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Memória Libertária

Documentos e Memórias da História do Movimento Libertário, Anarquista e Anarcosindicalista em Portugal

Documentos e Memórias da História do Movimento Libertário, Anarquista e Anarcosindicalista em Portugal

Memória Libertária

27
Mar23

(memória libertária) Arnaldo Simões Januário (Coimbra, 1897 – Tarrafal, 1938)


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Arnaldo Simões Januário nasceu em Coimbra a 6 de Junho de 1897 e faleceu a 27 de Março de 1938, no Campo de Morte do Tarrafal, vitimado por uma biliose anúrica, sem assistência médica, depois de vigorosos anos de combatividade e de sofrimento nos cárceres e nas deportações.

Barbeiro de profissão, foi o organizador em Coimbra dos Sindicatos Operários e estrénuo propagandista revolucionário anarquista. Foi correspondente em Coimbra do jornal “A Batalha”, órgão da C.G.T.. Em 18 de Março de 1923 tomou parte na Conferência de Alenquer como delegado do Grupo Anarquista de Coimbra de que fazia parte juntamente com João Vieira Alves, também delegado. A sua combatividade não esmoreceu com o advento do movimento do 28 de Maio antes recrudesceu. Antes porém a sua acção na propaganda tornou-se bem conhecida em sucessivos artigos em “A Batalha”, “A Comuna”, “O Anarquista”, a revista “Aurora” e muitos jornais dedicados à causa dos trabalhadores. Fez parte do Comité Nacional da União Anarquista Portuguesa (U.A.P.) formada a partir daquela célebre Conferência. Em 1927 sofreu a sua primeira prisão e seguiram-se-lhe intermináveis perseguições em todas as prisões e nos períodos de relativa liberdade que eram para ele outros tantos períodos de luta na clandestinidade. Sua ideologia acrata não lhe permitia subtilezas ou atitudes de meias tintas. Lutava em todos os escalões, pela palavra, pela escrita e pela acção.

O movimento revista de 18 de Janeiro de 1934 teve nele um dos principais organizadores. Preso pela Pide de Salazar, que num furacão de brutalidade, investe sobre os elementos operários de todo o país, declarou nobre e altivamente tomar inteira responsabilidade pro aquele movimento cujo fim era derrubar a Ditadura.

Entre 1927 e 1931 passou pelas cadeias do Governo Civil de Coimbra, Aljube e Trafaria seguidas de deportações em Angola, Açores e Cabo Verde e internamento no Campo de Concentração de Ué-Kussi ou Okussi em 22 de Novembro de 1931.

Para este campo foram crescendo em número os deportados idos da metrópole, e como o campo de Okussi não comportasse mais homens, os ditadores mandaram construir a toda a pressa outro na ilha de Ataúro ou Taúro.

Transcrevemos a seguir a descrição dos dois Campos, recolhida de apontamentos seus, escritos na prisão.

«O Campo de Concentração de Okussi funcionou de Outubro de 1931 a Maio de 1932 com uma população normal de 100 pessoas, excepto nos três primeiros meses em que essa população foi de, aproximadamente, 150 homens. O local do campo ficava, ao nível do mar e a sua construção era de palapa, material com que os indígenas faziam as suas habitações. A poucas dezenas de metros encontravam-se dois grandes pântanos onde manadas de búfalos nadavam e pastavam na maior tranquilidade. Após três meses de internamento 70% da população do campo estava gravemente impaludada. Na época das chuvas, a mais quente, o termómetro chega a acusar, 38º à sombra. O comandante militar do campo era o Tenente Óscar Ruas. Os locais escolhidos para a construção dos dois campos de concentração obedeceu a um pensamento homicida, covardemente premeditado o crime que haveria de arrancar a vida ou inutilizar a saúde a perto de quinhentos homens. Ataúro é uma ilha sem condições de vida para europeus. Sem saneamento de qualquer espécie, sem água potável, com uma temperatura excessivamente quente é justamente que se chama àquela ilha a Ilha da Morte. A alimentação dada aos confinados era má e insuficiente. Ao cabo de três meses começam a declarar-se os primeiros casos de tuberculose que se repetem duma forma alarmante. Serviços médicos não existem na ilha, quedando reduzidos à assistência dum enfermeiro militar. Quando desembarcavam em Dili os deportados de Ataúro, com destino ao hospital, deparava-se sempre com um espectáculo arrepiante que confrangia toda a gente que a ele assistia. Homens com as aspecto de cadáveres ambulantes, magros, esquálidos, os olhos luzentos de febre, esfarrapados e descalços no seu maior número. Em toda a população da cidade, mesmo naquela que é indiferente à questão política, correu m um frémito de indignação ante a hediondez nitidamente demonstrada pelo tratamento a que estavam sujeitos algumas centenas de homens. Foi necessário morrer um desgraçado e que outros fossem largando os pulmões pela boca para que o Governador, brigadeiro Justo, implorasse para Lisboa a extinção dos dois Campos de Concentração, o que vem a acontecer em fins de Janeiro e Maio de 1932».

