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Memória Libertária

Documentos e Memórias da História do Movimento Libertário, Anarquista e Anarcosindicalista em Portugal

Documentos e Memórias da História do Movimento Libertário, Anarquista e Anarcosindicalista em Portugal

Memória Libertária

25
Fev22

A Internacional Anarquista e a Guerra


 

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Apesar das divergências no seio do movimento anarquista (um grupo de 16 anarquistas, entre eles Kropotkine e Jean Grave, tomou posição pública a 14 de março de 1916, durante a 1ª guerra mundial, apoiando os Aliados contra o Império Alemão), um ano antes, a 12 de fevereiro de 1915, é divulgado em três línguas (inglês, francês e alemão), em Londres, o manifesto anti-belicista intitulado “A Internacional Anarquista e a Guerra”, que será publicado no número de março da revista anarquista Freedom.
O manifesto foi assinado por 36 companheiros e companheiras, entre os quais Alexander Berkman, Emma Goldman, E. Malatesta, , e A. Schapiro
Este grupo de libertários manteve-se fiel ao ideal antimilitarista declarando que: “Não há distinção possível entre guerras ofensivas e guerras defensivas [... ] O papel dos anarquistas, onde quer que, ou em que situação, se encontrem, na tragédia atual, é continuar a proclamar que há apenas uma guerra de libertação: aquela que, em todos os países, é travada pelos oprimidos contra os opressores, pelos explorados contra os exploradores. O nosso papel é chamar os escravos às revolta contra os seus senhores. A propaganda e a ação anarquistas devem ser usadas com perseverança para enfraquecer e desmantelar os vários Estados, cultivar o espírito de revolta e criar descontentamento nos povos e nos exércitos."
”.

*

"Manifesto dos 35"

A Europa em chamas, dez milhões de homens a combaterem na carnificina mais terrível já registada na história, milhões de mulheres e crianças em lágrimas, a vida económica, intelectual e moral de sete grandes povos brutalmente suspensa, a ameaça cada vez mais séria de novas operações militares , - tal é, desde há sete meses, o espetáculo doloroso, angustiante e odioso que o mundo civilizado nos oferece.

Mas um espetáculo esperado, pelo menos pelos anarquistas.

Porque para eles nunca houve e não há qualquer dúvida - os terríveis acontecimentos de hoje reforçam essa certeza - que a guerra está em permanente gestação no atual organismo social e que o conflito armado, restrito ou generalizado, colonial ou europeu, é a consequência e o culminar necessário e inevitável de um regime que se baseia na desigualdade económica dos cidadãos, repousa sobre o antagonismo selvagem de interesses e coloca o mundo do trabalho sob a estreita e dolorosa dependência de uma minoria de parasitas, detentores de ambos os poderes político e económico. A guerra era inevitável: de onde quer que viesse, tinha que rebentar. Não é em vão que durante meio século se preparam febrilmente os armamentos mais formidáveis e que os orçamentos da morte aumentam a cada dia que passa. O material da guerra,  ao ser constantemente melhorado, ao pretender-se continuamente conduzir todas as pessoas e todas as vontades para uma melhor organização da máquina militar, não se trabalha para a paz.

É, portanto, ingénuo e pueril, depois de se terem multiplicado as causas e as ocasiões dos conflitos, tentar estabelecer as responsabilidades relativamente a tal ou tal governo. Não há distinção possível entre guerras ofensivas e guerras defensivas. No conflito atual, os governos de Berlim e Viena justificaram-se com documentos não menos autênticos que os governos de Paris, Londres e Petrogrado. E qualquer destes ou daqueles produzirá os documentos mais indiscutíveis e decisivos para firmar a sua boa-fé e apresentar-se como o defensor imaculado do direito e da liberdade, o campeão da civilização.

A civilização? Quem a representa neste momento? É o estado alemão com o seu formidável militarismo e tão poderoso que sufocou qualquer indício de revolta? É o Estado russo em que o knout (chicote russo), a forca e a Sibéria são os únicos meios de persuasão? É o Estado francês, com Biribi (calão militar: as companhias disciplinares instaladas no norte de África), as conquistas sangrentas de Tonkin (Vietname), de Madagascar, de Marrocos, com o recrutamento forçado de tropas negras; a França que mantém nas prisões. durante anos, camaradas acusados apenas por terem escrito e se manifestado contra a guerra? É a Inglaterra que explora, divide, espalha a fome e oprime as populações do seu imenso império colonial?

Não. Nenhum dos beligerantes tem o direito de se reivindicar da civilização, assim como nenhum tem o direito de se declarar na posição de legítima defesa.

A verdade é que a causa das guerras, daquela que hoje enche de sangue as planícies da Europa, como de todas as que a precederam, reside unicamente na existência do Estado, que é a forma política do privilégio.

O Estado nasceu da força militar; desenvolveu-se servindo-se da força militar; e é, ainda , na força militar que ele deve logicamente confiar para manter sua força toda poderosa. Seja qual for a forma que assuma, o Estado nada mais é mais do que a opressão organizada para benefício de uma minoria privilegiada. O conflito atual ilustra isso de maneira impressionante: todas as formas de Estado estão envolvidas na guerra atual: o absolutismo através da Rússia, o absolutismo mitigado do parlamentarismo através da Alemanha, o Estado reinando sobre povos de países muito diferentes através da Áustria, o regime de democracia constitucional através da Inglaterra e o regime democrático republicano através da França.

O mal dos povos, que no entanto estavam todos profundamente interessados na paz, foi terem confiado no Estado com os seus diplomatas ardilosos, na democracia e nos partidos políticos (mesmo da oposição como o socialismo parlamentar), para evitar a guerra. Esta confiança foi propositadamente frustrada e continua a sê-lo quando os governantes, com a ajuda de toda a sua imprensa, querem persuadir os seus respetivos povos de que esta guerra é uma guerra de libertação.

Nós somos claramente contra qualquer guerra entre os povos e, nos países neutrais, como a Itália, onde os governantes pretendem lançar novos povos na fornalha da guerra, os nossos camaradas opuseram-se, opõem-se e sempre se oporão à guerra com toda a energia.

O papel dos anarquistas, onde quer que, ou em que situação, se encontrem, na tragédia atual, é continuar a proclamar que há apenas uma guerra de libertação: aquela que, em todos os países, é travada pelos oprimidos contra os opressores, pelos explorados contra os exploradores. O nosso papel é chamar os escravos às revolta contra os seus senhores.

A propaganda e a ação anarquistas devem ser usadas com perseverança para enfraquecer e desmantelar os vários Estados, cultivar o espírito de revolta e criar descontentamento nos povos e nos exércitos.

A todos os soldados de todos os países, que têm a convicção de que estão a lutar pela justiça e pela liberdade, devemos explicar que o seu heroísmo e a sua valentia servirão apenas para perpetuar o ódio, a tirania e a miséria.

