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Memória Libertária

Documentos e Memórias da História do Movimento Libertário, Anarquista e Anarcosindicalista em Portugal

Documentos e Memórias da História do Movimento Libertário, Anarquista e Anarcosindicalista em Portugal

Memória Libertária

30
Nov22

Acácio Tomás de Aquino (1899-1998): O testemunho anarquista da violência das prisões atlânticas do fascismo


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Acácio Tomás de Aquino (Lisboa, Alcântara, 9 de Novembro de 1899 - Lisboa, 30 de Novembro de 1998), militou nas Juventudes Sindicalistas e depois na Confederação Geral do Trabalho, tendo colaborado também  no jornal "A Batalha" e participado na preparação do 18 de Janeiro de 1934. Preso e deportado primeiro para Angra do Heroísmo, esteve depois 13 anos no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde.

Acácio Tomás de Aquino nasceu, em Lisboa, no bairro de Alcântara, a 9 de Novembro de 1899 e aí morreu a 30 de Novembro de 1998.  Exerceu várias profissões: operário da construção civil, trabalhador da Câmara Municipal de Lisboa, de 1918 a 1922, e ferroviário, de 1926 até à sua prisão, em 1933.

Foi militante anarco-sindicalista da Confederação-Geral do Trabalho, filiado nos Sindicatos dos Metalúrgicos, dos Trabalhadores do Município e da Construção Civil, entre 1919 e 1933.Foi, ainda, secretário da Federação dos Sindicatos da Construção Civil e da Confederação Geral do Trabalho.

Foi colaborador da imprensa operária e sindical, nos jornais A Batalha e O Construtor. Membro do comité da CGT organizador da greve geral de 18 de Janeiro de 1934, foi preso a 11 de Dezembro de 1933, sob acusação de ter entregue bombas a outro activista na Estação do Rossio, estando, por isso preso quando se deu a greve geral .

Foi condenado a 12 anos de degredo em prisão, pelo Tribunal Militar Especial, no dia 9 de Março de 1934. A 8 de Setembro desse ano seguiu primeiro para Angra do Heroísmo, sendo transferido para o Tarrafal, Cabo Verde, a 23 de Outubro de 1936. Teve um papel preponderante na Organização Libertária Prisional, que agrupava os presos libertários que se encontravam no Tarrafal. Regressou a Portugal a 10 de Novembro de 1949, mas só alcançou a liberdade total, a 22 de Novembro de 1952.

Depois do 25 de Abril de 1974, colaborou com diversas organizações e jornais libertários, sobretudo no jornal A Batalha, que ajudou a renascer, e publica um dos livros mais importantes sobre a vivência dos presos quer em Angra do Heroísmo, quer no Tarrafal, com inúmeros documentos daquela época “O Segredo das Prisões Atlânticas, em que relata também as divergências entre os anarquistas e os comunistas, transcrevendo correspondência entre a Organização Comunista Prisional e a Organização Libertária Prisional, em que critica os comunistas, nomeadamente, Bento Gonçalves, Secretário- geral do Partido Comunista Português, entre outros, acusando-os de colaboracionismo.

Pertenceu à cooperativa editora de A Batalha, ao Centro de Estudos Libertários, ao Grupo Fanal, federado na FARP, e também à URAP, a União dos Resistentes Antifascistas Portugueses, colaborando empenhadamente na trasladação para Portugal dos restos mortais dos antifascistas portugueses mortos no Tarrafal.

No 1º de Maio de 1974 desfilou com o seu companheiro, também ex-militante da CGT,  José Francisco, na Avenida Almirante Reis, na primeira grande manifestação após o 25 de Abril, erguendo a bandeira da Secção de Belém do Sindicato Único Metalúrgico, vermelha listada-a-preto, que tinha guardada e escondida durante todos aqueles anos. Aos dois companheiros, Acácio Tomás de Aquino e José Fransciiso, rapidamente se juntaram dezenas de companheiros nessa primeira e imponente manifestação do 1º de Maio,

Para além de “ O Segredo das Prisões Atlânticas, Lisboa, A Regra do Jogo, 1978”, colaborou também no livro colectivo “O 18 de Janeiro e Alguns Antecedentes, Lisboa, A Regra do Jogo, 1978", repondo a verdade história sobre a greve geral contra a fascização dos sindicatos.

Ver: "Quatro Itinerários Anarquistas - Botelho, Quintal, Santana e Aquino -, de João Freire, edições A Batalha, 2019.

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22
Nov22

Custódio da Costa (1904-1980): o militante escolhido para dar o sinal do início do 18 de janeiro em Lisboa


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Custódio da Costa, o militante anarcosindicalista escolhido para dar o sinal do 18 de janeiro de 1934, em Lisboa, morreu a 22 de Novembro de 1980, há precisamente 42 anos

Custódio da Costa, natural de Esgueira, Aveiro, onde nasceu a 10/1/1904. foi militante anarcossindicalista, padeiro de profissão (em particular na marinha mercante), filiado no Sindicato dos Manipuladores de Pão, integrado na CGT, e esteve envolvido na organização do movimento insurrecional de janeiro de 1934 contra o Estado Novo. Estava incumbido  de fazer explodir uma bomba no Miradouro da Senhora do Monte, na Graça, em Lisboa, às 3 horas da manhã do dia 18 de Janeiro de 1934, sinal combinado para fazer eclodir o movimento contra a fascização dos sindicatos. Não o fez por decisão do Comité Nacional da CGT, uma vez que no dia anterior um atentado comunista contra a linha férrea na Póva de Santa Iria tinha posto a polícia de sobreaviso. Durante todo o dia são mandados telegramas e outra forma de avisos para vários pontos do país informando que o movimento tinha sido suspenso. No entanto, há levantamentos operários em localidades como Almada, Silves e Marinha Grande.

Preso e condenado, foi degredado para os Açores e, de seguida, para o campo de concentração do Tarrafal, onde ficou até novembro de 1949.

Da ficha da Pide consta que foi “preso em 4/2/934. Transportou e entregou a Romão Duarte ingredientes para o fabrico de bombas e ainda transportou da Cova da Piedade para Lisboa cerca de 80 bombas que foram distribuídas a vários indivíduos, indo algumas para a Marinha Grande.”

Foi condenado pelo Tribunal Militar Especial em 8/3/1935 a “12 anos de degredo numa das colónias c/ prisão” e multa de 20.000$00. Em 8/9/934 segue para Angra do Heroísmo, sendo transferido para Cabo Verde em 23/10/36. Em 6/8/49 foi-lhe concedida a liberdade condicional pelo prazo de 3 anos com as seguintes condições: “1º Fixação da residência em Cabo Verde, sem prejuízo da vinda à Metrópole, mediante autorização da entidade fiscalizadora; 2º Não frequentar meios ou locais especialmente procurados por elementos suspeitos ou perturbadores da ordem pública; 3º Não acompanhar pessoas suspeitas ou de má conduta, designadamente antigos companheiros que tenham estado ligados a actividades subversivas; 4º Aceitar a protecção e indicações de uma instituição do Patronato ou de pessoa encarregada de o exercer”.

Foi “solto condicionalmente em 1/4/49, pelo prazo de 3 anos e com residência fixada em Cabo Verde, sem prejuízo da vinda à Metrópole, mediante autorização da entidade fiscalizadora” (Director do Tarrafal e a PIDE). Desembarca em Lisboa a 10/11/949, devendo apresentar-se todos os meses, no dia 11, no Piquete da PIDE.

Foi-lhe concedida a liberdade definitiva por sentença de 24/10/952. No total, entre prisão e liberdade condicional, esteve debaixo do jugo das autoridades fascistas durante 18 anos.

Depois da sua libertação, colaborou com Emidio Santana e outros libertários na Associação dos Inquilinos Lisbonenses, uma das associações onde estes mantiveram uma forte influência durante um longo período, sobretudo durante as décadas de 60 e 70.

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Custódio da Costa no jardim da sede de A Batalha, na Rua Angelina Vidal, em Lisboa, c.1975

Após o 25 de Abril de 1974, colaborou dedicadamente na reaparição do jornal “A Batalha” e do movimento libertário, tendo durante vários anos assegurado o funcionamento das instalações deste jornal, que servia também de sede a vários outros grupos e actividade do Movimento Libertário (da Rua Angelina Vidal à Av.Alvares Cabral).

Participou também no depoimento colectivo de antigos tarrafalistas, editado pela Regra do Jogo, em 1978, "O 18 de janeiro de 1934 e alguns antecedentes" , em que antigos responsáveis pelo movimento do 18 de janeiro (Acácio Tomáz de Aquino, Américo Martins, Custódio da Costa, José Francisco, Marcelino Mesquita e Emidio Santana que o coligiu) repunham a verdade histórica, depois das tentativas de apropriação e adulteramento que sobre ele o PCP fazia, tentando chamar a si a organização de um movimento que, na altura, classificou como "anarqueirada".