Depois destes inauditos tormentos, Januário é posto em liberdade e regressa a Coimbra.

Após o malogro do movimento grevista de 18 de Janeiro de 1934, o operariado de todo o país sofre uma nova investida da PIDE, num furacão de brutalidade sem nome. Volta a ser encarcerado no Aljube e a seguir transferido para o Forte da Trafaria, onde é montada uma comédia-julgamento. Este improvisado julgamento condena-o a 20 anos de prisão, sendo enviado  para o Forte de S. João Batista, na Ilha Terceira, nos Açores. Era director o famigerado Capitão Paz que ali cometeu toda a espécie de arbitrariedades. Mário Castelhano e Arnaldo Januário, émulos no heroísmo, foram metidos na POTERNA, horrendo cárcere, tão horroroso como os da velha Inquisição.

Depois destes sofrimentos, Salazar, o místico da crueldade, que, da casa onde se acoitava, guardado pela G.N.R., a S. Bento, providenciava em todo o regime penal, como um velho inquisidor de há 3 séculos, ainda veio a criar o Campo da Morte do Tarrafal.

Para ali, com muitos outros, foi atitado o Januário e é já suficientemente conhecido o regime de vida que ali levavam os presos.

Arnaldo Simões Januário, lutador incansável que a tudo resistira, destruído física que não ideologicamente, sucumbe, enfim, a 27 de Março de 1938, rodeado dos cuidados possíveis dos seus companheiros, mas sem os carinhos da família onde avultavam cinco filhos menores.

É assim que deixa de pulsar o coração generoso do Homem que tudo sacrificou ao seu ideal, ideal de fraternidade humana que não se compadecia com situações fascistas e nazis, tendo o seu corpo ficado sepultado na terra que tanto o viu sofrer.

(Publicado em "Voz Anarquista", nº 13, Abril de 1976)

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Arnaldo Simões Januário, aquando da deportação para Timor. Em Dili, Agosto de 1932.

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25
Mar23

Notícia da morte de Mário Domingues no jornal «Voz Anarquista», nº 21,de Abril de 1977


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A notícia da morte do escritor e jornalista libertário Mário Domingues foi publicada na primeira página do jornal «Voz Anarquista», nº 21, de Abril de 1977, com uma pequena nota biográfica, julgamos que da autoria do próprio Francisco Quintal, o seu director , e por uma carta a ele dirigida por Mário Domingues aquando da publicação, dois anos antes, do primeiro número do jornal. A nota biográfica salienta e destaca o percurso libertário de Mário Domingues, dizendo que ele se recusou, no fascismo, a colaborar na imprensa do regime e fazendo da escrita o seu ganha-pão: "Mário Domingues nunca modificou as suas ideias, repudiou-se a si próprio como jornalista, saiu do meio que era nobre e se tornou antro ignóbil, e passou a viver da sua pena como um sapateiro da sua sovela. Trabalhando para comer, como o mais humilde proletário. Era e foi sempre um simples, um homem bom, incapaz de ofender fosse quem fosse."  Eis a notícia e o texto da carta de Mário Domingues ao director da "Voz Anarquista", Francisco Quintal, que diz conhecer "há mais de 50 anos":

"Morreu Mário Domingues jornalista libertário

A notícia do falecimento do escritor e jornalista, Mário Domingues, no passado dia 24 de Março, que saltitou em paragonas de chavão profissional, por alguns diários da capital, pertence por direito natural à imprensa anarquista e anarco-sindicalista, de que o nosso falecido camarada foi estrénuo defensor e um dos mais distintos colaboradores, entre tantos que através dos anos honraram a verdadeira imprensa livre e a ideologia libertária. Não temos a intenção neste momento de criticarmos em globo, as atitudes, por vezes, infelizes e odiosas de certos jornais.

Há, porém, um aspecto em que todos esses jornais parecem estar de acordo – e parece que há uma ordem geral para que se estabeleça um silêncio no que diz respeito ao noticiário informativo sobre o movimento acrata. Silêncio feito desprezo, silêncio feito medo, silêncio que é uma exclusão. E quando noticiam uma sessão anarquista, não deixam nunca de a deturpar e de dar-se ares superiores como se se tratasse de um espectáculo infantil. Esse silêncio soturno leva à conclusão de que em Espanha o movimento anarquista já morreu há muito. Nada, absolutamente nada. O corte é manifesto. Em Portugal, também não há nada, além do movimento dos partidos em eterna degladiação ou sofismada harmonia.  Pois, com a notícia da morte de Mário Domingues passa-se o mesmo fenómeno. Nem sequer notaram que o Mário se afastou desgostoso com a imprensa do tempo da ditadura fascista, é certo, mas, após o 25 de Abril, continuou afastado e, até ao dia da sua morte, não regressou ao redil em que a maioria se sente bem. Continuou na sombra, editando os seus livros de evocação histórica e pouco mais.