Aos operários devemos lembrar  que as armas que agora têm nas mãos foram usadas contra eles nos dias de greves e de justificadas revoltas, e que serão usadas novamente contra eles para forçá-los a sofrer a exploração patronal.

Aos camponeses, para lhes mostrar que depois da guerra será necessário mais uma vez  curvarem-se ao jugo, e continuarem a cultivar a terra dos seus senhores e a alimentarem os ricos.

A todos os párias, para que não devem largar as suas armas até que tenham acertado contas com os seus opressores, antes de tomarem para si as terras e a fábricas.

Às mães, companheiras e filhas, vítimas do aumento da miséria e da privação, mostremos quem é realmente o responsável pela sua dor e pelo massacre dos seus pais, filhos e maridos.

Devemos aproveitar todos os movimentos de revolta, todos os descontentamentos, para fomentar a insurreição, para organizar a Revolução da qual esperamos o fim de todas as iniquidades sociais. Sem desânimo - mesmo diante de uma calamidade como a guerra actual !

É em tempos tão conturbados, quando milhares de homens dão as suas vidas heroicamente por uma ideia, que devemos mostrar a esses homens a generosidade, a grandeza e a beleza do ideal anarquista; justiça social alcançada através da livre organização dos produtores; a guerra e o militarismo suprimidos para sempre, a liberdade conquistada pela destruição total do Estado e dos seus órgãos de coerção.

Viva a Anarquia!

Leonard D. Abbott, Alexander Berkman, L. Bertoni, L. Bersani, G. Bernard, A. Bernardo, G. Barret, E. Boudot, A. Calzitta, Joseph J. Cohen, Henry Combes, Nestor Ciele van Diepen, FW Dunn, Ch. Frigerio, Emma Goldman, V. Garcia, Hippolyte Havel, TH Keell, Harry Kelly. J. Lemaire, E. Malatesta, A. Marquez, F. Domela Nieuwenhuis, Noel Paravich, E. Recchioni, G. Rijnders, I. Rochtchine, A. Savioli, A. Schapiro, William Shatoff, VJC Schermerhorn, C. Trombetti, P. Vallina, G. Vignati, LG Woolf, S. Yanovsky.

Londres, fevereiro de 1915.

Pedimos à imprensa anarquista de todo o país que amavelmente reproduza ou traduza este manifesto que é publicado apenas em alemão, inglês e francês.

(tradução Portal Anarquista)

18
Fev22

(Polémica) Trasladação dos mortos no Tarrafal: os velhos anarquistas consideraram que “se cumpriu o prometido aos companheiros que morreram” apesar das críticas ao aproveitamento comunista e ao frentismo anti-fascista


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A 18 de Fevereiro de 1978, quase quatro anos depois do 25 de Abril de 1974, foram trasladados para Portugal os corpos dos 32 portugueses mortos no Campo de Concentração do Tarrafal. Um grupo de anarquistas sobreviventes do Tarrafal, com destaque para Acácio Tomás Aquino, estiveram no centro desta homenagem aos antigos combatentes antifascistas, que mobilizou milhares de portugueses que acompanharam as urnas desde a Sociedade de Belas Artes, onde estiveram em câmara ardente, até ao cemitério do Alto de São João, em Lisboa. No entanto, a forma como a trasladação foi conduzida, o aproveitamento feito pelo PCP e a subalternização dos anarquistas mortos no Tarrafal, "recuperados" como instrumentos e símbolos da democracia foram criticados por outros sectores libertários, nomeadamente por elementos das gerações mais novas, que não tinham sentido na carne a violência de prisões como o Tarrafal.

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O relato desse dia e da emoção sentida pelos velhos militantes está bem patente no artigo publicado na edição de Março do jornal “Voz Anarquista” e assinado por José Francisco, um dos militantes anarquistas, dirigente da CGT,  ligados à preparação do 18 de janeiro de 1934. O longo título do artigo, de primeira página, não podia ser mais eloquente: “A homenagem prestada aos caídos no Campo de Concentração e Morte Lenta do Tarrafal não foi uma manifestação formalista – a sinceridade foi visível em todos os aspectos, naquele povo que acompanhava as urnas, emocionado e palpitando em uníssono na condenação de um passado maldito”.

Escreve depois José Francisco:

“Dando cumprimento ao voto da Organização Libertária Prisional, feito no Tarrafal, conforme “A Batalha” noticiou pelo Acácio Tomás de Aquino, voto feito em 1945, os restos mortais dos 32 revolucionários anti-fascistas, caídos e enterrados no Campo da Morte Lenta, vieram para Lisboa com honras nacionais prestadas pelo Governo de Cabo Verde. Desembarcados no aeroporto, ali ficaram para depois serem colocados em Câmara Ardente, na Sociedade Nacional de Belas Artes, onde deram entrada no passado dia 17 de Fevereiro. Foi comovente a saída das urnas da carreta funerária para a sala em que ficaram em velada até ao dia seguinte.

Companheiros que conseguiram vencer todas as violências físicas e morais, e regressar vivos do Tarrafal, aguentando até este grande dia, transportavam ao colo as pequenas urnas.

Mulheres e homens de todas as idades, que ladeavam a porta de entrada, choravam, não resistindo à comoção daquele acto.

Depositadas na sala, foi cada uma das urnas coberta com uma bandeira nacional. Coroas de flores já ali se encontravam, a marcar a homenagem de muitos que não puderam comparecer. Toda a noite se revezaram  os turnos de velada, não só dos tarrafalenses mas também de familiares e amigos, muitos amigos, velhos companheiros de luta dos 32 mortos do Tarrafal.

No dia 18, logo ao romper da manhã, começaram a afluir pessoas. Flores e mais flores. Cravos vermelhos, como o sangue derramado na luta anti-fascista. Verduras assinalando a esperança num Mundo melhor, pelo qual morreram tantos antifascistas não só no Tarrafal mas em outros pontos da África negra, principalmente em Angola e Timor, região esta onde se encontravam já deportados, muito antes do 28 de Maio de 1926. E não só esses, mas também os que morreram em Lisboa, e um pouco por todo o país, de norte a sul.

Eram 14 horas quando começaram os preparativos para a saída das urnas.

Frente à Sociedade Nacional de Belas Artes via-se já um mar de gente que a cada momento aumentava. Pedidos para deixarem livre a rua, a fim de facilitar a movimentação das carretas e dos carros de Bombeiros, eram atendidos com dificuldade.

Começam a sair as coroas de flores, em dois carros de bombeiros e um atrelado. As carretas funerárias transportavam flores em todos os sítios possíveis. Atrás do grandioso cortejo, mulheres e homens levavam mais coroas e palmas de flores, alguns com as coroas ao pescoço; cravos vermelhos eram aos milhares.

Às 15 h. o desfile inicia-se com aquela mole de gente que nem a chuva impediu que a Homenagem Nacional aos Mortos no Tarrafal atingisse o que nunca fora visto em Lisboa. Dizia uma mulher que nem o funeral do D. Carlos, nem no enterro do Presidente Sidónio Pais, vita tanta gente e tantas flores oferecidas pelo Povo de Portugal.

