso representava), mas não merece perdão de me não ter dito o que pensava definitivamente fazer quando me dirigi, pedindo que me explicasse o que queria dizer aquele “ponham-se a pau” e que terminou por me dizer que me fosse aguentando e que se não pudesse aguentar que me diria com antecedência. Reconsidere bem este seu último prometimento e veja que nesse mesmo dia entrava de licença e com a lista dos que iam ser despedidos nas mãos dos seus operários-chefes e no número dos quais não hesitou em me incluir. Como classificaria você um indivíduo que o tivesse como amigo e lhe fizesse uma partida destas?

Não quero nem devo continuar, e termino por lhe asseverar que sofri uma grande desilusão exactamente por o ter tomado a sério. Mas já estou curado e presentemente só lamento o tempo que aí trabalhei que talvez noutros locais teriam modificado em parte o meu modo de vida. Sem mais não lhe prometo utilidade mas garanto-lhe que nunca lhe serei prejudicial.

Observações:

  1. O anarquista que exercia a profissão de carpinteiro nessa época em Almada era o José Correia Pires;
  2. A referida pessoa instala-se em Almada em 1945, após o regresso do Campo de Concentração do Tarrafal, talvez tenha vindo para Almada devido a esta oferta de emprego no sector naval;
  3. Nesta carta dirigida ao mestre Zacarias é mencionado que o sujeito despedido trabalha há dois anos e tal no "Olho de Boi", o que corresponde à fixação de José Correia Pires em Almada e está conforme com a data da carta;
  4. Ambos os protagonistas, António Gato Pinto e José Correia Pires, vão manter uma estreita relação pessoal por longo tempo. A sua actividade clandestina de José Correia Pires nas estruturas libertárias justifica que o seu fiel amigo seja efectivamente o depositário dos documentos. De facto, não foi feita qualquer análise grafológica forense dos manuscritos, a fim de atribuir as autorias desses documentos reunidos no espólio.
  5.  No fundo documental António Gato Pinto, depositado na casa comum-fundação Mário Soares, constituído por 247 pastas, está disponível para consulta pública um manuscrito designado "cópia manuscrita", pasta 09633.033, reproduzindo uma carta de despedida do campo de concentração do Tarrafal (1945), escrito de José Correia Pires e do seu amigo José Rodrigues Reboredo. Comparando de forma empírica a grafia da escrita desse texto, com algumas letras da caligrafia do texto "ouça zacarias" (1947), por nós atribuído ao autor josé correia pires, concluímos, que o copista do manuscrito em questão é o tarrafalista antónio gato pinto. Na verdade, encontramos nalguns manuscritos não identificados e s/d, determinadas similitudes com a grafia do manuscrito "ouça zacarias". Veja você mesmo as semelhanças, consultando os documentos nas pastas que aqui mencionamos. As semelhanças são evidentes, e parecem inquestionáveis:
     
    10439.018 (a cooperação como sistema)
    10439.08 (sobre Confederação Geral do Trabalho) http://casacomum.org/cc/pesqArquivo.php?termo=10439.008
    10439.007 (intenssifiquemos o nosso labor...) http://casacomum.org/cc/pesqArquivo.php?termo=10439.007
    10439.001.010 (considerações sobre...) | Cc | PesqArquivo

Companhia Portuguesa de Pescas.jpg

Instalações da Companhia Portuguesa de Pesca, Olho de Boi, Almada

Sobre José Correia Pires, autor de A Revolução Social e Sua Interpretação Anarquista (disponível aqui) ver textos de Irene Pimentel (aqui) e de Maria João Raminhos Duarte (aqui) e do próprio Correia Pires (aqui). Para uma contextualização dos anos 30 no movimento anarquista ver o artigo de Paulo Guimarães “Cercados e Perseguidos: a Confederação Geral doTrabalho (CGT) nos últimos anos do sindicalismo  revolucionário em Portugal (1926-1938)” (aqui), a tese de doutoramento de Antónia Gato "Tarrafal: resistir como promessa. O poder de transformar uma experiência de opressão numa história de grandeza" (aqui) ou, sobre a reconstituição do movimento anarquista pós 25 de Abril de 74, o artigo de Carlos Gordilho "Vestigios da vida do "outro" anarquismo em Almada" (aqui)

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21
Out21

VALENTIM ADOLFO JOÃO: “NÃO TENHO VAGAR AMOR”


BNP N61 CX 58 F14

Esta fotografia pessoal de Valentim Adolfo João foi conservada por Emídio Santana, que a entregou ao Arquivo Histórico-Social (AQUI)

Valentim Adolfo João (30 de Março de 1902-29 de Janeiro de 1970) foi um destacado dirigente do Sindicato dos Mineiros (primeiro da Mina de São Domingos, depois de Aljustrel). Anarcosindicalista, participou em 1932 na última grande greve dos mineiros da Mina de São Domingos, , tendo sido o último destes a ser libertado das prisões políticas da ditadura, nos anos 60, neste caso, do forte de Peniche. Preso em 1924 por lançamento de bomba. Delegado ao Congresso Operário de 1925. Membro do Grupo de Propaganda e Estudos Sociais da Mina de S. Domingos (1923/33). Participa na Conferência Anarquista do Sul de 1925 – UAP (AQUI)