Mário Domingues apareceu aos 19 anos de idade, ainda estudante, nimbado pelas ideias de filosofia superior que se integram dentro do Anarquismo. Pomos de parte, por desnecessário e por ser de todos conhecida, a sua longa autoridade de repórter, de colaboração com Reinaldo Ferreira, o Repórter X, até ao «Detective», revista que ele próprio editou e dirigiu.

Desejamos neste jornal, consagrando um grande camarada, salientar a sua actividade no jornal anarco-sindicalista «A Batalha», em muitas e muitas campanhas, que deram brado, assim como a sua colaboração no jornal «A Comuna», e o concurso que sempre deu ao movimento acrata, formando um grupo libertário com Cristiano Lima, David Carvalho e outros. Além de «A Batalha» colaborou intensamente na revista «Renovação», de que saíram alguns números, e sobretudo no suplemento de «A Batalha».

Os acontecimentos precipitaram-se. Do 28 de Maio de 1926 em diante, a ditadura foi apertando o cerco, até que com o megalómeno Salazar, rodeado por uma clique de criminosos, os quais ainda hoje erguem as cabeças nesta estranha democracia sui-generis, os movimentos de luta pela liberdade foram-se extinguindo, e reinando em seu lugar uma clandestinidade nefasta causadora de grandes sacrifícios e de renúncias nem sempre as mais dignas. Mas, no meio das prisões, deportações, corrupções, Mário Domingues nunca modificou as suas ideias, repudiou-se a si próprio como jornalista, saiu do meio que era nobre e se tornou antro ignóbil, e passou a viver da sua pena como um sapateiro da sua sovela. Trabalhando para comer, como o mais humilde proletário. Era e foi sempre um simples, um homem bom, incapaz de ofender fosse quem fosse.

O regime caminhou inexoravelmente para a data segura do 25 de Abril de 1974. E, para além do que os militares golpistas previam, a liberdade, embora momentaneamente, eclodiu, e todo um povo conseguiu demonstrar, antes que os políticos agissem, que era maior. O anarquismo, de novo, saiu da clandestinidade, rompeu a crisálida imposta e a nossa organização, de propaganda e de combate, começou a actuar. De novo, a imprensa libertária surgiu com o primeiro peródico «Voz Anarquista». O seu primeiro número saiu em Janeiro. E Mário Domingues, logo em 19 de Fevereiro, recebido e lido com alvoroço o nosso primeiro número escreve-nos a seguinte carta, que com emoção rediviva, publicamos, demonstrativa da coerência de um jornalista que sempre honrou a Imprensa, considerada na sua mais elevada significação.

“Lisboa, 19 de Fevereiro de 1975

Meu caro Francisco Quintal:

Por amável devolução dos Correios da Costa da Caparica, onde resido quase todo o ano, recebi o primeiro número do «Voz Anarquista» que tu diriges com o mesmo entusiasmo e a mesma lucidez que te conheci há cinquenta anos.

Li-o com a alegria, a comoção e o alvoroço de quem encontra uma pessoa de família muito íntima de quem estivesse separado há muito tempo.

Vejo no cabeçalho que a iniciativa da publicação deste jornal libertário pertence ao Grupo Editor Aderente ao M.L.P., motivo por que o felicito vivamente por teu intermédio e, simultaneamente, envio-te, a ti, um grande abraço pelo esforço que estás realizando em prol da nossa causa tão carecida de divulgação e esclarecimento.

Agora, mais do que nunca, é preciso proclamar bem alto que o Anarquismo não é a desordem, a violência e o crime, como as forças reaccionárias têm querido qualifica-lo. Urge desfazer essa lenda tenebrosa e demonstrar ao grande público enganado por essas torpes mentiras, que o Anarquista ama e defende o ideal supremo de Ordem exercida numa  Sociedade edificada na Liberdade, na Fraternidade e na Justiça Social. À «Voz Anarquista» cabe essa sublime tarefa, recordando o exemplo de homens superiormente lúcidos como o foram Proudhon, Eliseu Reclus, Sebastien Faure, Bakunine, Kropotkine, Neno Vasco,  Pinto Quartin, Campos Lima, Cristiano Lima, Aurélio Quintanilha (felizmente ainda vivo) e tantos outros, propositadamente esquecidos, que abriram aos homens o caminho da Liberdade.