À medida que o cortejo passava, mais gente se incorporava nele. A chuva continuava e continuou sempre. Os que seguiam na rectaguarda tinham de marcar passo, para dar lugar aos que ladeavam ruas e avenidas.

A chegada ao cemitério do Alto de S. João, foi pelas 17,30 e já noite, ainda continuavam pessoas a chegar, sem poderem entrar no recinto. E lá ficaram os 32 anti-fascistas, mortos do Tarrafal, num Mausoléu, construído por subscrição pública, mausoléu coberto de flores em quantidade nunca vista em Lisboa (…)”

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Posições discordantes: Júlio Figueiras

No entanto, a forma como esta homenagem decorreu motivou protestos públicos de alguns sectores anarquistas, nomeadamente de Júlio Figueiras (pseudónimo de João Freire, de “A Ideia”) e do grupo “Acção Directa”.

Na mesma edição da “Voz Anarquista” (nº 29) em que José Francisco escreve o texto atrás citado, e na mesma 1ª página, o jornal publica, a menos de meia coluna, um pequeno texto de Júlio Figueiras intitulado: “Que desgosto!!!”

“Que os companheiros sobreviventes do Tarrafal, me perdõem, se não puderem compreender-me.

Foi com desgosto que segui a operação do partido comunista português que recuperou e capitalizou inteiramente em seu favor o sacrifício daqueles que sofreram e morreram no Campo do Tarrafal.

Foi com desgosto que vi tratados de «democratas» militantes operários que tão perseguidos haviam sido pela Democracia.

Foi com desgosto que vi cobertas com a bandeira do Estado Português as urnas de anarquistas que justamente pretenderam lutar contra esse mesmo Estado e implantar uma FRATERNIDADE UNIVERSAL.

Foi com desgosto que vos vi a vós no meio de tais companhias: ministros, militares, chefes de partidos.

Foi com desgosto que vi insensíveis e indiferentes a tudo isto, não poucos dos libertários que conheço.

Foi, enfim, com desgosto que me senti impotente para lançar o grito desmistificador, de dor ou de revolta.” – escreve Júlio Figueiras

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Posições discordantes: Acção Directa

Também a revista “Acção Directa” volta a este tema na sua edição nº 11, de Abril/Maio, com um desenho, na primeira página, de um esqueleto  a ser transportado por uma carreta e com a legenda: “Morto do Tarrafal de regresso à Pátria-Mãe” e, na última página, com um artigo, não assinado, intitulado: “O Tarrafal e o culto dos mortos”, em que se pode ler:

“Concluíram-se há bem pouco tempo as celebrações organizadas à volta da trasladação dos mortos do Tarrafal para o cemitério do Alto de S. João, em Lisboa. Vem, pois, muito a propósito a publicação duma recolha de textos de Albert Libertad (publicados na mesma edição da revista, nota A.) sobre o culto dos mortos, na qual é salientada a importância deste culto na manutenção da ordem social. Porém, além dessa questão de fundo, este caso dos mortos do Tarrafal tem outras implicações devido à manobra de carácter  político que desde o início presidiu à dita trasladação. Com efeito, o objectivo desta era claro: arrastar os vivos para a luta política anti-fascista através da utilização de algumas dezenas de cadáveres de indivíduos que lutaram, foram perseguidos, torturados, deportados e finalmente liquidados pela Sociedade. Também é fácil perceber que quem terá lucrado mais com esta operação foram as várias organizações políticas situadas na chamada esquerda, sobretudo o Partido Comunista Português.

Não nos admira absolutamente nada que tais organizações, sendo de carácter religioso no sentido lato (sobretudo as de ideologia marxista), com os seus mártires, os seus guias, as suas bíblias, os seus líderes (vivos), os seus homens exemplares (mortos), se empenhem constantemente em criar nos seus adeptos e nas pessoas em geral uma mentalidade de tipo religioso, um respeito devoto pela autoridade dos seus chefes, uma crença absoluta na infalibilidade das suas previsões, na inexorabilidade da realização dos seus programas; que tendo como objectivo a conquista do poder, utilizem a carne morta como mais um meio de propaganda política.

O que já nos poderia espantar é que alguns indivíduos, anarquistas ou anarco-sindicalistas, que deveriam ser por temperamento e convicção, avessos a tais manobras, tenham alinhado com essas comemorações. Na nossa opinião, a única explicação desta atitude é alguns anarquistas acharem útil a participação no movimento anti-fascista, cujo objectivo é defender a democracia e as «liberdades constitucionais», isto é, manter a actual sociedade de exploração.

Ora, para nós a democracia não é essencialmente diferente do fascismo, dado que é apenas uma outra maneira, normalmente mais eficaz, de manter a opressão e o privilégio sociais.  A democracia, ao substituir o fascismo, tem, ao fim e ao cabo, assegurado que a pirâmide social, com a sal hierarquia do topo até à base, se mantenha no essencial, para além de uma ou outra convulsão mais profunda não prevista pelos democratas. Outra coisa não tem vindo a significar a institucionalização da democracia, a legislação das liberdades, a politização (partidarização) das mentalidades desde o 25 de Abril. Que resta do entusiasmo inicial, das liberdades reais adquiridas nos meses seguintes ao 25 de Abril, da apropriação bem real que nessa altura fizeram muitas pessoas dos meios que lhes faltavam para a realização dos seus desejos, para a satisfação das suas necessidades? Nada, a não ser apertar cada vez mais o cinto e defender a Constituição e as «liberdades» democráticas.

Se queremos de facto ser livres não podemos cair no engodo de defender a democracia, apresente-se ela com os rótulos que quiser: representativa, popular ou qualquer outro. A liberdade é incompatível com qualquer forma de organização hierárquica dos indivíduos, portanto incompatível com a democracia”.

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Presos anarquistas no Tarrafal. Da esquerda para a direita na 1ª fila sentados: José Ramos, Bernardo Casaleiro Pratas; Joaquim Duarte Ferreira e Américo Fernandes. Na 2ª fila em pé: Joaquim Pedro; Custódio Costa; José Ventura Paixão: José Ricardo do Vale; António Gato Pinto e Acácio Tomás de Aquino.

*

Às vítimas do Tarrafal, por Acácio Tomás de Aquino

 

Oh excelsa poesia, chama imortal

Que de heróicos prodígios tu tens feito,

Poetisa a dor que sinto no meu peito

Que te darei um poema sem rival!

 

Dá-me de Camões, poeta genial,

A sua vocação, seu alto jeito,

P´ra escrever em verso bem perfeito,

Tudo o que se sofreu no Tarrafal!

 

Desde o baixo e vil roubo à agressão,

Do ódio figadal à vilania,

Do trabalho forçado à castração.

 

Da elevada firmeza à rebeldia

Tudo isso focaria, sem omissão,

Das mais intensas dores, à agonia.

