O cerco libertário dos pescadores em defesa do Sado
Há 100 anos atrás, na afamada «cidade anarquista» de Setúbal, os pescadores clamavam pela defesa do Sado contra os novos vapores de arrasto que «devastam os fundos, destruindo a criação». Organizaram-se numa pujante Associação de Classe que, nas ruas, fez temer o poder republicano e os industriais das numerosas fábricas conserveiras que abriram o caminho à industrialização e proletarização da cidade.
O cruzamento da história das lutas dos pescadores com a vertente ambiental foi sublinhado por Paulo Guimarães, docente na Universidade de Évora. Na sua investigação sobre os movimentos sociais, os conflitos e a justiça ambiental, assinalou, na agitação operária e anarquista da cidade sadina conhecida nas primeiras décadas do século XX como a «Barcelona portuguesa», uma consciência social que imprimira às lutas de classe e laborais uma capacidade de análise bem mais vasta: já então os trabalhadores do mar estavam cientes dos custos dos avanços técnicos da pesca e da sobreexploração dos recursos marinhos.
Na segunda metade do século XIX, Setúbal tornara-se um dos principais portos de pesca portugueses para, nas palavras do jovem historiador Diogo Ferreira, abandonar «a inerente complementaridade deste centro piscatório ao mundo rural» ao transformar-se numa cidade industrial e operária, subsidiária porém de um único sector assente em dezenas de fábricas de conservas de peixe. No inquérito às Associações de Trabalhadores, no Boletim do Trabalho Industrial de 1909-10, os marítimos de Setúbal, quando questionados sobre «as transformações mecânicas, ou outras», apontavam a pesca de arrasto como o factor chave da modificação das condições de produção. Tratava-se afinal de um ponto de viragem para uma orientação na pesca que não mais se alterou e que é hoje associada negativamente pela ecologia política a uma deriva extractivista. Um conflito ambiental, com a industrialização dos mares, que foi desde o seu início perceptível pelas comunidades piscatórias.
O crescimento piscatório pela demanda conserveira – responsável pela migração interna que fez crescer Setúbal – transformou os modos de vida até aí tradicionais do estuário do Sado. O Estado, como refere Paulo Guimarães em recente artigo, animara-se pela carga fiscal sobre o pescado, favorecendo «um regime de concessões que ameaçava as artes de xávega, os pequenos pescadores independentes e os armadores mais antigos». Inicialmente e em reacção «os armadores de Setúbal defenderam então, como medida protectora das indústrias de pesca à valenciana [sistema de armação fixa de pesca] “a manutenção da proibição das redes de arrasto, denominadas ‘Bugigangas’ ou, pelo menos, limitar-lhes uma área ou época de exercício”». Mas com a implementação da República, conforme relata no seu doutoramento Joana Dias Pereira, investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, o governo provisório decretará logo o seu apoio à pesca de arrasto, contra a posição manifestada por uma comissão de pescadores de Sesimbra, Setúbal, Seixal, Barreiro e alguns delegados do Norte, reclamando «contra os “capitalistas” que querem aumentar os vapores de arrasto, lançando na miséria milhares de pescadores das artes de pesca menos intensivas». Logo em dezembro de 1910 tem lugar «a greve dos marítimos de Setúbal» considerando que «a República pôs-se já do lado dos capitalistas e contra os trabalhadores».
Durante a década de 1910, a cidade de Setúbal vive em águas agitadas, em terra com o operariado conserveiro e no mar com os marítimos. A implementação na sociedade portuguesa da condição de vida industrial debatia-se mais do que nunca num cenário entre forças e projectos sociais opostos. É nesse quadro que numa fase inicial, se poderá esboçar uma pioneira percepção na defesa de justiça ambiental pelos pescadores, a qual resulta da reacção ao novo mundo industrial que se lhes impunha e às novas condições sociais de que a partir de então como parceiros do operariado faziam parte.