Apesar dos anos e da escassez de saúde (o médico recomenda-me repouso!) acompanho com entusiasmo a acção dos Libertários portugueses, nesta hora que o 25 de Abril parece tornar propícia a melhores dias.

Espero ter o feliz ensejo de poder falar-te na Costa da Caparica, onde conto regressar durante o mês de Março p.f..

Mais um abraço do teu camarada e amigo – Mário Domingues”

 

24
Mar23

(memória libertária) Reacção à terceira rusga policial à Comuna Cronstadt, em Lisboa


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A 24 de março de 1977, a PSP fez uma rusga (mais uma!) na Comuna Cronstadt, às Janelas Verdes, identificando alguns dos seus ocupantes e apreendendo algum material, nomeadamente uma máquina de escrever, que posteriormente seria devolvida. A ocupação manteve-se inalterada, mas foi emitido um comunicado assinado por “um grupo de moradores dos Prazeres” onde se condenava a intervenção policial. (Arquivo Portal Anarquista)

24
Mar23

Mário Domingues (Ilha do Príncipe, 3 de julho de 1899 — Costa da Caparica, 24 de março de 1977)


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Mário Domingues e Alexandre Vieira, em casa do primeiro (c.1954). (aqui)

Mário Domingues foi um escritor talentoso e prolixo, um jornalista muito activo e um militante libertário, desde muito cedo empenhado na denuncia do racismo que grassava na sociedade portuguesa e nas colónias ultramarinas, em que a cor da pele era uma das condições básicas para o sucesso social e económico. Jornalista do diário anarco-sindicalista, A Batalha, ficaram famosos alguns dos seus artigos e crónicas recentemente reunidos em livro (“Mário Domingues – A afirmação Negra e a Questão Colonial”, ensaio e selecção de José Luís Garcia, Edições Tinta da China, Lisboa 2022)

Mário Domingues nasceu na ilha do Príncipe, na roça Infante D. Henrique, propriedade da firma Casa Lima & Gama, com sede e escritório em Lisboa, filho de mãe angolana natural de Malanje, de nome Kongola ou Munga, que tinha ido para a ilha do Príncipe como contratada (à força) com quinze anos de idade, e de António Alexandre José Domingues, oriundo de famílias liberais de Lisboa. Com dezoito meses de idade foi enviado para Lisboa, sendo educado pela avó paterna.

Aos dezanove anos de idade aderiu ao ideário do anarquismo e iniciou colaboração no diário anarco-sindicalista A Batalha e, posteriormente, no jornal anarquista A Comuna, da cidade do Porto. Nesse período participou nas atividades de um grupo libertário que, entre outros, integrava Cristiano Lima e David de Carvalho. Fez parte da redação da revista Renovação (1925-1926) e colaborou na organização do congresso anarquista da União Anarquista Portuguesa (UAP).

Após o golpe fascista de 28 de Maio de 1926, e a proibição da imprensa anarquista e anarco-sindicalista,  dedicou-se ao jornalismo e tornou-se escritor profissional. Voltou-se para a história e para os romances policiais, escrevendo mais de uma centena de livros, com os mais diversos pseudónimos..

Sem nunca abandonar o ideário anarquista, deixou a militância activa durante largos anos. Apesar disso quando em 1975 surgiu o jornal “ Voz Anarquista”, escreveu uma carta ao seu diretor e amigo, Francisco Quintal, onde dizia : “Agora, mais do que nunca, é preciso proclamar bem alto que o anarquismo não é a desordem, a violência e o crime, como as forças reacionárias têm querido qualificá-lo. Urge desfazer essa lenda tenebrosa e demonstrar ao grande público, enganado por essas torpes mentiras, que o anarquista ama e defende o ideal supremo da ordem, exercida numa Sociedade edificada na Liberdade, na Fraternidade e na Justiça Social. À Voz Anarquista cabe essa sublime tarefa, recordando o exemplo de homens superiormente lúcidos como foram Proudhon, Eliseu Reclus, Sébastien Faure, Bakunine, Kropotkine, Neno Vasco, Pinto Quartin, Campos Lima, Cristiano Lima, Aurélio Quintanilha e outros propositadamente esquecidos, que abriram aos homens o Caminho da Liberdade.”

relacionado:

https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2022/01/11/a-liberdade-nao-se-concede-conquista-se-que-a-conquistem-os-negros-artigo-sobre-mario-domingues-no-publico-suplemento-ipsilon-de-30-3-2018/

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07
Mar23

(memória libertária) O I Forum Ibérico “Sem Fronteiras nem Bandeiras”, na Guarda, e a tentativa de criação da Associação de Classe Interprofissional


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Num momento em que tanto se fala de sindicalismo alternativo, combativo, de base, convém referir uma das iniciativas que pretenderam, no campo libertário,  furar o cerco que o sindicalismo partidarizado, hierárquico e reformista criou em torno do movimento dos trabalhadores.