 

Tarrafal, 9 de Setembro de 1943

(in O Segredo das Prisões Atlânticas, Regra do Jogo, 1978)

04
Fev22

A Confederação Geral do Trabalho (1919-1927)


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Título: A Confederação Geral do Trabalho (1919-1927)
Autor: Teodoro, José Miguel
Orientador: Ventura, António, 1953-
Palavras-chave: Confederação Geral do Trabalho - História
Sindicalismo - Portugal - 1919-1927
Sindicalismo revolucionário - Portugal - 1919-1927
Sindicatos - Portugal - séc.20
Teses de doutoramento - 2014
Data de Defesa: 2014

 

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vol_2.pdf

Este documento dá conta dos resultados do trabalho de investigação sobre a Confederação Geral do Trabalho (CGT), o organismo de cúpula do sindicalismo português, nos anos de 1919 a 1927. Formada em 1919, no II Congresso Operário Nacional de Coimbra, foi determinada a sua dissolução pelas autoridades após a tentativa de golpe de estado de Fevereiro de 1927. Apresentam-se os antecedentes imediatos da organização, o modelo organizativo que adoptou, o funcionamento dos principais órgãos confederais e a relação com os organismos confederados, o essencial da vida interna destes e a sua participação na actividade confederal; identificam-se organismos, militantes e activistas de referência, a geografia do sindicalismo português, o papel determinante do jornal A Batalha, e os principais eventos, como os três congressos nacionais de sindicatos. Surpreende-se o ambiente social e laboral no país, as principais determinantes da acção sindical e confederal, a militância e a participação; mas também as insuficiências e dificuldades, a repressão e os seus efeitos, os grandes temas fracturantes – as Internacionais sindicalistas, a orientação do sindicalismo (libertário, à margem dos partidos políticos ou irmanado com o Partido Comunista), a táctica sindical e a capacidade e autosuficiência do sindicalismo, ou a participação da CGT em acções e estruturas frentistas unitárias defendidas pelos sindicalistas comunistas. Analisam-se pontos críticos da organização, como a escassez de recursos humanos e financeiros, a redução do efectivo sindicalizado, e apresentam-se momentos graves da organização – a atitude face ao “18 de Abril” e ao “28 de Maio”, o confronto interno entre militantes/activistas sindicais das sensibilidades anarquista e comunista, a expulsão de dirigentes sindicalistas comunistas da CGT em 1921, a saída de sindicatos importantes em 1925, a crise protagonizada por Santos Arranha e Manuel Joaquim de Sousa em 1926, que levou várias Federações a abandonar a organização, o “3-7 de Fevereiro de 1927”.

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04
Fev22

A Batalha e o Suplemento Literário e Ilustrado (1923 - 1927)


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António Baião

Quando surgiram as primeiras notícias sobre a intenção da Comissão Administrativa de A Batalha criar um novo órgão de exposição doutrinária, em Novembro de 1923, a organização anarco-sindicalista encontrava-se diluída numa série de dilemas e contrariedades que enfraqueciam a posição dominante de que gozava no seio do movimento operário, desde a sua fundação em finais de 1919.

O contexto político, não lhe sendo naturalmente favorável, contribuiu para dificultar a acção da Confederação Geral do Trabalho (CGT) e do seu jornal diário. Entre a repressão aos comícios contra a ocupação do Ruhr e as greves em resposta ao encarecimento do pão, ou as perseguições e prisões arbitrárias de camponeses e operários (só o secretário-geral da CGT, José da Silva Santos Arranha, foi encarcerado três vezes), o ano de 1923 não foi propício ao sucesso da actividade propagandística da confederação. Também a sua vida interna agravou esta circunstância. Entre 1921 e o III Congresso Operário Nacional, em Outubro de 1922, a CGT confrontou-se com o abandono de inúmeros militantes e dirigentes que se aproximaram do comunismo, além de ter fomentado e participado activamente na discussão em torno da sua adesão à Associação Internacional dos Trabalhadores de Berlim ou à Internacional Sindical Vermelha (ISV), que contribuiu para a cisão do sindicalismo português e debilitação da sua base hegemónica. Como consequência da posição tomada pelo Conselho Confederal nesta questão, ao favorecer a entrada dos confederados na Internacional de Berlim e alegadamente obstruir o contraditório, que se iria reflectir no Manifesto dos 21, Arranha demitir-se-ia em Novembro de 1923 e, no mesmo mês, o Comité Confederal iria sofrer uma recomposição.

À expansão do primeiro triénio de vida da CGT, sucedia-se um período de menor vigor, com perda de números nas suas fileiras e que se reproduziu também no seu principal órgão na imprensa diária: a partir de 1923, eram cada vez mais as dificuldades em suportar a alegada tiragem diária de 18000 exemplares de A Batalha, o que levou a Comissão Administrativa do jornal a duplicar o preço de 10 para 20 centavos. O valor do jornal não era, porém, o único problema. A própria direcção ideológica não era suficientemente clara e o trabalho propagandístico era considerado defeituoso, pelo que o Conselho Confederal exigiu, em Novembro, que A Batalha assumisse uma orientação sindicalista revolucionária, de acordo com as deliberações do congresso operário do ano anterior, na Covilhã.

Foi neste contexto que nasceu o Suplemento literário e ilustrado de A Batalha, a 3 de Dezembro de 1923, publicado à segunda-feira para garantir a pausa dominical dos tipógrafos e redactores de A Batalha, e que propunha ser o "companheiro intelectual do operário" e levantar a propaganda da Ideia. A impressão era feita numa oficina gráfica na Rua da Atalaia e o preço de venda ao público era de 50 centavos, havendo uma modalidade de assinatura independente da do jornal diário. A segunda-feira era também passada a preparar a expedição postal para os assinantes, incluindo escolas, sindicatos e associações culturais ou recreativas. As suas oito páginas eram destinadas a reflexões teóricas em torno do anarquismo e a artigos de divulgação de cultura libertária. Dedicava, ainda, duas páginas às secções permanentes "O que todos devem saber", com diversas informações para a classe trabalhadora, e "Chico, Zeca & C.ª", destinado aos filhos dos operários. Se o diário A Batalha continuava a ser o espaço reservado ao combate dos trabalhadores e ao noticiário geral, o Suplemento completava a obra do jornal, através da elevação "intelectual, moral e artística" de todos os seus leitores. Gozava, contudo, de relativa autonomia em relação ao jornal, através de financiamento e orçamentação própria, apesar de ser formalmente dirigido pelo redactor principal de A Batalha, que acumulava a direcção do diário com a da nova revista.