Custódio da Costa morreu em Lisboa a 20 de novembro de 1980.

referências: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2015/01/18/entrevista-custodio-da-costa-o-anarquista-encarregue-de-dar-o-sinal-para-o-18-de-janeiro-de-1934-em-lisboa/

http://mosca-servidor.xdi.uevora.pt/arquivo/?p=collections/findingaid&id=56&q=

https://silenciosememorias.blogspot.com/2020/01/2269-custodio-da-costa-i-greve-geral-de.html

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https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4280512

 

14
Nov22

10 anos de Portal Anarquista


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O Colectivo Libertário de Évora, precursor do Portal Anarquista, surgiu há precisamente 10 anos.

No final de Outubro  de 2012 foi publicado na internet, no blogue com o mesmo nome, um apelo à participação anarquista na greve geral marcada para o dia 14 de novembro e, pouco depois, o Manifesto do Colectivo, que reunia habitualmente na Sociedade Harmonia Eborense. A apresentação pública do grupo aconteceu a 13 de Novembro, num encontro que juntou cerca de 40 pessoas, antecedida da passagem do filme “Terra e Liberdade”, na Associação "É Neste País", em Évora.

Alguns meses depois o Colectivo decidiu dissolver-se, mantendo-se, no entanto ,a página na internet e no facebook com o nome de Portal Anarquista (embora a página ainda mantenha o endereço de https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/), pretendendo ser um veículo informativo e de memória libertária o mais abrangentes possível e juntando alguns outros companheiros e colaboradores.

Ao longo destes 10 anos a página no facebook cresceu exponencialmente tendo neste momento cerca de 11 mil "amigos", enquanto que o blogue Portal Anarquista atinge já  quase um milhão e trezentas mil visitas (mais exactamente 1.297.246 visitas) e um total de mais de 2.100 artigos publicados. 

No último ano lançámos também o blogue "Memória Libertária", no Sapo, para juntar num mesmo espaço todos os textos de carácter histórico e biográfico sobre o anarquismo português.

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08
Nov22

O cerco libertário dos pescadores em defesa do Sado


O cerco libertário dos pescadores em defesa do Sado
 

Há 100 anos atrás, na afamada «cidade anarquista» de Setúbal, os pescadores clamavam pela defesa do Sado contra os novos vapores de arrasto que «devastam os fundos, destruindo a criação». Organizaram-se numa pujante Associação de Classe que, nas ruas, fez temer o poder republicano e os industriais das numerosas fábricas conserveiras que abriram o caminho à industrialização e proletarização da cidade.

 

O cruzamento da história das lutas dos pescadores com a vertente ambiental foi sublinhado por Paulo Guimarães, docente na Universidade de Évora. Na sua investigação sobre os movimentos sociais, os conflitos e a justiça ambiental, assinalou, na agitação operária e anarquista da cidade sadina conhecida nas primeiras décadas do século XX como a «Barcelona portuguesa», uma consciência social que imprimira às lutas de classe e laborais uma capacidade de análise bem mais vasta: já então os trabalhadores do mar estavam cientes dos custos dos avanços técnicos da pesca e da sobreexploração dos recursos marinhos.

Na segunda metade do século XIX, Setúbal tornara-se um dos principais portos de pesca portugueses para, nas palavras do jovem historiador Diogo Ferreira, abandonar «a inerente complementaridade deste centro piscatório ao mundo rural» ao transformar-se numa cidade industrial e operária, subsidiária porém de um único sector assente em dezenas de fábricas de conservas de peixe. No inquérito às Associações de Trabalhadores, no Boletim do Trabalho Industrial de 1909-10, os marítimos de Setúbal, quando questionados sobre «as transformações mecânicas, ou outras», apontavam a pesca de arrasto como o factor chave da modificação das condições de produção. Tratava-se afinal de um ponto de viragem para uma orientação na pesca que não mais se alterou e que é hoje associada negativamente pela ecologia política a uma deriva extractivista. Um conflito ambiental, com a industrialização dos mares, que foi desde o seu início perceptível pelas comunidades piscatórias.

O crescimento piscatório pela demanda conserveira – responsável pela migração interna que fez crescer Setúbal – transformou os modos de vida até aí tradicionais do estuário do Sado. O Estado, como refere Paulo Guimarães em recente artigo, animara-se pela carga fiscal sobre o pescado, favorecendo «um regime de concessões que ameaçava as artes de xávega, os pequenos pescadores independentes e os armadores mais antigos». Inicialmente e em reacção «os armadores de Setúbal defenderam então, como medida protectora das indústrias de pesca à valenciana [sistema de armação fixa de pesca] “a manutenção da proibição das redes de arrasto, denominadas ‘Bugigangas’ ou, pelo menos, limitar-lhes uma área ou época de exercício”». Mas com a implementação da República, conforme relata no seu doutoramento Joana Dias Pereira, investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, o governo provisório decretará logo o seu apoio à pesca de arrasto, contra a posição manifestada por uma comissão de pescadores de Sesimbra, Setúbal, Seixal, Barreiro e alguns delegados do Norte, reclamando «contra os “capitalistas” que querem aumentar os vapores de arrasto, lançando na miséria milhares de pescadores das artes de pesca menos intensivas». Logo em dezembro de 1910 tem lugar «a greve dos marítimos de Setúbal» considerando que «a República pôs-se já do lado dos capitalistas e contra os trabalhadores».

Durante a década de 1910, a cidade de Setúbal vive em águas agitadas, em terra com o operariado conserveiro e no mar com os marítimos. A implementação na sociedade portuguesa da condição de vida industrial debatia-se mais do que nunca num cenário entre forças e projectos sociais opostos. É nesse quadro que numa fase inicial, se poderá esboçar uma pioneira percepção na defesa de justiça ambiental pelos pescadores, a qual resulta da reacção ao novo mundo industrial que se lhes impunha e às novas condições sociais de que a partir de então como parceiros do operariado faziam parte.

Francisco Rodrigues Franco, gerente de uma sociedade cooperativa de pesca de cerco, com embarcação de nome «Libertário»; Sabina Lopes Condeça foi sua mulher, operária das fábricas de conservas, presa em 1916 por distribuir propaganda contra a participação de Portugal na guerra. Foto: Projecto MOSCA

No Sado, entre esse antes e depois, os pescadores de Setúbal alertam para as consequências imediatas da pesca de arrasto: a sobreexploração dos recursos marinhos. Paulo Guimarães relatou mesmo como «através da sua associação de classe, foram capazes de a conter, durante um curto espaço de tempo. A 8 de Dezembro de 1910, os pescadores de mar iniciam uma greve protestando contra a liberdade de pesca concedida pelo governo aos vapores com redes de arrasto, os quais salientam “devastam os fundos, destruindo a criação”». A cidade agitava-se com os comícios da Associação dos Trabalhadores do Mar, levando a autoridade portuária a perseguir, multar e mandar prender pescadores sob qualquer pretexto.

Na verdade esta reacção violenta à modernização tecnológica tivera início pelo menos desde o início do século nas comunidades piscatórias em diversos lugares, conforme relata Joana Dias Pereira: «os pescadores, considerando que a pesca a vapor revolvia os fundos e destruía os pastos e toda a criação, destruíam galeões e cercos americanos». «Segundo três armadores de cercos americanos “na noite de 21 de Agosto de 1901, estando a pescar na costa de Caparica, o cerco americano Gazella foi atacado por gente armada daquela costa, que apoderando-se da rede, do galeão e dos dois buques, tudo arrastaram para a praia e queimaram no meio de um gáudio selvagem”».

Nesses alvores do século XX, os armadores adaptavam-se à nova situação do mercado conserveiro com o apoio das autoridades e dos industriais. Por sua vez os trabalhadores, sem prejuízo de acções de destruição e sabotagem de máquinas, irão como refere Joana Dias Pereira, «perante a inexorável perda de controlo sob o processo produtivo» começar «a investir no controlo sobre o mercado de trabalho, elaborando regulamentos segundo os quais as associações de classe geririam as colocações laborais», como foi exemplo a greve dos pescadores de Setúbal e Sesimbra logo em janeiro de 1900 contra os armadores que não cumprem o regulamento.

Assim quando se implanta a República as associações de classe sindicalistas revolucionárias e de pescadores de Setúbal passarão a assumir um maior controlo, procurando um freio possível à voracidade dos recursos, mas visando sobretudo ganhar o controlo do processo produtivo pelos próprios trabalhadores, a sua principal motivação. Por um lado, como refere Diogo Ferreira «as redes de solidariedade, provenientes de uma das mais poderosas e influentes associações de classe como a dos Trabalhadores do Mar, permitiam que estes homens lutassem abertamente contra o progresso tecnológico no seu meio, limitando a utilização de vapores uma vez que empregavam menos pescadores». Paulo Guimarães refere por sua vez, como em Março de 1916 a associação «solicitou ao governo que os pescadores, através dela, pudessem comprar cercos americanos quando fossem postos à venda, proibindo-se a sua venda a qualquer entidade estranha ao concelho. Através dos vários cercos que a associação controlava, os pescadores conseguiam indirectamente controlar o peixe que chegava às fábricas». E sobretudo, citando desta vez Joana Dias Pereira «as suas greves, em defesa de interesses próprios ou em solidariedades para com outros camaradas, determinava a paralisação de toda a cidade, dependente da sardinha que traziam do mar».