Apesar do anarcosindicalismo, após o 25 de Abril, nunca se ter conseguido constituir como corrente alternativa, em Portugal, aos sindicatos oficiais, controlados pelo PCP, pelo PS ou pelo PSD, por várias vezes existiram tentativas para criar um movimento social de acção directa e um sindicalismo de base. Nas primeiras duas décadas do século XXI, foram criadas a secção portuguesa da AIT, formada por um pequeno núcleo de militantes, com especial incidência em Lisboa e no Porto,  e um colectivo, mais centrado nas questões da educação, e que editou um pequeno boletim intitulado “Luta Social”, mantendo contactos com organizações de base assemblearia e libertária de vários países europeus. 

Alguns dos seus membros integraram a secção portuguesa da Federação Europeia de Sindicalismo Alternativo – Educação, que reunia federações de ramo da CGT-Espanha (CGT-Enseñanza), UNICOBAS de Itália (UNICOBAS L'Altra Scuola), os sindicatos franceses SUD (Solidaires-Unitaires-Démocratiques) da Educação de Paris e de Grenoble; o sindicato SIP e o sindicato de estudantes (SISA), da Suiça Italiana, bem como outros colectivos (na Eslovénia, em Portugal, em Itália, em França).

A FESAL-E é apresentada em Abril de 2004 na sede de A Batalha  e, posteriormente, realizam-se várias reuniões internacionais desta organização em Lisboa.

A mais importante terá sido  na Guarda, em 2006, nos dias 4 e 5 de Março, com a realização do I FORUM IBÉRICO “SEM FRONTEIRAS SEM BANDEIRAS”, organizado pelo Núcleo Português da FESAL-E, com a colaboração do Coordenador Europeu da FESAL-E; e com a participação de colectivos da CGT-E; da CNT-AIT ; de “Ecologistas en Acción” e da Associação Ambientalista “Quercus”, conforme se pode ler nos materiais que publicitaram o encontro.

Há também uma descrição da forma como a reunião decorreu, feita por Davide Rossi, responsável das relações internacionais de UNICOBAS Itália, e publicada no nº 13 do boletim "Luta Social". 

O colectivo  era integrado por diversos companheiros de diversos pontos do pais e em Julho de 2006, realizou-se uma assembleia geral da secção portuguesa da FESAL-E em que foi criado um sindicato denominado Associação de Classe Interprofissional, que passou a ter o boletim “Luta Social”, como órgão informativo. Nesta mesma reunião foram aprovados os estatutos, regulamento interno e eleitos os corpos gerentes. (aqui

No entanto, o processo de legalização posterior foi sabotado pelo próprio Estado: mal a associação foi legalizada, o ministério público recorreu, obrigando à sua dissolução, supostamente pelo referido sindicato violar a lei, nos seus próprios estatutos, que haviam sido registados meses antes sem quaisquer problemas. (aqui)

A militância destes companheiros manteve-se durante alguns anos, tendo mesmo dado origem aos Cadernos de "Luta Social", temáticos, de que terão saído quatro números, extinguindo-se por volta de 2009.

Relacionado: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2016/09/11/memoria-libertaria-ac-interpro-a-tentativa-de-construcao-de-uma-associacao-de-base-anarco-sindicalista-em-portugal-no-inicio-do-seculo-xxi/

Boletim Luta Social (até ao 15) : https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/imprensa-libertaria/

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03
Mar23

A MANIFESTAÇÃO ANARQUISTA DE 3 DE MARÇO DE 1975 EM SOLIDARIEDADE COM OS TRABALHADORES ESPANHÓIS


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A 3 de março de 1975, vários grupos (uns anarquistas e outros afirmando-se apenas internacionalistas) de Lisboa organizaram uma manifestação de solidariedade para com os trabalhadores espanhóis ainda sob o jugo de Franco, aproveitando o aniversário do assassinato de Salvador Puig Antich, que tinha sido garrotado um ano antes, a 2 de março de 1974.

Foram várias centenas os manifestantes que desfilaram Avenida da Liberdade acima, provocando alguns estragos nas montras de companhias espanholas que ali tinham as suas delegações.

O comunicado que convocou a manifestação – para além de outro material publicado na altura – traduz o espírito da convocatória e a solidariedade que todo o movimento libertário português sempre prestou, neste período difícil, aos companheiros espanhóis.