No Sado, entre esse antes e depois, os pescadores de Setúbal alertam para as consequências imediatas da pesca de arrasto: a sobreexploração dos recursos marinhos. Paulo Guimarães relatou mesmo como «através da sua associação de classe, foram capazes de a conter, durante um curto espaço de tempo. A 8 de Dezembro de 1910, os pescadores de mar iniciam uma greve protestando contra a liberdade de pesca concedida pelo governo aos vapores com redes de arrasto, os quais salientam “devastam os fundos, destruindo a criação”». A cidade agitava-se com os comícios da Associação dos Trabalhadores do Mar, levando a autoridade portuária a perseguir, multar e mandar prender pescadores sob qualquer pretexto.
Na verdade esta reacção violenta à modernização tecnológica tivera início pelo menos desde o início do século nas comunidades piscatórias em diversos lugares, conforme relata Joana Dias Pereira: «os pescadores, considerando que a pesca a vapor revolvia os fundos e destruía os pastos e toda a criação, destruíam galeões e cercos americanos». «Segundo três armadores de cercos americanos “na noite de 21 de Agosto de 1901, estando a pescar na costa de Caparica, o cerco americano Gazella foi atacado por gente armada daquela costa, que apoderando-se da rede, do galeão e dos dois buques, tudo arrastaram para a praia e queimaram no meio de um gáudio selvagem”».
Nesses alvores do século XX, os armadores adaptavam-se à nova situação do mercado conserveiro com o apoio das autoridades e dos industriais. Por sua vez os trabalhadores, sem prejuízo de acções de destruição e sabotagem de máquinas, irão como refere Joana Dias Pereira, «perante a inexorável perda de controlo sob o processo produtivo» começar «a investir no controlo sobre o mercado de trabalho, elaborando regulamentos segundo os quais as associações de classe geririam as colocações laborais», como foi exemplo a greve dos pescadores de Setúbal e Sesimbra logo em janeiro de 1900 contra os armadores que não cumprem o regulamento.
Assim quando se implanta a República as associações de classe sindicalistas revolucionárias e de pescadores de Setúbal passarão a assumir um maior controlo, procurando um freio possível à voracidade dos recursos, mas visando sobretudo ganhar o controlo do processo produtivo pelos próprios trabalhadores, a sua principal motivação. Por um lado, como refere Diogo Ferreira «as redes de solidariedade, provenientes de uma das mais poderosas e influentes associações de classe como a dos Trabalhadores do Mar, permitiam que estes homens lutassem abertamente contra o progresso tecnológico no seu meio, limitando a utilização de vapores uma vez que empregavam menos pescadores». Paulo Guimarães refere por sua vez, como em Março de 1916 a associação «solicitou ao governo que os pescadores, através dela, pudessem comprar cercos americanos quando fossem postos à venda, proibindo-se a sua venda a qualquer entidade estranha ao concelho. Através dos vários cercos que a associação controlava, os pescadores conseguiam indirectamente controlar o peixe que chegava às fábricas». E sobretudo, citando desta vez Joana Dias Pereira «as suas greves, em defesa de interesses próprios ou em solidariedades para com outros camaradas, determinava a paralisação de toda a cidade, dependente da sardinha que traziam do mar».