Os pescadores desenvolvem, como recorda o historiador Álvaro Arranja, as «Companhas Livres» ou o «Cerco Libertário» que «vendia o produto do trabalho colectivo dos pescadores e distribuía, por quinzena, a cada homem uma parte igual em dinheiro, independentemente da função que cada um desempenhava». Para uma melhor fotografia desses tempos é citado por Paulo Guimarães as impressões do jornalista Adelino Mendes (1878-1963) na sua visita em 1916 à «que designa simpaticamente como “a cidade dos anarquistas”, [onde] o poder dos marítimos encontrava-se no seu zénite. Com os salários elevados e, principalmente, com as percentagens gordas sobre o pescado, que os próprios pescadores comercializavam, as margens de lucro dos armadores tinham ficado cada vez mais reduzidas. A economia social parecia então ser a evolução normal, quando eles detinham já mais de uma vintena de cercos de pesca em cooperativas de produção. Ora, o comportamento dos pescadores era de contenção nas capturas quando o preço do peixe estava em baixa, uma prática que não impedia os lucros industriais numa conjuntura em que a lata atingia valores excepcionais.» Pouco tempo depois dá-se o boom na procura das latas de conserva para alimento das tropas nas trincheiras da 1ª Grande Guerra. Segundo Diogo Ferreira «durante este período estiveram, em média, 3550 pescadores em laboração, aproximadamente mais 1500 do que estavam a trabalhar em 1910, atingindo o pescado valores exorbitantes».

À oposição dos vapores de arrasto, outro alvo pelos pescadores à data entrevistados por Adelino Mendes, eram as traineiras que utilizavam a pesca a dinamite, um meio mais barato do que a pesca por arte de cerco. «Com esta técnica facilmente se enchia um barco de peixe mas destruía-se “quatro ou cinco vezes mais do que aquele que se aproveita”». Uma vez que em Setúbal e em Sesimbra não entravam traineiras, as de Sines eram acusadas de «destruir os bancos de pesca da Galé, zona antiga de pesca da sardinha dos marítimos da cidade.» Os pescadores não se faziam rogados ou receosos na sua luta, como demonstra a análise de Paulo Guimarães: «o uso da sabotagem era uma arma temível. A imprensa local relatava que, em Novembro de 1919, na sequência de graves acontecimentos que envolveram os marítimos, tinham sido apreendidas cem navalhas.»

Nos primeiros anos da década de 1920, os cercos encontram-se em greve contra o patronato industrial por causa dos preços, mas o controlo acaba por ser restabelecido e ganho pelos industriais a partir de 1922. Os cercos a vapor substituíram os últimos cercos à vela e «a crise na indústria conserveira no pós-guerra foi acompanhada pelo aumento do impulso extractivista», apesar de reconhecidos problemas ambientais e da sobrepesca (em 1924 uma lei proibia a pesca com «dinamite, carboneto de cálcio ou qualquer substância nociva»). No cenário pós-guerra, como diz Paulo Guimarães, a pesca predatória reflectiva definitivamente «o problema da subordinação da pesca aos interesses industriais». Para as indústrias conserveiras «subsistia o problema do “abastecimento do peixe e do seu preço” (menos de 10 por cento era destinado ao consumo nacional)» pelo que «a indústria respondeu às dificuldades comerciais aumentando a procura de peixe, impondo preços mais baixos e diminuindo os custos salariais através da racionalização e de inovação técnica». O caminho e o uso dado à modernização do sector davam razão aos receios antes expressados pelos pescadores: social e ecologicamente.

A descrição de Setúbal na Ilustração Portuguesa de 1910, mencionada por Diogo Ferreira é reveladora: «Tudo lá vive da sardinha. Os seus risos e as suas mágoas estão suspensas dessa personalidade». E suspensa estava a vida de Setúbal da pesca de sardinha, que como assinala o historiador «dependia de uma panóplia de factores ligados ao equilíbrio do ecossistema e à preservação da espécie ou à capacidade e técnicas piscatórias reveladas.» Por essa razão Paulo Guimarães acentuou que a modernização industrial da pesca fez-se acompanhar de um processo conflitual na qual «a sustentabilidade dos recursos marinhos constituiu uma preocupação para armadores e pescadores durante todo este período». Esse é um período que o docente da Universidade de Évora caracteriza de «crescimento empobrecedor» sem qualquer contrariedade no uso dessa adjectivação.

aqui: https://www.jornalmapa.pt/2020/05/15/o-cerco-libertario-dos-pescadores-em-defesa-do-sado/

07
Nov22

A greve dos lanifícios da Covilhã, em 1941: a última grande greve influenciada pelos militantes anarco-sindicalistas da CGT


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A greve dos trabalhadores dos lanifícios da Covilhã, em 1941, já depois de destruídos os sindicatos livres e com uma parte grande dos activistas sindicais  presos, fosse no Tarrafal ou noutras prisões do fascismo, foi a última grande greve influenciada e participada  por elementos anarco-sindicalistas  da antiga CGT.

A greve iniciou-se a 5 de novembro e teve como causa imediata a carestia de vida e os racionamentos provocados pela II Guerra Mundial.

Ferreira de Castro, o escritor anarquista, antigo colaborador de "A Batalha", proibida pelo regime fascista, escolhe a greve de 1941 e o ambiente social e operário da industria têxtil como a matéria-prima para construir o seu romance “A lã e a Neve”, cuja 1ª edição é publicada em 1947.

Descrevendo os momentos mais marcantes desta greve,  o Jornal do Fundão de 4/11/2021 refere que:

"Naquele dia 5 de Novembro de 1941, pelas 8 horas da manhã, cerca de cinco mil operários dos lanifícios da Covilhã e arredores iniciavam uma greve e punham-se em marcha a caminho do Pelourinho.  O comandante Ramos Paulo, da GNR da Covilhã, está no largo do município às 8,30h da manhã e pouco depois (como escreveu no relatório enviado ao ministro do interior) vê “uma grande multidão de operários de ambos os sexos a vir pela rua Direita em grande algazarra e atitude hostil…”  Já havia patrulhas policiais desde manhã cedo nas imediações das fábricas, junto às ribeiras da Carpinteira e da Goldra.

Com a lei do Estado Novo, Salazar proibira a greve e a oposição política, controlava os sindicatos numa estrutura nacional e encarava a paralisação do trabalho como um crime a punir severamente, o que abafava as tensões sociais e as reivindicações dos operários. A miséria vai-se agravando e, naquele mês de Novembro de 1941, a tampa salta com estrondo na cidade-fábrica onde laboravam mais de 130 empresas de lanifícios.

O escritor Ferreira de Castro, no seu livro “A Lã e a Neve” havia de escrever depois que “os operários viviam em casebres insalubres: homens de faces ocultas nas golas dos velhos sobretudos, mulheres embrulhadas nos xailes escuros e garotos de 12, 14 anos vestidos com remendadas roupas”.

 Os operários vinham reclamando aumentos de salário e, no mês anterior, uma comissão de operários das maiores fábricas apresentou ao sindicato um pedido para que houvesse um aumento de salários… Sem respostas, na noite de 4 de Novembro vão ao sindicato algumas centenas de trabalhadores que se mantiveram concentrados enquanto a comissão voltava a falar com a direcção do sindicato… Perdida a confiança na intermediação do sindicato, terá ficado ali combinado a greve para o dia seguinte.

As fábricas são patrulhadas e uma dezena e meia de operários são presos e levados para os calabouços que ficam na base do edifício dos paços do concelho (levados depois para cadeia política de Caxias). É para o Pelourinho que se dirige  “uma enorme multidão de mulheres e crianças, seguidas de perto pelos homens” exigindo a libertação dos presos. Chegam reforços policiais e um pelotão militar do quartel de Caçadores 2. Alguns feridos são levados para o hospital e um dos operários fica com uma perna amputada.

É a vigilância das fábricas e dos edifícios públicos. Uma equipa da PVDE, incluindo o subdirector Pessoa Amorim, deslocou-se para a Covilhã e começa a fazer interrogatórios.  Alguns operários influentes são convocados para demoverem os grevistas. O trabalho é retomado no dia 8 de Novembro, com promessas de que a situação seria remediada…

Porém, nada foi remediado e a 6 de Dezembro as fábricas voltam a parar.   Face a nova greve, o próprio Grémio dos Industriais de Lanifícios reúne em assembleia geral e, perante as “perturbações graves da vida social e económica da Covilhã”, envia a Salazar um telegrama a favor de uma melhoria salarial. Mas nada muda.