À data da edição do primeiro número do Suplemento, foi o compositor tipográfico Carlos José de Sousa que desempenhou essas funções, depois de resistir à crise do mês anterior e após lhe ter sido negado o pedido de demissão pelo Conselho Confederal. Mas apesar da experiência acumulada na direcção de dois jornais de combate laboral (antes de A Batalha tinha exercido cargo semelhante no Avante), Sousa estava fragilizado por ter participado activamente em reuniões "extra-oficiais" com militantes do Partido Comunista Português (PCP), que tinham sido denunciadas pelo próprio Comité Confederal. A inquietação na cúpula da CGT e a sua reorganização interna levam a crer que seria a redacção de A Batalha quem dirigia realmente a nova publicação periódica, até porque tinha partido dela a vontade de iniciar uma revista cultural que colmatasse as lacunas do diário. Por esta razão, o Suplemento foi dirigido, ao que tudo indica, pelo chefe de redacção António Pinto Quartim, o jornalista mais experiente do colectivo responsável pela feitura do periódico.

O semanário alterou a sua designação logo no n.º 14, de 3 de Março de 1924, para Suplemento Semanal Ilustrado de A Batalha. As mudanças na composição editorial da revista não terminariam por aí, pois Carlos José de Sousa demitir-se-ia finalmente em Julho, debilitado pela quebra de confiança da cúpula da CGT e devido à incapacidade demonstrada em responder à instauração de regime censório e apreensões constantes de A Batalha, a partir de Maio, precisamente o mesmo mês em que os seus tipógrafos entraram em greve, reivindicando o pagamento de salários atrasados e incompletos. A alteração só se tornou efectiva em Outubro, quando o Conselho Confederal decidiu seguir a recomendação de Sousa e indicar o secretário-geral da CGT para as funções de direcção dos seus diversos órgãos de imprensa. Assim, o sapateiro Manuel da Silva Campos passou a dirigir o Suplemento a partir do n.º 46, de 13 de Outubro. Caiu a denominação de redactor principal, que é substituída pela figura do director, o que é menos uma formalidade do que se poderia pensar: como Campos admitiu em editorial do diário, a 7 de Outubro, seria menos activo nos trabalhos redactoriais que o seu antecessor, devido aos seus encargos no organismo confederal, pelo que garantiria uma maior independência à equipa de Quartim. Como consequência, o distanciamento de posições entre a Confederação Geral do Trabalho e A Batalha e o Suplemento tornar-se-iam mais evidentes nos meses que se seguiram.

As convulsões internas no país permitiram identificar o posicionamento ideológico do Suplemento: ao mesmo tempo que se opunha à instauração de uma ditadura militar em Portugal, apoiando a organização de diversos comícios, e repudiava os assassinatos de filhos de corticeiros grevistas em Silves, iniciava uma campanha contra os atentados bombistas que assolaram Lisboa entre Julho e Outubro. Para o Conselho Confederal, porém, a propaganda continuava a ser incipiente e o trabalho da redacção de A Batalha foi censurado, principalmente pelo espaço noticioso que era atribuído à União dos Interesses Sociais, à qual a CGT decidiu não dar o seu apoio formal, e ao assumir uma "atenciosa expectativa" em relação ao governo da esquerda democrática, de José Domingues dos Santos. A clivagem entre A Batalha e o Comité Confederal, por um lado, e o Conselho Confederal, por outro, agravar-se-ia após o 18 de Abril, quando o Conselho repudiou a posição de Silva Campos, ao empurrar a CGT para uma frente unida das esquerdas contra os golpistas. Em Julho, demitiu-se das suas funções de director de A Batalha, depois do seu administrador, Artur Aleixo de Oliveira, referir que o Suplemento não tinha correspondido às necessidades de propaganda para as quais tinha sido criado. Foi substituído no mesmo mês pelo ex-secretário-geral Santos Arranha, que passava a coordenar toda a imprensa da CGT.

A partir do n.º 86, de 20 de Julho de 1925, era já o nome de Arranha que surgia no cabeçalho do Suplemento. O novo director exerceria as funções a tempo inteiro, pelas quais seria remunerado. A sua eleição teve o propósito de impor uma linha ideológica intransigente e de restringir a autonomia da redacção liderada por Quartim, eliminando os desvios que se tinham verificado nos dois anos anteriores, além de executar uma "acção defensiva, franca e aberta, contra as manobras divisionistas do proletariado" conduzidas pelo jornal A Internacional, órgão da esfera de influência da ISV e do PCP. O conflito interno na CGT entre a maioria anarquista e a minoria comunista, que em 1923 tinha sido alvo de intenso escrutínio, ter-se-ia agravado e Arranha foi o escolhido para resolver esta divergência na imprensa confederal.

Os meses seguintes foram ainda marcados por outras contrariedades que debilitaram a CGT, A Batalha, o Suplemento e a recém-criada Renovação. O IV Congresso Nacional Operário, em Setembro, marcou a saída definitiva da Federação Marítima da confederação, o que resultaria numa perda de militância significativa, que também foi o efeito provocado pela vaga de deportações e prisões arbitrárias de trabalhadores. A repressão aumentou e, logo em Outubro, as instalações no 2º andar do 38-A da Calçada do Combro foram assaltadas pelas forças policiais. Na sua imprensa, o perigo fascista e a ditadura das forças vivas eram analisados pelos seus articulistas, mas, a partir de Fevereiro de 1926, os destaques de primeira página destinaram-se a cobrir o escândalo financeiro do Banco Angola e Metrópole. Estas reportagens de Mário Domingues contribuíram para um provável aumento das vendas de A Batalha, sem contudo alcançar os 6000 exemplares de tiragem do ano anterior. Mas o favorecimento deste tipo de conteúdo noticioso desagradou ao Conselho Confederal, que pretendia que os órgãos da imprensa cegetista se focassem na propaganda activa da Ideia e da revolução proletária.

A orientação de A Batalha voltou a ser posta em causa pela cúpula da CGT, principalmente aquando da publicação de artigos intitulados "Problemas sindicais", em Maio de 1926, que foram considerados um meio para Arranha se intrometer nas questões de organização sindical, fora das suas competências enquanto director da imprensa. Em Agosto, o antigo director do diário Manuel Joaquim de Sousa deu uma entrevista ao Diário de Lisboa, referindo-se "às crescentes intrigas" que partiam da redacção e aos "deslizes crescentes de A Batalha", que só contribuíam para destabilizar a vida interna da organização confederal. Mas com o eclodir do 28 de Maio, as divergências entre Santos Arranha e Manuel Joaquim de Sousa tornaram-se mais evidentes e escalaram até a demissão do primeiro, depois de lhe ter sido atribuído a responsabilidade de definir a posição da CGT, perante o golpe militar, como expectante e neutral, quando o Comité Confederal tinha já dado indicações para que se proclamasse a greve geral revolucionária em A Batalha de dia 29.