Relativamente a Valentim Adolfo João há uma referência em José Correia Pires, no livro ““Memórias de um prisioneiro do Tarrafal” (1975), em que este anarquista conta a sua fuga do Algarve, nas vésperas do 18 de Janeiro de 1934, a caminho de Espanha. De Beja passa à Mina de São Domingos e à fronteira. “Na fronteira descalcei-me, arregacei as calças e com a companhia de um camarada de nome António Patrício, irmão do velho militante anarquista Valentino Adolfo João, excelente camarada e envolvido mais tarde no atentado a Salazar, esteve preso mais de uma dezena de anos e faleceu há cerca de três. Valentim Adolfo João estava fixado a umas dezenas de quilómetros da fronteira e fui dirigido a ele. Ali o encontrei feito agricultor, vivia com a mulher e filhos numa barraca de vime. Já nos conhecíamos por correspondência, mas quando o vi, cabeleira ao alto e desenvolta, lembrei-me da «Cabana do Pai Tomás», e Valentim dava na verdade uma excelente figura de romance. Fazia a sua sementeira e era um autêntico camponês. Fiquei ali um dia e uma noite e recordo-me que ele gozava ali de bom ambiente, nessa noite fomos visitados por uma patrulha da guarda fiscal ou os chamados «carabineiros», que decerto modo me vieram a ser úteis para a minha introdução em Espanha!… (aqui)

Também o escritor Modesto Navarro que encontrou o irmão, Patrício, em Aljustrel, já na década de 70, escreve sobre Valentim Adolfo João no seu livro “Poetas Populares Alentejanos”. Apesar de várias inexactidões (o atentado a Salazar foi em 1937 e não em 1933 como refere Modesto Navarro. Valentim Adolfo João morreu em Janeiro de 1970 e não em 1971), eis o texto de Modesto Navarro com umas “quadras” atribuidas a Valentim Adolfo João.

“Quando do atentado contra Salazar, em 1933, [esta data não está correcta. O atentado a Salazar, levado a cabo por um conjunto de anarquistas e de outros antifascistas deu-se  a 4 de Julho de 1937 – nota de Portal Anarquista] Valentim Adolfo João, na altura presidente do Sindicato dos Mineiros de Aljustrel, foi acusado pela PVDE (aquela que viria a ser a PIDE) de ter fornecido o dinamite. Sabe-se hoje que os fascistas aproveitaram esse acontecimento para perseguirem e prenderem muitos democratas. A partir daí, Valentim Adolfo João andou com um nome suposto (José Dias) até 1946, data em que foi reconhecido em Setúbal. Condenado a 28  anos de prisão, foi libertado quase no fim da década de 1960/1970,  já completamente destruído. Veio a morrer por volta de 1971.  É seu irmão, o sr. Patrício, que nos diz estas décimas em Aljustrel, explicando que, na  altura em que Valentim Adolfo João as fez, organizava o sindicato com outros mineiros.

Namorava uma moça com a sua idade, dezanove anos, e um dia ela queixou-se da pouca  atenção que lhe dedicava: – «Passa-se uma noite, passa-se outra, e tu sem apareceres…»  Ao que Valentim Adolfo João respondeu:

Não tenho vagar amor
para te dar atenção
tenho muito que fazer
na minha Associação

É meu desejo transformar
esta pobre sociedade
que semeia a iniquidade
para nos escravizar
temos muito que lutar
com força audácia e valor
para extinguirmos a dor
a miséria e o sofrimento
e por isso neste momento
não tenho vagar amor

Se a vida fosse a sorrir
se de encantos fosse o viver
e se num breve alvorecer
a luta nos redimir
então poder-te-ei garantir
imorredoira afeição
mas enquanto a escravidão
produzir mal e desgosto
não posso fugir do posto
para te dar atenção

Olha para todo o mundo
verás tanta dor tanta desgraça
eu amo a beleza, amo a graça
amo o bem-estar profundo
o capital iracundo
procura nos perverter
mas nós havemos de vencer
apeando os comodistas
e amando os idealistas
tenho muito que fazer

Sociedade corrompida
teus erros são vis e sicários
aleivosos, argentários
que nos negam o direito à vida
e eis porque minha querida
distraio a atenção
e para acabar a escravidão
eu prego por toda a parte
construindo um baluarte
a minha associação”

(Texto retirado da obra “Fado Operário no Alentejo, séculos XIX – XX” de Paulo Lima, 2004, ed. Tradisom, Vila Verde, pp. 90 e 91. 2)

aqui: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2013/02/02/valentim-adolfo-joao-nao-tenho-vagar-amor/

21
Out21

Jaime Rebelo, o anarquista da boca cerrada


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A 22 de Dezembro de 1900 nascia em Setúbal o anarcosindicalista e resistente antifascista Jaime Rebelo. Pescador e marítimo de profissão, ainda jovem aderiu à Confederação Geral do Trabalho (CGT), da qual foi um dos principais responsáveis em Setúbal. Viveu a maior parte da sua vida em Cacilhas. Como militante anarco-sindicalista foi um dos animadores, com Francisco Rodrigues Franco, da Associação de Classe dos Trabalhadores do Mar de Setúbal, mais conhecida por  “Casa dos Pescadores”, que foi encerrada na sequência do golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 e da qual conseguiu salvar documentação importante.