O governador civil, António Pinto Castelo Branco, manda a seguir publicar um comunicado ameaçando com pena de prisão e degredo aos grevistas. Os industriais são intimados a apresentarem listas de operários presentes e ausentes. Nem todos retomam o trabalho, mas a greve dilui-se.

O Notícias da Covilhã, dois meses mais tarde, refere-se à penúria que alastra na cidade e aos “bandos famélicos cobertos de farrapos”, apelando a  uma união das instituições de beneficência para “dar comida a quem tem fome e vestir os desenrpoupados”…

Só em 1943, viria a verificar-se uma aumento salarial, com um novo contrato colectivo para os lanifícios. Em 1946  as greves nos lanifícios  voltarão a agitar a Covilhã, com muitas dezenas de presos, incluindo mulheres, mas a ditadura acabaria por resistir e endurecer ainda mais a repressão.  Os alvos da “PVDE – Polícia de Vigilância e Defesa do Estado” (em 1945 passa para PIDE e em 1969 para DGS – Direcção-Geral de Segurança), não eram só as organizações políticas forçadas à clandestinidade, mas também o próprio movimento operário, no qual o salazarismo procurava extinguir qualquer cultura de protesto e acção colectiva, enraizada na Covilhã.

Entre os operários presos e levados para Caxias, a polícia do regime procurava ligações a organizações políticas, mas não as encontrou. Os 15 operários quase todos jovens estiveram sete semanas em Caxias, com passagens pela sede da PIDE e pela prisão do Aljube. Um deles, Felisberto Fernandes, casado, com 28 anos de idade e analfabeto, após mais um interrogatório, viria a morrer no hospital de S. José.

Após anos e anos de controlo e repressão laboral em todo o país, o operariado da Covilhã, põe fim à resignação e surpreende o regime. “É o que vai desencadear os movimentos grevistas até 1946. Os operários dos lanifícios estiveram na vanguarda” – conclui o historiador António Rodrigues Assunção." (aqui)

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“E, então, pôs-se a olhar para os outros homens, vestidos de negro, que passavam na sua frente, caras que lhe eram familiares, operários da Aldeia do Carvalho, e da Covilhã, que ele conhecia da hora da saída das fábricas, dos diálogos no Pelourinho, das próprias ruas onde habitavam. À medida que iam passando, ele evocava as ideias, as embrionárias ansiedades que tinha ouvido a cada um deles, desde que deixara o cajado de pastor e viera trabalhar para as fábricas. E cada vez ele se sentia mais confortado, mais confortado cada vez, por verificar que quase todos os que passavam na sua frente pensavam como Marreta e como ele próprio pensava agora.

Viu Tramagal, Ricardo e João Ribeiro a descerem a calçada – e juntando-se a eles, Ricardo disse-lhe:

- No sábado à noite, vamos fazer uma reunião, aqui, na Covilhã, em casa do Ildefonso. Precisamos de continuar...Compreendes? Precisamos de continuar...Não faltes!

- Lá irei – respondeu. E voltou a sentir-se menos abandonado do que quando vira, momentos antes, enterrar Marreta e muito menos do que quando há anos, entrara para a fábrica. Parecia-lhe que uma secreta força, que ele desconhecia quando viera para ali, partia dos outros para ele e dele para os outros – ligando-os a todos e dando-lhes, com novas energias, uma nova esperança. Ao chegarem ao começo da Rua Azedo Gneco, onde ele vivia, Horácio despediu-se.

Mesmo ao andar sozinho na viela solitária, parecia-lhe que não ia sozinho." (*)

(*) Castro, Ferreira de, "A Lã e a Neve", citado por Cátia Sofia Ferreira Teixeira, na Dissertação de Mestrado em História Contemporânea "As greves dos operários de lanifícios da Covilhã no Inverno de 1941 -O início da agitação operária em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial", FCSH, Lisboa, Novembro de 2012

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Nesta greve é preso, entre outros operários, Felisberto Fernandes Berto, conhecido como "O Boga", a 7 de novembro, dois dias depois da paralização ter começado. Felisberto morrerá dias depois, ainda detido, no Hospital de S. José, em Lisboa.

Tendo nascido em S. Martinho, concelho da Covilhã a 18 de setembro de 1913, filho de António Fernandes Berto e Maria dos Santos da Piedade, operário têxtil, toma parte ativa nas greves das fábricas de lanifícios, participando, designadamente, na invasão da Fábrica Alçada, no dia 5 de novembro de 1941, pelas 14 horas, concretizada por uma multidão de operários e operárias.
Inicialmente, a exigência de melhoria salarial estava restrita a um sector da indústria de lanifícios – o sector de estambres – mas rapidamente alastra à totalidade do operariado da região.
Dez operários foram presos à saída da Fábrica Alçada. Os restantes serão presos como consequência de denúncias e um outro, nas manifestações de rua.
Segundo a PVDE, que destaca para a Covilhã o inspetor José Maria Branquinho, para proceder aos interrogatórios, na invasão da Fábrica Alçada destacam-se Gilberto Duarte, que então estava a prestar serviço militar e que será levado a julgamento no tribunal Militar Especial, e Felisberto Fernandes Berto.
Este operário foi entregue à PVDE pela PSP da Covilhã em 7 de novembro de 1941 e enviado para o Depósito de Presos de Caxias, sendo transferido, logo no dia 18, para a Cadeia do Aljube. Regressou a Caxias no dia seguinte e, no dia 1 de dezembro baixou ao Hospital de S. José, falecendo no Hospital do Desterro no dia 20 de dezembro de 1941, alegadamente com uma úlcera. Tinha 28 anos de idade. (aqui)

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06
Nov22

António Ferreira, ex-preso social, libertário


 

No dia 6 de novembro de 2013 morrria, em Setúbal, António Ferreira, ex- preso, libertário, natural de Portimão, que motivou uma forte campanha de solidariedade por parte de vários colectivos que exigiam a sua libertação. Durante 30 anos, António Ferreira foi protagonista de todas as lutas de contestação promovidas por reclusos e “visitou” as prisões mais duras de Portugal.
Na altura da sua morte, escreveu António Pedro Dores, responsável pelo Observatório das Prisões:
"António Ferreira de Jesus descansará em paz
António Ferreira de Jesus (30/10/1940 a 6/11/2013) era um libertário. Conheci-o como um colaborador de todas as lutas contra a perversidade carcerária. A vida dele foi - soube-o mais tarde – praticamente toda feita entre muros (52 dos 73 anos de vida). Mas na prisão a sua fama era de ser superior. De inspiração e fonte de confiança para todos os que estivessem em condições de reclamar justiça. O Ferreira era quem sabia organizar com mais clareza as palavras para explicar o que se estava a passar. E como isso é importante numa cadeia.
Sofreu de tudo quanto o regime prisional tem para oferecer: transferência como castigos informais, isolamentos, censura nas comunicações, negligências nos cuidados de saúde, ameaças de morte para que se calasse. Mas a maior tortura foi judicial, a que baralhou as papeladas como justificação para que a pena cumprida fosse maior do que a pena de condenação.
António Ferreira de Jesus ensinou muito do que aprendemos sobre as prisões. Minucioso na observação, contido e preciso na afirmação, ponderava o valor das palavras e assumia as suas posições como questões de honra. Sabia que tudo podia ser pretexto para um ataque ao que tinha de mais precioso. A dignidade era o seu alimento. E o companheirismo a sua imagem de marca.
Atraiu um grupo de jovens correligionários para amigos, com quem manteve uma fraterna amizade, de que fui testemunha. Grupo que lhe serviu de amparo à saída da prisão e lhe soube assegurar a liberdade profunda a que sempre aspirou. E que ele sempre exigia. Bem hajam.
Ficou claro para ele, e pagou com a vida essa certeza, o carácter desumano e ilegítimo de qualquer sistema prisional, seja sob regimes fascistas ou democráticos, seja quanto a presos de consciência ou presos sociais.
António Pedro Dores"
 
06
Nov22

Livraria Utopia: Quarenta Anos à Margem


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Entrevista a Manuel Ricardo de Sousa e Herculano Lapa

Esta micro-história da livraria Utopia, um facto absolutamente marginal e periférico, só comprova que algumas coisas podem acontecer, e acontecem, nos interstícios do Sistema sem terem sequer, e muitas vezes não querendo ter, visibilidade, mesmo que nesta sociedade contemporânea haja a pretensão totalitária de só legitimar como existente o que se deixa ver.
 

A Utopia cumpre agora 40 anos, muito tempo e muitas histórias. Contem-nos um pouco como chegaram as vossas vidas à formação da Utopia, e em que ambiente foi possível germinar um projecto de afinidades libertárias num momento histórico dominado ainda por tendências autoritárias da esquerda?