Sobre esta manifestação, escreveu Júlio Carrapato, alguns anos depois, que "os jovens anarquistas e os velhos anarco-sindicalistas portugueses foram os únicos a organizar a manifestação de 3 de Março de 1975, contra o Pacto Ibérico e de solidariedade com os trabalhadores espanhóis, a única claramente antimilitarista que se fez no Portugal pós-fascista, na qual se gritou uma frase que os jornais servis nem se atreveram a transcrever na íntegra: “os soldados são filhos do povo; os generais são filhos da puta”. Coitados, com toda a boa vontade que os caracteriza em relação aos partidos do Governo ou aos da oposição legal democrática (sempre “a mudança”!), só ousavam citar a boutade até meio, o que, convenhamos, alterava “um pouquinho” o sentido da frase…”

Referindo-se a esta manifestação, Carlos Gordilho, escreve que: "A manifestação pública referida neste texto (...), foi planeada pela Associação de Grupos Autónomos Anarquistas. Na organização colectiva desse evento também participaram os companheiros espanhóis refugiados, que diáriamente conviveram connosco em Almada. Local onde estiveram alojados durante seis meses. A AGAA nessa época representava a única estrutura anarquista real, com capacidade de mobilização da juventude e com a força necessária de penetração em alguns sectores sociais. Na área indústrial da margem sul do Tejo (Lisnave, Oficinas do Arsenal do Alfeite, Companhia Nacional de Pescas, Siderurgia Nacional) a nossa propaganda era distribuida nos locais de trabalho, a partir de uma rede de jovens operários." (aqui)

Em baixo está a “notícia” do “insuspeito” Diário de Lisboa, então dominado pelo PCP e pela extrema-esquerda (a maioria hoje a militar em partidos de direita) que, num texto não assinado e demonstrativo daquilo que, na altura e agora, se chama “isenção jornalística”, tenta ironizar com a forma como decorreu o desfile de protesto. Quem lá esteve não se reconhece no tom faccioso e mentiroso da prosa! Mas fica como exemplo desses tempos, em que depois de 16 anos de repressão burguesa na 1ª República e de 48 anos de fascismo, o movimento anarquista ainda sofreu todo o tipo de silêncios, perseguições, mentiras e ocultações após o 25 de abril por parte de quem quis ocupar as primeiras filas de uma democracia de opereta.

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27
Fev23

Manuel Joaquim de Sousa (1883-1944)


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Manuel Joaquim de Sousa foi um destacado militante anarquista e dirigente sindical. Sapateiro, natural do Porto, foi o primeiro secretário-geral da CGT, tendo também dirigido o diário "A Batalha" durante algum tempo. Participa na criação da Aliança Libertária, já durante o período fascista, sendo preso. Está na prisão quando se dá o levantamento do 18 de janeiro de 1934 contra a fascização dos sindicatos.
 
Manuel Joaquim de Sousa nasceu a 24 de Novembro de 1883 na freguesia de Paranhos, Porto. Depois de escassos meses de escola primária, as necessidades económicas da família atiraram-no, ainda criança, para o mundo do trabalho e da exploração. Servente de carpinteiro e de alfaiate, aos 12 anos começou a trabalhar de sapateiro, o que viria a ser a sua profissão.
Desde muito novo interessado pelas leituras, é atraído pelos ambientes anarquistas nortenhos do fim do século 19 e faz a sua aprendizagem militante nas associações de classe dos sapateiros portuenses. Carlos Nobre, Benjamim Relido e, sobretudo, Serafim Lucena, são então homens de grande projecção do anarquismo. Com eles se forma Manuel Joaquim, bem como na actividade editorial e militante do jornal O Despertar.
Por volta de 1908 participa no Grupo de Propaganda Libertária onde publica um folheto intitulado O primeiro de Maio e as suas Origens - grupo que em seguida se transforma no Cómité de Propaganda Sindicalista do Porto, peça importante na construção do sindicalismo revolucionário.
Toma parte activa no 1.° e no 2.° Congresso Sindicalista. Neste último, em 1911, são constituídas duas Uniões Operárias, a de Lisboa e a do Porto, sendo Manuel Joaquim de Sousa escolhido para secretário-geral da última.
Participa do jornal anarquista A Vida e impulsiona a actividade do Centro e Biblioteca de Estudos Sociais, verdadeiro foco de irradiação cultural e doutrinária do anarquismo nortenho. Publica então um livro intitulado O Sindicalismo e a Acção Directa. Em 1914 representa a organização sindicalista do norte no Congresso Operário de Tomar, onde nasce a União Operária Nacional, a primeira central sindical portuguesa, de orientação nitidamente sindicalista revolucionária. Tomou também parte na delegação portuguesa ao Congresso Cóntra a Guerra, em 1915, no Ferrol, a qual foi presa e expulsa para Portugal.
Tempos depois passou a viver em Lisboa e no ano de 1919 participa do Congresso de Coimbra onde a UON dá lugar à CGT. Manuel Joaquim de Sousa foi redactor das bases da Confederação, bem como da tese "Relações Internacionais". Eleito secretário-geral do primeiro Comité Confederal, ocupou esse cargo durante três anos, até ao Congresso da Covilhã. Anos de intensa fermentação revolucionária, o entusiasmo suscitado pela revolução russa, as lutas na Alemanha, na Hungria, na Itália; e, em Portugal, as greves de grandes proporções dos ferroviários, dos correios e telégrafos, do professorado, do funcionalismo, da construção civil, da metalurgia, e outros movimentos proletários. Sousa propõe a criação e redige as bases da Liga Operária de Expropriação Económica, que, seria paralelamente à C.G.T. e no plano consumidor, o organismo económico da Revolução.
Ainda neste período, e como anarco-sindicalista, Manuel Joaquim de Sousa critica publicamente as posições e actividades dos maximalistas e do Partido Comunista numa série de artigos intitulados "A boa paz", publicados por A Batalha, de que era, ao tempo, director. Em 1925 representa a sua Federação do Calçado no Congresso de Santarém.
Preso após o 7 de Fevereiro de 1928, é forçado, como todos os outros, a uma semi-clandestinidade. Participa então na criação da Aliança Libertária, e entra no seu comité executivo de Lisboa. Por estas actividades, é de novo preso, em 1933, encontrando-se na cadeia na altura do 18 de Janeiro do ano seguinte.
Doente, mas sempre mantendo o contacto com os companheiros inteira-se das suas actividades clandestinas. Morreu em Lisboa, a 27 de Fevereiro de 1944.
Os seus livros "O Sindicalismo em Portugal", com várias edições,  e "Os últimos tempos da acção sindical livre e do anarquismo militante (1926-1938)", publicado originalmente pelo jornal "Voz Anarquista", são dos melhores documentos desses tempos, passados mas não esquecidos. Foi um militante dos mais produtivos, dos mais coerentes, um lutador que dignificou a causa dos libertários.
 