Os pescadores desenvolvem, como recorda o historiador Álvaro Arranja, as «Companhas Livres» ou o «Cerco Libertário» que «vendia o produto do trabalho colectivo dos pescadores e distribuía, por quinzena, a cada homem uma parte igual em dinheiro, independentemente da função que cada um desempenhava». Para uma melhor fotografia desses tempos é citado por Paulo Guimarães as impressões do jornalista Adelino Mendes (1878-1963) na sua visita em 1916 à «que designa simpaticamente como “a cidade dos anarquistas”, [onde] o poder dos marítimos encontrava-se no seu zénite. Com os salários elevados e, principalmente, com as percentagens gordas sobre o pescado, que os próprios pescadores comercializavam, as margens de lucro dos armadores tinham ficado cada vez mais reduzidas. A economia social parecia então ser a evolução normal, quando eles detinham já mais de uma vintena de cercos de pesca em cooperativas de produção. Ora, o comportamento dos pescadores era de contenção nas capturas quando o preço do peixe estava em baixa, uma prática que não impedia os lucros industriais numa conjuntura em que a lata atingia valores excepcionais.» Pouco tempo depois dá-se o boom na procura das latas de conserva para alimento das tropas nas trincheiras da 1ª Grande Guerra. Segundo Diogo Ferreira «durante este período estiveram, em média, 3550 pescadores em laboração, aproximadamente mais 1500 do que estavam a trabalhar em 1910, atingindo o pescado valores exorbitantes».
À oposição dos vapores de arrasto, outro alvo pelos pescadores à data entrevistados por Adelino Mendes, eram as traineiras que utilizavam a pesca a dinamite, um meio mais barato do que a pesca por arte de cerco. «Com esta técnica facilmente se enchia um barco de peixe mas destruía-se “quatro ou cinco vezes mais do que aquele que se aproveita”». Uma vez que em Setúbal e em Sesimbra não entravam traineiras, as de Sines eram acusadas de «destruir os bancos de pesca da Galé, zona antiga de pesca da sardinha dos marítimos da cidade.» Os pescadores não se faziam rogados ou receosos na sua luta, como demonstra a análise de Paulo Guimarães: «o uso da sabotagem era uma arma temível. A imprensa local relatava que, em Novembro de 1919, na sequência de graves acontecimentos que envolveram os marítimos, tinham sido apreendidas cem navalhas.»
Nos primeiros anos da década de 1920, os cercos encontram-se em greve contra o patronato industrial por causa dos preços, mas o controlo acaba por ser restabelecido e ganho pelos industriais a partir de 1922. Os cercos a vapor substituíram os últimos cercos à vela e «a crise na indústria conserveira no pós-guerra foi acompanhada pelo aumento do impulso extractivista», apesar de reconhecidos problemas ambientais e da sobrepesca (em 1924 uma lei proibia a pesca com «dinamite, carboneto de cálcio ou qualquer substância nociva»). No cenário pós-guerra, como diz Paulo Guimarães, a pesca predatória reflectiva definitivamente «o problema da subordinação da pesca aos interesses industriais». Para as indústrias conserveiras «subsistia o problema do “abastecimento do peixe e do seu preço” (menos de 10 por cento era destinado ao consumo nacional)» pelo que «a indústria respondeu às dificuldades comerciais aumentando a procura de peixe, impondo preços mais baixos e diminuindo os custos salariais através da racionalização e de inovação técnica». O caminho e o uso dado à modernização do sector davam razão aos receios antes expressados pelos pescadores: social e ecologicamente.
A descrição de Setúbal na Ilustração Portuguesa de 1910, mencionada por Diogo Ferreira é reveladora: «Tudo lá vive da sardinha. Os seus risos e as suas mágoas estão suspensas dessa personalidade». E suspensa estava a vida de Setúbal da pesca de sardinha, que como assinala o historiador «dependia de uma panóplia de factores ligados ao equilíbrio do ecossistema e à preservação da espécie ou à capacidade e técnicas piscatórias reveladas.» Por essa razão Paulo Guimarães acentuou que a modernização industrial da pesca fez-se acompanhar de um processo conflitual na qual «a sustentabilidade dos recursos marinhos constituiu uma preocupação para armadores e pescadores durante todo este período». Esse é um período que o docente da Universidade de Évora caracteriza de «crescimento empobrecedor» sem qualquer contrariedade no uso dessa adjectivação.
aqui: https://www.jornalmapa.pt/2020/05/15/o-cerco-libertario-dos-pescadores-em-defesa-do-sado/