Manuel Ricardo de Sousa – A ideia de abrir uma livraria alternativa no Porto, numa época em que outras já tinham encerrado, como a Erva Daninha e a Contra-a-Corrente, deve-se em parte ao facto de ter rompido com as FP25 e termos decidido, eu e a minha companheira, mudar-nos para o Porto, onde já tinha relações com companheiros anarquistas de Vila do Conde. Também influenciou o facto de estarmos ligados à histórica editora Centelha, de Coimbra, onde na época editámos livros como A Europa da Repressão ou a Insegurança do Estado, Uma Campanha de Salubridade de Júlio Carrapato e A Anarquia Perante os Tribunais de Pietro Gori, em grande parte sustentada pelo entusiasmo militante do advogado e cooperativista Sobral Martins. Curiosamente nessa pequena vila de pescadores surgira um activo núcleo de libertários resultante das relações dos irmãos Veiga (Joaquim, recentemente falecido, e Armando, um dos organizadores dos acampamentos anarquistas em Izeda). Após Joaquim se ter exilado em França, através dele começaram a chegar as ideias anarquistas a jovens trabalhadores da vila, o que gerou esse núcleo que apareceu após o 25 de Abril e nunca desapareceu, ao contrário do que ocorreu noutras cidades. Foi com esses companheiros que em grande medida se desenvolveu a ideia da livraria Utopia e vários deles estiveram envolvidos nas obras de adaptação do espaço. Quem também colaborou foi o Karpov, que conhecia do Grupo Anti-militarista e Ecológico da AAC e do activismo anarquista em Coimbra, e que nesse momento estava a tirar no Porto um curso de formação profissional de pedreiro. Quando abrimos já o ambiente radical da cidade estava em desagregação, na ressaca da estabilização política, e diversos militantes que tinham participado em grupos de extrema-esquerda, em particular do «Grito do Povo», que teve relevância no Porto e no Norte no pós-25 de Abril, tinham rompido com o leninismo, alguns aproximando-se de posições libertárias

À volta da Utopia acabou por reunir-se um grupo diverso de pessoas. Que projectos, actividades e publicações nasceram entre aquelas estantes repletas de livros? 

MRS – Sendo um espaço um pouco periférico na geografia comercial — e sendo reduzido o ambiente libertário e alternativo da cidade, como o é ainda hoje — que já estava vendida à lógica da reestruturação capitalista, e com a militância esquerdista a reciclar-se, a vida não era fácil para uma livraria como a Utopia. Também não tínhamos espaço para actividades, exceptuando pequenos encontros de algumas pessoas, mas fomos resistindo — quer como Utopia, quer como Grupo Germinal de Vila do Conde, que era constituído pelo Lano, Ramiro, Quim, Gena e eu — acompanhando as iniciativas dos grupos libertários, principalmente dos companheiros de Coimbra e Leiria, os encontros, campanhas, conferências, acampamentos que se foram realizando. Um pouco à margem do que se passava em Lisboa, com todos os seus conflitos, onde só íamos irregularmente e com pouso certo na Bica, na casa do velho peixeiro e anarquista heterodoxo Zé de Brito. Na Utopia começaram a aparecer, aos poucos, alguns companheiros com os quais não tínhamos ainda contacto regular como o Paiva, a Fany, o António, o agitador da contracultura tripeira, e o restante grupo da Rádio Caos, o Alvão e o Figueiredo, entre outros, além dos curiosos clientes de livros usados, que são uma fauna muito particular que frequenta esses espaços e sente ao longe o cheiro de livro velho. Não havia muitos livros mas tínhamos os suficientes, além das publicações anarquistas da época e fanzines, que marcavam a diferença…

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Manifesto do grupo Anarquista”O Geminal” de Vila do Conde, onde após o 25 de Abril surgiu um activo núcleo de libertários no qual viria a desenvolver-se a ideia de abertura da livraria Utopia.

Tendo a Utopia sido inaugurada no período de normalização democrática e entrada na sociedade de consumo, mas onde a luta armada ainda era uma realidade na luta anti-capitalista tanto em Portugal como em Espanha, de que forma o colectivo de pessoas que girava à volta da Utopia, foi fundamental no apoio a companheiros e companheiras que mantinham actividades ilegais?
 
MRS – É necessário ter presente que ainda não tinha ocorrido todo o processo de «normalização» política, nem sequer a sociedade de consumo estava ainda instalada, só com a adesão à CEE esse ciclo se começa a fechar no final dos anos 80, início dos 90. Mantínhamos então contactos frequentes com companheiros do estado espanhol e foi através deles que mais tarde, Luís Andrés Edo, um histórico militante anarquista catalão do pós-guerra, já falecido, nos faria chegar o pedido de apoio a companheiros libertários em fuga. Pela Utopia passariam, entre outros, Alberto e Conchita, ele escapado da prisão numa das mais espectaculares e curiosas fugas ocorridas em Espanha nos anos 80, quando trocou de lugar na prisão com o seu irmão gémeo. Acabariam indo para a Nicarágua e para o México, só voltando à Catalunha muitos anos mais tarde. Esses companheiros e outros ligados aos Comandos Autónomas Anti-Capitalistas, bem como à COPEL, o Manolo e a Iza, que eram maioritariamente libertários, mas à margem das organizações históricas CNT/FAI, seriam alguns dos que foram apoiados nessa rede ilegal e informal de afinidades libertárias. Mas também companheiros portugueses com problemas legais. Foi nessa época que conheci, nas idas a Espanha e a França, entre outros, Abraham Guillén, Octávio Alberola, Ariane Gransac, António Tellez, Abel Paz, activos militantes espanhóis da geração pós-Guerra Civil envolvidos na resistência anti-franquista. Era a geração de «transição», embora muito ligada ainda à Guerra Civil, mas que tinha após os anos 60 tentado através das Juventudes Libertárias e da acção directa, dar uma nova vida ao activismo revolucionário anarquista. Activismo que continuou, ainda pelos anos 70, com diversos grupos em Espanha, França e Itália, e que obviamente ainda se prolongou na geração seguinte.

Como se dá já nos anos 80 a tua saída da Utopia e o Lano assume a responsabilidade da livraria?
 
MRS – Pelas razões já referidas do meu envolvimento na fase inicial das FP 25, assunto sobre o qual já escrevi e não vale a pena aprofundar, e a passagem de diversos companheiros com problemas legais pelo nosso espaço, mas principalmente pela denúncia de um bufo, a Utopia foi colocada sob observação pelos homens da DCCB. Quando se tornou evidente essa vigilância e que a qualquer momento iriam ocorrer prisões, eu e a minha companheira abandonámos a livraria e a cidade. Mas, apesar de tudo, era importante que a livraria continuasse a funcionar independentemente deste acidente de percurso. Herculano que desde sempre era um trabalhador assalariado com pouca vontade de o ser, mostrou-se disponível para assumir a Utopia até porque a polícia nunca teve nada de concreto contra a livraria para lá do cheiro a esturro que o seu faro apurado sempre é capaz de detectar. Por sorte nossa, e azar deles, também não nos conseguiu então prender pelo que o máximo que podiam fazer era manter a livraria sob vigilância e escutas. Tudo ficou na obscuridade do jogo do rato e do gato, não chegando ao espectáculo jornalístico. Mais tarde, ocorreria a minha prisão, mas já em Coimbra, e logo em seguida, a fuga colectiva da EPL. Após isso nos meses seguintes sabendo que as opções eram escassas neste pequeno país, e que mais dia, menos dia, iria voltar a ser preso, decidimos sair para o estrangeiro. Antes disso tivemos um encontro com os companheiros de Vila do Conde em que discutimos com o Herculano a continuidade da livraria pois sabia que pelo menos por dez ou quinze anos, na melhor das hipóteses, não poderia voltar a viver em Portugal. É a partir daí que o Herculano assume integralmente os rumos desse espaço alternativo do Porto demonstrando uma capacidade de resistência notável nas décadas seguintes, conseguindo fazer sobreviver a Utopia a todas as adversidades sociais, económicas e livreiras. Mesmo sabendo que teria uma vida mais tranquila, e acomodada, na condição de predestinado à vida de assalariado.

 Nos anos seguintes quais foram as principais actividades na área libertária em que a Utopia esteve envolvida? Quais foram as relações com os grupos jovens informais que publicavam fanzines e com o colectivo Inquietação do Porto e com a revista Utopia? 