Fontes: E. Rodrigues (1982). A oposição Libertária em Portugal. 1939-1974. Lisboa. Sementeira.
 

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27
Fev23

MANUEL FRANCISCO RODRIGUES (1901 - 1977)


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               Por Maria João Dias

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Professor, filósofo e escritor, opositor à ditadura fascista do Estado Novo, viveu a violência da repressão. Passou por todas as prisões políticas até ser deportado para o Campo de Concentração do Tarrafal, onde esteve três anos e meio. É autor de diversas publicações, entre as quais “Tarrafal, aldeia da morte”, considerada um valioso testemunho sobre o sofrimento dos presos políticos.
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1. Manuel Francisco Rodrigues nasce em Lisboa, a 12 de Fevereiro de 1901, filho de Carlota da Conceição Vidal, natural de S. Domingues do Vale de Figueira (Santarém) e de António Guilherme Paula Rodrigues, carpinteiro, natural da freguesia de Santa Isabel, Lisboa, moradores na Estrada de Campolide. É inteligente, de espírito culto e inquieto. É assíduo frequentador da Biblioteca Nacional quando Jaime Cortesão é o Director. Torna-se partidário das ideias anarquistas e cristãs. A sua filosofia é libertária-ramo tolstoiano. Segue também doutrinas, crenças filosóficas e práticas de cariz místico. É defensor do vegetarianismo e particante do naturismo. Funda o "Grupo dos Filhos do Sol" com o enfermeiro Virgílio de Sousa, e colabora com a Liga- Anti-Alcoólica Operária". O seu idealismo cedo o levou às grades de uma prisão política, detido durante uma noite de contestação em Lisboa.
Com vinte e poucos anos, sai do país e, durante vinte anos, viaja 10.000 Km por toda a Europa. Vive na Noruega, Suécia, Estónia, Letônia , Lituânia, Alemanha...Na Bélgica, estuda e adquire um diploma em Filosofia, no Institut Philosophique de Bruxelles. Na Alemanha, vive na aldeia vegetariano-tolstoiana de Orienburg e participa na reunião da IV Internacional em Berlim.
Em 1936, está em Barcelona e, integrado no movimento anarquista, organiza na sua casa reuniões com outros membros de destaque do movimento. Casa com Aurora Reboredo, filha do anarquista José Rodrigues Reboredo (1891-1952). Em 1938 nasce a primeira filha do casal, Aurora. No eclodir da guerra civil espanhola, luta como voluntário contra os franquistas. É ferido e perde a visão do olho esquerdo. Refugia-se em França, atravessando os Pirenéus, e vive lá alguns anos com a família. Mas acaba por conhecer a dureza dos campos de concentração de Argelès-Sur-Mer; Saint-Cyprien e Gurs. Em dezembro de 1940, e já à espera do nascimento de mais uma filha, Maria, regressa a Portugal.
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2- Em Beirã (Marvão), a 15 de Dezembro de 1940, Manuel é detido com o sogro. Fica preso no posto da GNR até 20 de Dezembro, data em que é enviado para a cadeia do Aljube (Lisboa). Em Fevereiro de 1941, é transferido para a prisão de Caxias. Em Julho de 1941 dá entrada no Forte de Peniche, onde fica dois meses e, em 4 de Setembro de 1941, embarca para o Campo de Concentração do Tarrafal (Cabo Verde), com José Rodrigues Reboredo e outros antifascistas. Julga que é um engano, mas cedo as suas esperanças se desvanecem. Aí vai encontrar dois conhecidos: um antigo amigo dos tempos de juventude, o enfermeiro Virgílio de Sousa Coelho, que chegou ao Tarrafal a 12 de Junho de 1937 e de lá sairá apenas a 23 de Janeiro de 1946, e o operário metalúrgico José de Sousa Coelho, que deu entrada no Tarrafal a 29 de outubro de 1936 e sairá a 10 de Fevereiro de 1945. Conhece de nome apenas mais quatro ou cinco deportados. Considera que a sua prisão é um engano e uma injustiça, pois nem sequer foi julgado. Escreve cartas de apelo às autoridades civis e religiosas de então. Não obtém resposta. Apenas o castigo de conhecer durante vários dias a " frigideira".