Ao lado de Sousa encontravam-se a União Anarquista Portuguesa, as Juventudes Sindicalistas e o jornal O Anarquista, dirigido por Francisco Quintal e apoiado por alguns militantes que lhe eram próximos: Emídio Santana, Adriano Botelho e Germinal de Sousa, filho do ex-secretário-geral. Logo em Abril, o periódico lançou um ataque violento à orientação da imprensa cegetista, questionando se o Suplemento se tratava de um museu de variedades, no seguimento da publicação de um artigo de César Porto sobre a instrução soviética. Em Julho, as críticas estenderam-se à restante redacção, que apoiou Arranha no diferendo com a CGT. Em causa estavam os salários auferidos pelos "profissionais do jornalismo" de A Batalha e que a afastavam da sua direcção revolucionária. Dois dias depois, Ferreira de Castro, Jaime Brasil, Pinto Quartim e Eduardo Frias responderam a este "insulto soez", abandonando o Suplemento e restantes publicações periódicas. Só Castro regressaria, já em Setembro e sem Arranha na direcção. Foi substituído por Joaquim de Sousa a partir do n.º 144, aquele que seria o primeiro de dois directores interinos da revista.

Agosto terminou com a necessidade de composição de um novo Conselho Confederal que só tomou posse em Novembro. Até lá, A Batalha e a sua revista semanal foram geridas pela redacção neste período transitório, supondo-se que o director interino teria um papel de coordenação mais limitado. Ao contrário de Quartim, que ao que tudo indica não regressou aos escritórios na Calçada do Combro após a polémica em que se viu envolvido com O Anarquista, Mário Domingues, Alfredo Marques, Cristiano Lima e David de Carvalho mantiveram-se na redacção. Os "rapazes" tornaram-se os novos coordenadores do diário e do Suplemento. As primeiras alterações fizeram-se sentir logo no título do semanário, que do n.º 145 em diante, passou a designar-se Suplemento Literário Ilustrado de A Batalha.

Em plena ditadura militar, a CGT continuou focada na resolução do clima de crispação interna. A eleição do novo Conselho Confederal resultou no abandono das Federações do Livro e do Jornal, Metalúrgica, Mobiliária e Vinícola, conflito que nunca terá sido superado, mas apenas abafado pelo empreendimento reviralhista de Fevereiro de 1927. Para agravar a situação, o diário A Batalha passava por um grave crise financeira, apesar dos impressionantes 18000 escudos angariados em Novembro, após uma campanha de solidariedade. Apesar do diário apresentar contas deficitárias, a situação do Suplemento era bem diferente, apresentando um lucro de 6789$86 quando deixou de se editar.

Assim, o período de reformulação do Conselho Confederal e a reorientação da linha editorial de A Batalha tornaram a vida confederal insustentável. Os últimos meses de vida do diário e da revista revelavam isso mesmo: a direcção interina do jornal e do seu Suplemento voltou a mudar, quando Joaquim de Sousa foi substituído por Alberto Dias - à época secretário das Federações no novo Secretariado eleito - em Dezembro. Desempenhou essas funções durante a edição de apenas cinco números do Suplemento (n.ºs 159 a 163), quando deu o seu lugar ao ferroviário Mário Castelhano. Com a chegada do novo director, Carlos Maria Coelho abandonou o cargo de editor, depois de o ter exercido durante 163 números. Para acompanhar Castelhano nos derradeiros três números, foi nomeado Silvino Noronha. A nova equipa mandatada pela cúpula da CGT demorou-se pouco tempo no cargo, pois o Suplemento cessaria a publicação a partir do n.º 166, de 31 de Janeiro de 1927.

A repressão da revolta de Fevereiro de 1927 dirigiu as forças policiais para as instalações da CGT partilhadas com a redacção de A Batalha. Operários, tipógrafos e redactores foram encarcerados e o jornal foi proibido por decisão administrativa. O diário voltou a editar-se em Abril, mas o Suplemento tinha deixado de existir, apesar da vontade de Castelhano em retomar a sua publicação. A nova vida do jornal, porém, não seria longa e reduzida ficaria pelo assalto policial de 2 de Novembro ao palácio Marim-Olhão, que destruiu a tipografia, as instalações da Federação da Construção Civil e da secção editorial, apreendendo todo o acervo propagandístico e editorial da empresa. Nada mais restava à Batalha que sobreviver na clandestinidade, através do esforço e resiliência de militantes dedicados.

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04
Fev22

O centenário do jornal operário A Batalha [1919-2019]


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Sede do jornal A Batalha na Calçada do Combro, nº38 A

António Cândido Franco

No final da primeira Grande Guerra a comissão administrativa da União Operária Nacional (UON) – central sindical nascida no congresso de Tomar em 1914 e que, fruto das circunstâncias da guerra, do revês que foi a greve geral de Novembro de 1918 e do desencontro estratégico das suas duas grandes correntes internas, a socialista e a libertária, atravessava então um momento difícil – aceitou o projecto dum jornal diário, porta-voz da organização e dos seus interesses de classe. Para estudar o assunto e pôr de pé a ideia nomeou uma roda de sindicalistas ligados ao livro, às artes gráficas, ao jornalismo e ao comércio. Compunham-no Augusto Carlos Rodrigues, Carlos José de Sousa, Perfeito de Carvalho, Raul Neves Dias e António Pinto Quartim, a que se juntaram logo após Eduardo de Freitas, Hilário Marques, Francisco Cristo, Manuel Afonso, Gil Gonçalves, José António de Almeida, Sá Pereira, Joaquim Cardoso e Alexandre Vieira, este último um experiente tipógrafo e sindicalista que estivera ligado desde 1903 a quase todas as experiências de imprensa sindical em Portugal e fora já responsável de vários periódicos operários como A Greve (1908) e O Sindicalista (1911-1915). Foi este grupo que definiu as linhas orientadoras do jornal, estabeleceu o tipo de relação entre ele e a central sindical e angariou os meios necessários à sua edição, através duma subscrição pública de mil quotas de um escudo amortizáveis. Deste grupo saíram a redacção do novo periódico (Sá Pereira, Francisco Perfeito de Carvalho e Pinto Quartim), a administração (Hilário Marques, Eduardo de Freitas e Francisco Cristo), a equipa de publicitação e propaganda (Gil Gonçalves, Manuel Afonso, Quartim), o quadro tipográfico (coordenado por Carlos José de Sousa) e o responsável e primeiro director (Alexandre Vieira). O título, A Batalha, já com alguma tradição no meio sindical português – existira em 1913 um jornal chamado A Batalha sindicalista –, foi sugerido pelo tipógrafo e jornalista Perfeito de Carvalho, que também desenhou e compôs o característico cabeçalho.

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Suplemento ilustrado Abril 1925

Surgiu assim a 23 de Fevereiro de 1919 o primeiro número deste novo diário da manhã, “porta-voz da organização operária”. Em Setembro desse ano teve lugar em Coimbra o segundo Congresso Nacional Operário – o primeiro, em Tomar, fundara a UON – que marcou o decisivo ascendente da corrente libertária ou anarco-sindicalista sobre a socialista e que, com a presença de 119 sindicatos com cerca de 130 mil afiliados (informação de Edgar Rodrigues), fundou a Confederação Geral do Trabalho (CGT), de que A Batalha, diário da manhã, se tornou estatutariamente o órgão. Quer a CGT, quer a administração e a redacção do seu porta-voz ficaram instalados no antigo palácio dos condes de Castro Marim e Olhão, na Calçada do Combro, 38-A, onde aliás funcionara já a redacção do jornal no tempo da UON.