Herculano Lapa – Quando fiquei na Utopia, os contactos regulares foram ainda com as pessoas ligadas à Rádio Caos, que emitia a partir da Praça da República aqui ao lado da Utopia. Nesta rádio, que vivia em plena autogestão até ao momento em que foi silenciada pela lei do audiovisual, foi possível participar com estreita colaboração em programas, através de entrevistas, partilha de livros e revistas, alguns deles emitidos a partir da Utopia. No campo das edições continuamos continuámos a colaborar com a Centelha/Fora do Texto, nesse período pertenciam também ao colectivo da Centelha, o Chico, o Karpov e o Zé Tavares,  até ao seu desaparecimento com a morte de Sobral Martins. Foram editados nesse período livros como À Tribo dos Irrecuperáveis, Guerrilha no Asfalto e A Resistência do Índio à Dominação do Brasil, um livro de Jorge Valadas e outro do João Bernardo para falar de alguns dos mais interessantes. Uma das apresentações interessantes que fizemos foi o de uma nova edição do Discurso sobre o Filho da Puta de Alberto Pimenta, que o autor dedicou à URSS-EUA e foi um momento marcante, como sempre acontecia com as perfomances do Pimenta. A publicação de fanzines de música, pequenos contos, poesia e política, fazia aparecer ainda alguns jovens com curiosidade e gosto pela leitura dessas publicações, um dos quais, o Noé, passou a colaborar regularmente com a livraria. Num período tivemos também discos e cassetes de música punk e literatura libertária vinda de Inglaterra e Estados Unidos, que o João encomendava para distribuir  na sua distribuidora, Confronto. No final dos anos 80 foi possível com jovens companheiros libertários, organizar debates contra as comemorações dos «descobrimentos», onde denunciámos o roubo e massacre das populações indígenas e o tráfico de escravos, todo o lado sombrio da nossa história. Nesta campanha contra a expansão portuguesa, colaboramos com o MAR – movimento anti-racista, anticolonialista, antí-nacionalista, e distribuímos o seu Boletim que denunciava a história colonial portuguesa. Com o César Figueiredo e o Germinal organizámos uma exposição de Mail Art internacional, que esteve em exposição em Vila do Conde onde se debateu «os encobrimentos», com a colaboração do Júlio Henriques, também companheiro nosso na Centelha, que agora edita a revista Flauta de Luz. Com o Paiva fui participando em diferentes actividades sobre o anarquismo; com o Luis Chambel participei no Inquietação. Este colectivo que durou mais de uma década era composto por algumas pessoas mais próximas da extrema-esquerda mas também alguns libertários, lembro do Rui Ribeiro agora editor em Lisboa e o Paulo Esperança, nessa altura os debates mais apaixonantes foram a desmontar as eleições e o vanguardismo como herança do marxismo-leninismo! Destas experiências nasceram as Jornadas Libertárias do Porto e as Feiras do Livro Anarquistas na cidade.

Uma campanha de salubridade de Júlio Carrapato, A anarquia perante os tribunais de Pietro Gori e Resistência do índio à dominação do Brasil de Luiz Luna, são algumas das ediçōes da Centelha/Fora de Texto, uma editora intimamente ligada à livraria Utopia.

Houve encontros e tentativas associativas dos meios libertários nesse período?

HL – Nos finais dos 80 e no começo dos anos 90 foram-se criando condições para uma  maior aproximação e cooperação nos meios libertários em Portugal, superando alguns problemas da década anterior, talvez porque começava a ficar claro a pouca actividade individual e dos grupos dos anos anteriores. Foi assim que  nasceu a Associação Cultural a Vida, da qual fui um dos fundadores, em 1995, que editou a Revista Utopia até e reuniu companheiros provenientes de diversos grupos e publicações da geração pós-25 de Abril, constituindo o colectivo mais diversificado que até então se tinha reunido. Com o Germinal distribuímos a revista pelo norte do país, com a associação participei no Acampamento Libertário de Izeda em 1997, onde mais uma vez o Armando Veiga foi fundamental, e que teve uma participação significativa. Esta iniciativa chegou a ter destaque mediático. Foi pena que o impulso resultante desse acampamento, onde surgiram novos companheiros e companheiras, não tenha sido aproveitado pelo movimento libertário para se consolidar no aspecto associativo.

Como conseguiu a Utopia sobreviver nesta fase recente, com a crise geral na área do livro e a pressão da turistificação da cidade do Porto. E como tem participado — ou se tem relacionado — com as diversas lutas que têm surgido nos últimos anos na cidade?

HL –  A certa altura pensava-se que os meios digitais iriam liquidar o livro impresso e pôr fim à importância do livro, mas isso não veio a acontecer, pelo menos da forma que alguns imaginavam. O livro em papel continua, apesar de tudo, a ter uma relevante função cultural e, hoje, com pouco dinheiro podem encontrar-se obras interessantes nas livraria e alfarrabistas! No entanto, o maior problema das livrarias independentes, principalmente das alternativas como a Utopia, continua a ser conseguir que os leitores as continuem a frequentar, em vez de comprarem livros nas grandes cadeias e nas «Amazons»…
No que se refere ao impacto do turismo, basicamente tem estado a retirar as pessoas da cidade, a pandemia abrandou essa vertigem especulativa, mas os próximos anos vão indicar para onde caminhamos. Se tudo se vier a acentuar, as cidades como o Porto e Lisboa, vão ficar para as classes média e alta portuguesa e estrangeira, afastando os cidadãos comuns das cidades, principalmente os jovens e os velhos. Por isso mesmo as lutas pela habitação e em defesa do direito à cidade são das que estão mais na ordem do dia neste país, principalmente se integradas na crítica às ideias dominantes de desenvolvimento e progresso.
É necessário referir que apesar de tudo foram aparecendo diversos espaços de afinidade libertária na cidade, do Terra Viva, dedicado há muitos anos à ecologia social, à Casa Viva, já desaparecida, espaço ocupado autogestionário, onde se fez um dos últimos grandes encontros libertários, ao Musas e ao Gato Vadio, cada um com a sua forma e filosofia própria. Não esquecendo os mais recentes com a Gralha e o Maldatesta ou experiências únicas na sua mobilização como a da Es.col.A da Fontinha.
Mas a Utopia manteve-se como o único espaço exclusivamente livreiro, evidentemente falando do Porto, em Coimbra e depois em Lisboa o Zé Tavares teve a Crise Luxuosa, com todas as dificuldades associadas a esse facto. Termino dizendo que não sei quantos mais anos a Utopia irá sobreviver mas até lá reafirmo que é um espaço aberto a todos os leitores, principalmente aos que connosco têm mais afinidades, aqui sempre poderão trocar ideias e comprar algum livro que não irão encontrar nas grandes livrarias comerciais…

 

Artigo publicado no JornalMapa, edição #34, Maio|Julho 2022.

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04
Nov22

Cronologia Libertária: revista "Subversão Internacional" - do Situacionismo ao Anarquismo


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SUBVERSÃO INTERNACIONAL. 1977: nº 1 (+ supl.); 1978: nº 2 a 3; 1979: nº 4 a 6

Em Novembro de 1977 começou a publicar-se a revista "Subversão Internacional", com um discurso situacionista, mas a que estavam ligados companheiros com afinidade libertária e que teve um eco significativo nas gerações mais novas de militantes libertários. Do grupo desta revista, que tinha a sua redacção e administração em Coimbra, fazia parte José Maria Carvalho Ferreira (que evoluiu dum pensamento marxista para o anarquismo, com passagens pelo conselhismo e pelo situacionismo, e que mais tarde estaria ligado à Utopia e também à "A Batalha", assumindo nestes dois projetos jornalísticos, entre outros, a função de director).

A revista publicou-se até ao nº 6, datado de dezembro de 1979. 

Ficha técnica do nº 6:  Publicação trimestral. Dezembro de 1979. Preço: 30 escudos. / Director: J.M. Carvalho Ferreira.  Redacção e Administração: Chãs de Semide, Coimbra * Tiragem:1 5 0 0 exemplares Composição e Impressão: Gráfica 2000, Rua Sacadura Cabral, 89-a, Cruz Quebrada.

Nº 1 (Outono, 1977)

SI – Introdução e Notas; O Fim da Tranquilidade: Delinquência e Progresso; Roubo de Bancos: um eterno problema?; Mulher: objecto de Cama e  Mesa; Aspectos do novo movimento operário em Espanha; Sobre o conteúdo do movimento social pós-franquismo; A reforma agrária em Portugal: um balanço; Notas e Informações de e sobre a Rote Armee Fraktion, dita ‘Grupo Baader-Meinhof’

Suplemento ao nº 1: Brochura:  A “Rote Armee Fraktion e a Alemanha Federal.