Em 1931, em consequência da chamada “Greve dos 92 dias” , foi preso e torturado pela PIDE. Durante os interrogatórios, cortou a língua para evitar falar e denunciar os companheiros. Há duas versões: uma, com os próprios dentes; outra, entre dois interrogatórios, com uma lâmina que trazia escondida no tacão dos sapatos. Sabendo deste facto, o escritor Jaime Cortesão dedica-lhe um dos seus poemas mais belos (ver mais abaixo) – o Romance do Homem da Boca Cerrada. Este poema circula clandestinamente durante toda a ditadura salazarista e foi publicado em 1937 no jornal comunista “Avante”, que procurava, nessa altura, forçar uma política de Frente Popular.

Uma vez em liberdade e vitima de perseguições constantes emigrou para Espanha. Ali filiou-se na CNT anarcosindicalista e durante a Revolução Espanhola fez parte das milícias confederais e comandou uma unidade que combateu na frente meridional. Com o triunfo fascista em Espanha, foi para França, voltando depois a Portugal onde continuou a lutar contra a ditadura do Estado Novo, ganhando a vida a partir de 1968 como revisor do jornal “A República”, ao lado do também anarquista Francisco Quintal.

Depois do 25 de Abril presidiu à primeira Assembleia Geral da restituída “Casa dos Pescadores” e participou na constituição da Cooperativa Editora de “A Batalha”, antigo jornal diário da CGT. Membro activo do Movimento Libertário Português (MLP) participou na criação do jornal “A Voz Anarquista”, editado pelo Centro de Cultura Libertária de Almada. Jaime Rebelo morreu a 7 de Janeiro de 1975. O historiador César de Oliveira dedicou-lhe um estudo “Jaime Rebelo: um homem para além do tempo”, publicado em Março de 1995 na revista História. No bairro de São Julião, em Setúbal, há uma avenida com o seu nome.

 Romance do Homem da Boca Cerrada

– Quem é esse homem sombrio
Duro rosto, claro olhar,
Que cerra os dentes e a boca
Como quem não quer falar?
– Esse é o Jaime Rebelo,
Pescador, homem do mar,
Se quisesse abrir a boca,
Tinha muito que contar.

Ora ouvireis, camaradas,
Uma história de pasmar.

Passava já de ano e dia
E outro vinha de passar,
E o Rebelo não cansava
De dar guerra ao Salazar.
De dia tinha o mar alto,
De noite, luta bravia,
Pois só ama a Liberdade,
Quem dá guerra à tirania.
Passava já de ano e dia…
Mas um dia, por traição,
Caiu nas mãos dos esbirros
E foi levado à prisão.

Algemas de aço nos pulsos,
Vá de insultos ao entrar,
Palavra puxa palavra,
Começaram de falar
– Quanto sabes, seja a bem,
Seja a mal, hás de contá-lo,
– Não sou traidor, nem perjuro;
Sou homem de fé: não falo!
– Fala: ou terás o degredo,
Ou morte a fio de espada.
– Mais vale morrer com honra,
Do que vida deshonrada!

– A ver se falas ou não,
Quando posto na tortura.
– Que importam duros tormentos,
Quando a vontade é mais dura?!

Geme o peso atado ao potro
Já tinha o corpo a sangrar,
Já tinha os membros torcidos
E os tormentos a apertar,
Então o Jaime Rebelo,
Louco de dor, a arquejar,
Juntou as últimas forças
Para não ter que falar.
– Antes que fale emudeça! –
Pôs-se a gritar com voz rouca,
E, cerce, duma dentada,
Cortou a língua na boca.

A turba vil dos esbirros
Ficou na frente, assombrada,
Já da boca não saia
Mais que espuma ensanguentada!

Salazar, cuidas que o Povo
Te suporta, quando cala?
Ninguém te condena mais
Que aquela boca sem fala!

Fantasma da sua dor,
Ainda hoje custa a vê-lo;
A angústia daquelas horas
Não deixa o Jaime Rebelo.
Pescador que se fez homem
Ao vento livre do Mar,
Traz sempre aquela visão
Na sombra dura do olhar,
Sempre de boca apertada,
Como quem não quer falar.

Jaime Cortesão

aqui: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2012/12/18/memoria-libertaria-jaime-rebelo/