Durante mais de oito anos, até 26 de Maio de 1927 (n.º 2 556), o jornal publicou-se com pontualidade – não saía ao domingo para garantir o descanso semanal dos tipógrafos – e impôs-se como um prestigiado órgão de informação e de cultura, capaz de competir com a imprensa burguesa da época.

Tornou-se num diário de grande expansão e chegou a ser o segundo ou terceiro jornal mais lido, depois do Diário de Notícias e d’ O Século. No seu apogeu, em 1920 e 1921, o jornal tirava cerca de 25 mil cópias diárias (informação de Emídio Santana), embora em Fevereiro de 1919 tenha começado por uma tiragem muito mais modesta e cautelosa. Como quer que seja, já em Abril desse ano o jornal se intitulava “o terceiro jornal de maior venda em Lisboa”. A expansão e a consolidação do jornal deveram-se antes de mais à argúcia dos seus redactores principais, que nunca deixaram que o jornal se limitasse aos interesses das classes envolvidas, ou se fechasse nos seus aspectos doutrinários, preferindo um tipo de informação crítica atenta aos casos do presente e aos assuntos do dia. Isto levou a uma diversificação de publicações associadas ao jornal, como a edição dum Suplemento literário e ilustrado, que saía às segundas-feiras e se publicou de 1923 a 1927, e onde colaboraram grandes nomes da arte e da literatura de então e que nada tinham a ver com a CGT, como José Régio e Vitorino Nemésio, e a edição duma revista quinzenal, Renovação, que saiu em 1925 e 1926. A editorial do jornal publicou ainda um acervo importante de livros e de brochuras, onde se destaca a série Novela Vermelha, que arregimentou escritores e jornalistas empenhados no sindicalismo libertário (Campos Lima, Manuel Ribeiro, Mário Domingues, Ferreira de Castro).

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A Batalha, 1930

Nada disto impediu que o jornal não dedicasse o grosso da sua atenção ao problema do trabalho – que era a sua razão de ser e foi o crivo com que peneirou sempre os casos do dia na política e na sociedade – e não abrisse as suas páginas a polémicas fortemente doutrinárias que só ao movimento operário e às suas estratégias podiam interessar. Foi o caso da evolução da revolução russa de Outubro de 1917 que mereceu sempre ampla cobertura e debate no diário operário, de início com vasta, generosa e empenhada simpatia e depois com reservas críticas e progressivo desencanto. Como quer que seja, a informação prestada pelo órgão da CGT sobre este facto histórico serviu sempre de contrapeso à campanha de contra-informação activa que a restante imprensa dele fazia.

A revolução russa acabou por dar lugar a divergências no seio do anarco-sindicalismo e na própria CGT, com o surgimento duma corrente bolchevista, da qual saiu em 1919 a Federação Maximalista e dois anos depois o Partido Comunista Português (PCP), que advogava as estratégias da revolução russa.

O diferendo só foi sanado no terceiro Congresso Operário Nacional, que teve lugar na Covilhã, no início de Outubro de 1922, com a recusa da CGT em aderir à Internacional Sindical Vermelha (Moscovo), optando por votação maioritária por permanecer fiel à orientação libertária sindical da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), com sede em Berlim. Um referendo em 1924 ratificou por maioria ainda mais expressiva essa ligação internacional, delineada desde há muito por ideólogos operários tão preparados quanto Manuel Joaquim de Sousa, um operário do calçado que foi o redactor dos estatutos da CGT e seu primeiro secretário-geral, Hilário Marques, um arsenalista que foi o responsável por uma das editoras que mais se notabilizaram na propaganda operária desde o final da monarquia, A Sementeira, e Neno Vasco, um militante falecido em 1920, que pela intransigência da sua actuação moral e pelo alcance teórico das suas ideias concitou a admiração unânime das duas correntes operárias da época – a libertária e a maximalista.

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Tomaz de Aquino, Reis Sequeira e Emídio Santana – militantes da antiga CGT

A ditadura militar em 1926 criou novas dificuldades ao jornal, que nunca até aí tivera vida fácil. Entre 1919 e 1926 foi encerrado três vezes pela polícia e toda a sua redacção presa, foi submetido a censura prévia sete vezes, suspenso cinco, processado e levado a tribunal duas e condenado uma.

A situação piorou muito com a ditadura militar, que assaltou, destruiu e ocupou as instalações do jornal em 26 de Maio de 1927 em virtude da CGT ter secundado no Porto e em Lisboa o movimento de Fevereiro contra a ditadura.

São ilegalizadas de imediato as federações de indústrias, as uniões locais de sindicatos, o comité confederal da CGT e o seu porta-voz. Salvo uma breve fase em 1930, em que A Batalha reapareceu como hebdomadário legal, numa segunda série que fez 13 números, a história do jornal confunde-se depois disso com a clandestinidade, em que tirou três séries (1934; 1935-1937; 1947-1949), a primeira no quadro da greve geral do 18 de Janeiro de 1934 e a última no rescaldo da segunda Grande Guerra com 21 números. Dirigido por um antigo militante da CGT, Emídio Santana, que fora um dos protagonistas do atentado a Salazar em 1937, o jornal reapareceu logo depois da Revolução dos Cravos, dando início à sua sexta série, ainda hoje em curso de publicação e que comemorou, em Fevereiro de 2019, o seu centenário com um número especial.

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A Batalha, primeiro número da VI Série (Setembro, 1974)

Uma nota final para as relações entre A Batalha e a revista Seara Nova. António Sérgio foi o primeiro intelectual português que o jornal se preocupou em entrevistar, o que sucedeu no número de estreia, mostrando indisfarçável simpatia pelos propósitos sociais e pedagógicos do pensador. Fundada a Seara Nova em 1921 as relações entre as duas publicações logo se estabeleceram. Fez-se vulgar a ida de seareiros – um exemplo é Câmara Reys – à sede da CGT ou às uniões sindicais fazer palestras de interesse associativo, científico e cultural, o que não impediu as críticas da central operária sempre que os seareiros apareceram associados ao governo. Seja como for, a revista tomou inúmeras posições a favor do diário operário, quer nos momentos em que este sofreu os atropelos da polícia, dos tribunais e da censura, quer quando se viu descriminado ao não ser convidado para o Congresso da Imprensa Latina (v. Seara Nova, n.º 32, 1-3-1924).

Bibliografia

  • Baião, António, I cento anni di A Batalha, in Bolletino Archivo G. Pinelli, n.º 53, Milão, Centro Studi Libertari, 2019.
  • Baptista, Jacinto, Surgindo vem ao longe a nova aurora… Para a História do diário sindicalista A Batalha 1919-1927, Lisboa, Bertrand, 1978; 2.ª ed., pref. António Ventura, Lisboa, Livraria Letra Livre/ A Batalha, 2019.
  • Rodrigues, Edgar, Os anarquistas e os sindicatos em Portugal 1911-1922, Lisboa, Editora Sementeira, 1981.
  • A oposição libertária em Portugal 1934-1979, Lisboa, Editora Sementeira, 1982.
  • Santana, Emídio, Intervista com E.S., in Rivista Anarchica, ano IV, n.º 6, Milão, Agosto-Setembro, 1974.
  • Vieira, Alexandre, Para a história do sindicalismo em Portugal, Lisboa, Editora Seara Nova, 1970.