Nº 2 (1978)

Na Hora da Nossa Morte; Critica da IS; Da Comunidade Primitiva ao Primitivismo do Engate/1; Depois de Marx, Abril: a Itália; O movimento capitalista em Portugal; Discussão sobre a RAF e o Terrorismo; No Metropolitano; Portugal através de uma lupa; Grâ-Bretanha: o Movimento Grevista, 1977; Correspondência: Espanha; O Brasil está pegando fogo

Nº 3 (Outono de 1978)

Da falência da extrema esquerda ou de como é necessário ser inconformista para se ser revolucionário; Do terrorismo em Itália: as Brigate Rosse e o seu tempo; Da Comunidade Primitiva ao Primitivismo do Engate/2; O sexo da revolução; Correspondência; Alice Corinde: Fragmentos da Matança do Porto; Socialismo alentejano; Prisão com um depoimento; Delinquência Revolta; Anarquismo na região portuguesa; Para uma biblioteca da revolução social; Fernando Pessoa: Textos de inconformismo (Análise da vida mental portuguesa); Notas  Apontamentos; Resenha de Gazetas

Nº4 (Fevereiro de 1979) - pdf

Abolir o Trabalho; Sindicalíssimo (Sindicatos & Sindicalismo em Portugal); Da Política; ‘Angola é Nova’; Fernando Pessoa: Textos Inéditos em Portugal; Trabalho, Vida & Morte made in Brasil; A Modernidade Polaca: - Crónica; Natal: a Festa da Morte (Lenta) de Cristo; Mercado Comum da Repressão; Notas

Nº 5 - (1979)

Refutação do Terceiro Mundo, Crítica da Consciência Subdesenvolvida; O Pesadelo Nuclear: Todos Vivemos na Pensilvânia; Poesia Popular Contemporânea, Classe Trabalhadora das Letras, Ana le Fabbet; Formação Sindical; A impossível Revolução portuguesa; Crítica de SI e do Marginalismo, Phil Mailer; Introdução ao Cimitério Sonoro, Alice Corinde; A guerrilha Social em França; O Planeta das Greves; Depoimento de um Prisioneiro; Correspondência; Resenha de Gazetas; Especial: Guia Turístico de Marrocos

Nº 6 - (Dezembro de 1979)

Circo Eleitoral; A China Moderna; Das Comunidades Beat aos Hippies; Os Esquerdistas morrem em Portugal; Abaixo o Proletariado; A Última Pena de Morte em Portugal; A Revolta da Miséria, Miséria da Revolta: Irão; Crítica de SI; Quem inventou o trabalho?; Depoimentos sobre o Trabalho e as Prisões; A Sociedade Contra o Estado.

alguns textos da revista (2) foram publicados aqui 

01
Nov22

José António Machado, corticeiro, tipógrafo, jornalista: um percurso exemplar de lutador anarquista por uma sociedade sem exploração nem opressão


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José António Machado (1915-1978), de origem operária, depois tipógrafo e jornalista, foi um dos militantes libertários que permitiram a existência de “A Batalha” clandestina, bem como de outra propaganda anarquista e anarco-sindicalista durante os tempos da ditadura.

Filho de Ana José Camacho Machado e de Artur António Machado, nasceu em 25 de Junho de 1915, no Barreiro. Começou a trabalhar aos 16 anos na indústria corticeira no Barreiro, vindo depois para Lisboa como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional.

Autodidacta, dedicou-se ao estudo e difusão do esperanto e dos ideais libertários. Fez parte do grupo anarquista do Barreiro “Terra e Liberdade”, que na altura publicava um jornal com o mesmo nome.

Embora muito jovem e aparentando alguma debilidade física (daí ser conhecido como o  “Machadinho”) integrou a organização anarco-sindicalista do Barreiro e fez parte do comité organizador das Juventudes Libertárias juntamente com Emídio Santana, que seria um dos responsáveis pelo atentado a António de Oliveira Salazar em 1937.

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Em Lisboa frequentou a Casa dos Marinheiros, onde funcionava o Grupo Editorial Argonauta, e trabalhava já na Imprensa Nacional de Lisboa, como aprendiz de tipógrafo,  quando  foi preso pela primeira vez pela PVDE, em 1934 (1933?), acusado de envolvimento na Aliança Libertária de Lisboa e de ter composto e impresso manifestos subversivos (e também os jornais A Batalha, órgão da CGT, proibido desde Maio de 1927, e O Libertário, porta-voz da Federação das Juventudes Libertárias) na tipografia clandestina que mantinha em casa.  Foi julgado e condenado em Tribunal Militar Especial, em 9/5/1934 a “uma pena de 10.800$00 de multa que não sendo paga no prazo legal será convertida em 18 meses de prisão correcional e perda de direitos políticos por 5 anos a partir da data em que atingir a maioridade” (na altura tinha 18 anos) . Da ficha policial, como motivo da prisão, consta apenas: Anarquista. 

Deu entrada no Aljube em 19/12/1934, sendo daqui transferido para Peniche em 19/2/1935 e, depois, para Angra do Heroísmo em  8/6/1935. Foi restituído à liberdade em 7/1/1936, tendo nessa data regressado a Lisboa. Em Peniche, foi o idealizador de O Libertário, um jornal manuscrito, que se fazia na prisão, revela Edgar Rodrigues,  “um esforço que se perdeu por ter boa parte dos jornais caído nas mãos da PIDE”

José António Machado foi preso novamente alguns meses depois em 22/7/1936, alegadamente por “por se referir publicamente e de forma desfavorável aos nacionalistas e Exército espanhóis, sendo libertado em agosto (1/8/1936)”.  Foi preso novamente em 8/10/1937, para “averiguações”, com a policia a tentar incriminá-lo como estando envolvido no atentado a Salazar. Recolheu “incomunicável a uma esquadra” e “transferido para a 1ª Esquadra em 27/4/1938. Baixou em 12/6/1938 ao Hospital de São José”.

Fugiu em 20/11/1938 do Hospital de Santo António dos Capuchos, tendo sido julgado à revelia em 11/11/39 e condenado a uma pena de 4 anos de prisão.

Durante este período, em liberdade, continua a apoiar as edições e a imprensa clandestina, sobretudo, A Batalha, dada a sua experiência como tipógrafo.

Perseguido pela polícia refugia-se em Coimbra onde começa a trabalhar no “Diário de Coimbra” onde assina com o nome de José Ferreira Graça, como a partir daí começa a ser conhecido. A própria ficha policial ostenta os dois nomes: José António Machado ou José Ferreira Graça.

É preso em Coimbra (*) , na redacção do “Diário de Coimbra” a 18/5/1942, com um mandato de captura emitido pelo Tribunal Militar Especial, “tendo recolhido aos calabouços da PSP naquela cidade”. Esteve preso no Aljube entre 21/5/1942 e transferido para Caxias em 4/6/1942 e posteriormente, a 5/12/1942 para Peniche.

Apesar de ter requerido novo julgamento - que acontece em 2/12/1942 e em que é absolvido -  a “volta” de José António Machado pelas prisões do fascismo não fica por aqui: em 30/11/1942 é transferido para o Aljube e em 16/12/1942 para Caxias. É posto em liberdade a 12/2/1943.

Em liberdade regressa a Lisboa, continuando a actividade jornalística, agora na  redacção do “Jornal do Comércio” – onde trabalhará até ao fim da vida, atingindo o cargo de chefe de redacção - e apoiando ao mesmo tempo as tipografias clandestinas libertárias, que se foram sucedendo no tempo em vários locais, fosse ao nível da escrita, fosse ao nível dos caracteres tipográficos a que tinha acesso no jornal em que trabalhava.

Pertenceu ao “núcleo duro” que manteve a chama e a propaganda anarquistas durante os anos da ditadura, em conjunto com Emídio SantanaMoisés da Silva RamosAcácio Tomás AquinoCustódio da CostaFrancisco Quintal,  Lígia Oliveira, Luísa Adão e muitos outros, embora também, no plano legal, tenha subscrito diversos abaixo-assinados de protesto contra a ditadura. Segundo a sua biogradia inserida na página da Imprensa Nacional, José António Machado subscreveu "a representação «Os Intelectuais Portugueses Protestam» (novembro de 1946), juntamente com dezenas de figuras como Adolfo Casais Monteiro ou Miguel Torga, contra a censura; assinou uma exposição que pedia o arquivamento do processo aberto a Aquilino Ribeiro devido ao livro Quando os Lobos Uivam  (abril de 1959), enquanto redator-jornalista do Jornal do Comércio (1962); subscreveu, em 8 de novembro de 1966, juntamente com mais 117 personalidades, um abaixo-assinado onde se exigia a demissão de Salazar, a dissolução da Assembleia Nacional e a nomeação de um governo de transição; assinou como «José António Machado, jornalista» a representação dirigida aos Deputados e ao Presidente da Assembleia Nacional preparada por Mário Soares, António Macedo, Francisco Sousa Tavares, Francisco Lino Neto, Raúl Rego, Francisco Salgado Zenha, Urbano Tavares Rodrigues e Gustavo Soromenho, de 6 de novembro de 1967, contra a censura e ausência de liberdade de expressão; assinou o abaixo-assinado dirigido ao Presidente da República contra «os atos de arbitrária violência a coberto de pretextos inaceitáveis» sobre Luís de Sttau Monteiro, preso em Caxias por ser autor do livro Peças em um acto."

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Muito activo também no pós 25 de Abril de 1974, colaborou no reaparecimento de A Batalha legal.

José António Machado, conhecido nos círculos próximos, com amizade, como o “Machadinho”, depois de na clandestinidade ter sido o “Graça”, morreu a 18 de Março de 1978, na sequência de uma operação e após uma doença prolongada, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa.

José Francisco, seu companheiro de militância, refere num artigo necrológico sobre José António Machado, publicado na "Voz Anarquista" (nº 30) que, pouco antes de morrer, ainda “era em sua casa que fazia a revisão e a paginação do jornal [A Batalha], no qual colaborou, desde a composição à impressão e desta à sua distribuição e afixação na rua, durante a clandestinidade”, acrescentando que “resistente até ao fim da sua vida, com 62 anos, foi a enterrar na terra onde tinha nascido – Barreiro”.

(*) Segundo informação recolhida por João Freire, a prisão ter-se-à dado depois do próprio José António Machado, farto dos anos de vida clandestina, a ocultar-se das autoridades e impossibilitado de manter os laços e os contactos habituais, se ter, ele próprio, "denunciado" à polícia, facilitando a sua detenção.

Fontes

Edgar Rodrigues, “A oposição libertária em Portugal”, Editora Sementeira, Lisboa, 1982 pag. 196

“José António Machado, um dos obreiros da Batalha clandestina” https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2016/09/29/memoria-libertaria-jose-antonio-machado-graca-um-dos-obreiros-d-a-batalha-clandestina/

José Francisco, “Morreu José António Machado, companheiro que foi um exemplo”, Jornal Voz anarquista, nº 30  .

Lista de presos de Peniche http://www.urap.pt/attachments/article/530/ListaPresosPoliticosFortalezaPeniche_16MAR2014.pdf

MACHADO, José António, https://imprensanacional.pt/history-heritage/machado-jose-antonio/

Transferido de Peniche para o Aljube https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4368040

De Peniche segue para Angra do Heroismo.  https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4368069

https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4368069

Regressa a Lisboa https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4363153

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Nov22

Cronologia Libertária: novembro um mês importante para a imprensa libertária e operária de Évora


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Elias Matias (1888-1990) foi um  relevante miltante anarquista em Évora na primeira metade do século XX. Foi membro do Grupo Anarquista Propaganda Livre, que editou o “Avante!” em Évora (1908-1912) e correspondente de “O Sindicalista” e  de “A Aurora” (1911-1912), sob o pseudónimo de “Marti”. Foi ainda membro do Grupo Revolucionário “Luz e Acção” (Santiago do Escoural, 1923) , filiado na União Anarquista Portuguesa. Ele e o Grupo Anarquista Propaganda Livre tiveram um papel importante no Comité de greve e de apoio aos rurais alentejanos aquando das grandes greves do início de 1912. (Foto http://mosca-servidor.xdi.uevora.pt/projecto/index.php )
 
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Em novembro sugiram três orgãos de imprensa relacionados com o espaço libertário e sindicalista revolucionário em Évora.
 
1) Logo em novembro de 1919 sugiu a "Aurora Social", órgão e porta-voz da União dos Sindicatos Operários de Évora. Publicou-se durante vários números (pelo menos até Maio de 1920, com um número extraordinário para o 1º de Maio de 1922) , tinha a sua morada na sede da USO, na Praça Joaquim António de Aguiar, e nas suas páginas durante a sua curta existência dão-se noticias de diversas actividades das associações de classe desta cidade alentejana e textos que reflectem as questões que se colocavam aos sectores mais progressistas do movimento operário, dede o associativismo operário ou a recente revolução russa, até à criação da Escola Francisco Ferrer ou de um grupo dramático da USO com actuações no teatro Garcia de Resende. 

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2) Muito mais tarde, em novembro de 1976 aparece o jornal "Apoio Mútuo" que se publicou entre novembro de 1976 e inícios de 1977. Era um jornal combativo que juntava companheiros de Évora e outros que ali estavam deslocados por questões laborais.
 

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3) 36 anos depois, em Novembro 2012, surge o "Boletim Acção Directa", editado pelo Colectivo Libertário de Évora que se publica até junho do ano seguinte. 

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4) No entanto, nos primórdios da imprensa anarquista em Évora está o jornal "Avante!", que surge  em fevereiro de 1909, orgão e propriedade da Biblioteca do Grupo de Propaganda Livre. Jornal Anarquista. Com duas séries, num total de 8 números, que se publica até depois da implantação da Republica, em 1911. O Grupo de Propaganda Livre, de que fazia parte Elias Matias, teve uma grande relevância aquando da grande greve dos rurais alentejanos, em 1911-1912.
O Avante!, orgão e propriedade da Biblioteca do Grupo de Propaganda Livre. Jornal assumidamente anarquista. Série I e II, 8 números. 1909-1911. O primeiro número foi publicado em Fevereiro de1909, tendo como administrador Sertório Augusto Fragoso e Redactor Francisco Direitinho. A Redacção e Administração situavam-se na Rua de Santa Clara, 11, Évora. Era composto e impresso na Minerva Comercial, Rua do Paço, 73 Évora. 
O Grupo de “Propaganda Livre”, iniciou-se  em Évora em 1908 e ainda existia em 1912, pelo menos, tendo aderido em 1911 à Federação Anarquista da Região Sul. Dedica-se à propaganda, à edição do jornal “Avante”, à organização da biblioteca e de conferências.  Teve uma grande influência nas greves dos rurais alentejanos de 1911/1912 . Pertenceram a este Grupo os seguintes militantes: Elias Matias, Sertório Fragoso, Francisco Direitinho, Possidóno Mesquita, Manuel Pratas, Celestino Vale, Jerónimo Santos, António Nicolau, J. Marques Leitão. Alguns autores defendem que José Sebastião Cebola, que se destacou na organização dos trabalhadores rurais e na propaganda anarquista na região de Évora também pertencia a este grupo.

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5) O  Trabalhador Rural, órgão da Federação Nacional dos Trabalhadores Rurais, que tinha sede em Évora. O primeiro número saiu a  8 de dezembro de 1912, tendo sido publicados 16 números entre 1912 e 1914. O Director era Diogo Bernardes. Editor: José António Aragão. Administrador:  António  Marcelino. Publicação mensal. Redacção e Administração: Rua da Freiria de Cima, 21- Évora. Composto e Impresso na Tipografia Eborense, Rua Miguel Bombarda, 1 a 5. Deste jornal saiu ainda um número único a 2 de Junho de 1918.  A Federação Nacional dos Trabalhadores Rurais (vulgo Federação Rural) foi criada em 1912 e extinta em 1933, apesar de  a partir de 1927 ter funcionado numa situação de semi-clandestinidade, utilizando a designação de “Comissão Nacional de Estudos e Defesa Rural” de 1929 em diante. Na actividade organizativa dos trabalhadores rurais alentejanos destacaram-se os seguintes anarco-sindicalistas  José Joaquim Candieira, Vital José, José Cebola e Quirino José (todos chegaram a desempenhar as funções de Secretário-Geral da Federação). Sindicalistas revolucionários: Diogo Bernardes, Joaquim Fornalha, José António Aragão e Jesuíno Madeira. 
 

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6) Mais tarde, em 1921, surge em Évora um novo jornal , também com o nome de "Avante!...", "percursor da sociedade egualitária", propriedade do Grupo Editor “Avante!…”. Iniciou e terminou  a sua publicação em 1921, tendo sido publicados três números.  Tinha como editor Armando Pratas, administrador Joaquim Nogueira, redactor principal Manuel Ramos e secretário de redacção Fernando Silva Junior. Era impresso na Minerva Comercial, na Rua da República, 75, em Évora. A redacção e administração eram na Praça Joaquim António d’Aguiar, 14 (sede da União de Sindicatos Operários de Évora). Era um jornal assumidamente anarquista, embora se notem já os ecos da revolução russa, defendida inicialmente por muitos anarquistas que consideravam que o ideal dos bolcheviques era semelhante ao seu e que os sovietes eram a base de organização da nova sociedade, sem Estado nem um partido político dirigente. A pouco e pouco esta adesão aos ideais da revolução russa vai-se desvanecendo e a maior parte dos libertários adopta uma posição crítica acerca da forma como o poder do partido comunista russo se exerce sobre a sociedade e de que é exemplo o Avante nº 2, de Agosto de 1921, em que é publicado um manifesto dos anarquistas russos intitulado: “ Pela Liberdade contra a Ditadura: um apelo dos anarquistas russos ao proletariado de todos os países”.
 

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Avante 1 (Évora, 1 Agosto 1921)

Avante 2 (Évora, 14 de Agosto 1921)

Avante 3 (Évora, 28 de Agosto 1921)

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Segundo o historiador Vitor Sá, que se baseia em informações, por exemplo, de Edgar Rodrigues e Carlos da Fonseca, desde 1865 terão existido em Évora os seguintes jornais de cariz operário e mutualista: “O Clamor dos Artistas, 1865; A Ideia, 1877; O Correio Eléctrico, 1883; O Operário, 1889; A Aurora Farmacêutica, 1896; Mérito, 1900 (número único dos tipógrafos); A Alvorada, 1903; Avante!, 1909; A Voz do Caixeiro, 1909; O Trabalhador Rural, 1912; O Primeiro de Maio, 1914 (número único); Aurora Social, 1919; O Despertar, 1921”.

Ver também: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2014/11/22/memoria-libertaria-imprensa-anarquista-e-anarcosindicalista-de-evora-19091921/