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04
Fev22

O sindicalista José Santos Arranha (1891-1962)


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Santos Arranha foi uma figura cimeira na história do sindicalismo português, apesar de, por diversas vezes, ter estado envolto em polémica. Secretário-geral da CGT e, depois, director do jornal diário "A Batalha" por ocasião do golpe militar de 28 de maio de 1926 foi responsabilizado por alguma tibieza que se terá verificado na reacção ao golpe por parte do diário confederal. Já antes fora acusado por alguns sectores libertários e anarco-sindicalistas de, através de uma série de artigos no jornal, contestar a direcção da central sindical e permitir a publicação de artigos discordantes da linha oficial da CGT. Apesar das polémicas, Emídio Santana define-o nas suas "Memórias...." "como um militante inconfundivelmente anarco-sindicalista".

*

No dia 24 de Fevereiro de 1962, falecia em Lisboa uma figura cimeira do sindicalismo português.

Sob o peso da censura de uma ditadura de tipo fascista, os jornais do dia seguinte não disseram nada.

Mas quem ia a enterrar era um antigo secretário-geral da CGT (Confederação Geral do Trabalho). E antigo director do diário sindicalista A Batalha.

Era um homem que havia sido preso político pelo menos seis vezes, mas que permaneceu fiel aos seus ideais até ao final da vida. Era anarquista. Ou “socialista-libertário”, como gostava de dizer.

E tinha sido também colaborador da A Voz do Operário.

Operário marceneiro

Filho de um ferroviário, José da Silva Santos Arranha nasceu a 3 de janeiro de 1891, na então vila de Caldas da Rainha.

Tornou-se operário marceneiro e rumou a viver para Lisboa, onde viria a casar com uma operária tabaqueira.

E aqui se salientou nas lutas sindicais, no período da 1ª Guerra Mundial. Foi aliás nessa altura, em 1916 e 1917, que colaborou no principal jornal operário que existia em Portugal: A Voz do Operário, então com edição semanal de 60 mil exemplares.

Neste jornal, Santos Arranha expôs duas lutas concretas do seu sector profissional. A primeira em torno do horário de trabalho, procurando conquistar um limite diário de 9 horas. A segunda por questões salariais, tentando recuperar poder de compra face à elevada inflação que se registava à época.

Os sindicato únicos

Alguns anos depois, em 1920, Santos Arranha destacou-se num processo de reorganização sindical que passou pela criação dos então chamados “sindicatos únicos”. Tratava-se de reunir trabalhadores do mesmo ramo de actividade que anteriormente estavam divididos em diferentes sindicatos de ofícios especializados.

No caso de Santos Arranha, a sua antiga Associação de Classe dos Operários Marceneiros de Lisboa aderiu ao novo Sindicato Único da Indústria Mobiliária de Lisboa. Santos Arranha foi um dos fundadores deste novo sindicato e um dos seus primeiros dirigentes, responsável pela “caixa de solidariedade e Bolsa de Trabalho”.

No final desse ano de 1920, ele foi também um dos fundadores da Federação Nacional dos Operários da Indústria de Mobiliário. 

A CGT

No congresso operário realizado em Outubro de 1922, na Covilhã, Santos Arranha foi eleito secretário-geral da central sindical CGT. E exerceu esse cargo durante um ano.

Uma preocupação central da CGT nesse período foi o agravamento do custo de vida. Para se ter uma ideia, até o governo republicano dizia que “a carestia dos géneros de primeira necessidade” atingia preços “exorbitantes” e que era “verdadeiramente aflitiva a situação de milhares de consumidores”. Mais reconhecia que existiam muitos “casos de exploração intensamente gananciosa” e de lucros “excessivos” que estavam “semeando a miséria” [Diário do Governo (1ª série), 21/10/1922].

Neste contexto, foi prioritária a luta pela recuperação de salários. Mas essa luta viu-se confrontada com outro problema, a repressão política sobre a classe trabalhadora: activistas presos, imprensa apreendida, sindicatos temporariamente encerrados, reuniões dissolvidas… Só no período em que Santos Arranha foi secretário-geral da CGT, ele próprio foi duas vezes preso, ambas quando participava em pacíficas reuniões sindicais.

Na acção da CGT nesse período é de salientar o trabalho de solidariedade com trabalhadores em luta. “Em Outubro de 1922 os mineiros de Aljustrel declaram-se em greve, reclamando melhores salários, luta que sustentaram ininterruptamente até Janeiro seguinte”. A CGT organizou então o acolhimento temporário dos filhos destes trabalhadores em famílias de Beja e Lisboa, “para subtraí-los à fome e ajudar os pais na sua luta”.

O processo repetiu-se em Lisboa e no Porto para apoiar trabalhadores em greve na Covilhã e S. Pedro da Cova. Acolhendo no total algumas centenas de crianças.

Como sublinharia Emídio Santana, estes “foram actos de solidariedade de um grande significado e demonstrativos das energias morais do movimento” [Santana (1987), Memórias de um militante anarco-sindicalista].

Em Outubro de 1923, Santos Arranha demitiu-se da liderança da CGT, no quadro das discórdias que à época dividiram o movimento sindical português. Discórdias sobretudo entre a corrente anarquista e a corrente comunista, mas também a nível interno da corrente anarquista.

No verão de 1925, Santos Arranha voltou à linha da frente como director do ‘órgão central’ da CGT, o jornal A Batalha. Cargo do qual de novo acabou por se demitir ao fim de um ano e pelas mesmas razões.

Fascismo

Na fase que Santos Arranha dirigiu A Batalha, esse jornal marcou posição na denúncia e no apelo à luta contra a ameaça de uma ditadura militar e do fascismo. Uma ameaça bem real, que se concretizou com o golpe militar de 28 de Maio de 1926.

Em 1927, A Batalha foi encerrada, a CGT foi forçada à clandestinidade e Santos Arranha foi mais uma vez preso político. Viu-se depois constrangido a sair do país. Na década de 1930 viveu na Bélgica, onde integrou um sindicato de operários da construção civil.

Terá regressado a Portugal em 1939, para escapar à invasão nazi [segundo João Freire/Maria Alexandre Lousada (2013), Roteiros da memória urbana – Lisboa: marcas deixadas por libertários e afins ao longo do século XX].

Na década de 40, Santos Arranha foi militante de um grupo anarco-sindicalista clandestino: o grupo «Esperança». E quando faleceu ainda participava numa “tertúlia” que reunia velhos sindicalistas.

(aqui)