Ao fim de 3 anos e meio de cativeiro, sem julgamento, regressa do “Campo da morte lenta” em 20 de Fevereiro de 1945 (1). Vai residir para o Porto e fica impedido de sair do país. Dedica-se à tradução e à docência. Em 1946, casa com Lucília Branca Dias, natural do Porto, professora de Educação Musical em vários liceus do Porto e Chaves. Em 1948, nasce a única filha do casal, Lucília Dias Rodrigues. Vive com a família em Matosinhos, durante alguns anos. Regressa ao Porto e vai residir para a Rua de Santa Catarina. Lecciona Filosofia e Línguas na Escola Comercial Oliveira Martins, no Liceu Nacional de Chaves, no Instituto Francês e em vários Colégios particulares. Liga-se a várias colectividades, entre as quais a Associação de Jornalistas e Homens do Porto, à Liga Portuguesa de Profilaxia Social , onde trabalhou com o Dr. António Emílio de Magalhães em vários projectos, um dos quais era acabar com o "hábito" de andar descalço. Em 1958, apoia a candidatura do General Humberto Delgado. Vai esperá-lo à estação de S.Bento, e é um dos que o carrega em ombros .
Nas décadas de 50 e 60, publica vários livros, em edição de autor, com o pseudónimo Oryam. Memórias (1950) e Cântico de Oryam contam experiências vividas por ele (3). Recebe um prémio literário pela União de Autores Latinos.
Em 1974, adoece e pouco usufrui do tempo em Liberdade. Organiza tudo o que tinha escrito, há muito, sobre o Tarrafal e a 3 de Julho, em edição de autor, finalmente pode publicar a sua obra mais importante e escondida durante décadas: "Tarrafal aldeia da morte | O diário da B5”. É um dos primeiros livros publicados sobre o campo de concentração. Trata-se de um relato na primeira pessoa, em 327 páginas, de uma obra ilustrada. Nesse ano, a obra tem mais duas edições, pela Brasília Editora (2) e recebe o Prémio Literário " 25 de Abril" para Ensaio Político, na Feira do Livro do Porto. Anuncia a publicação de mais três livros, que não chegarão ao prelo, devido ao seu estado de saúde. Mas publica ainda " Socialismo em Liberdade", em 1975.
Considerado um homem bondoso e simples, os últimos anos de vida passa-os doente e cego, mas “conservou sempre o aprumo que lhe tinham querido roubar nas prisões fascistas”. Morre no Porto, a 28 de setembro de 1977, tão anónimo e tão discreto como viveu (4).
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2 - Depoimentos:
Por Antónia Gato
«Manuel Francisco Rodrigues foi um homem extraordinário. A sua obra “Tarrafal Aldeia da Morte - o diário da B5”, é a melhor obra sobre o Campo do Tarrafal. Anarca-cristão tolstoiano, trabalhou como repórter, professor, tradutor de línguas estrangeiras e autor de várias obras literárias onde se apresenta ao público com o pseudónimo de Oryam. Integrado no movimento anarquista, casou em Espanha com a filha de José Rodrigues Reboredo e combateu como voluntário na guerra civil contra os franquistas.
Acompanhado pela família atravessou os Pirenéus e refugiou-se em França mas acabou por conhecer a dureza dos campos de concentração de Argelès-Sur-Mer; Saint-Cyprien e Gurs. Em dezembro de 1940 regressa a Portugal e, juntamente com o sogro, é detido e posteriormente deportado para o Tarrafal " -
In: Tese de Doutoramento de Antónia Maria Gato Pinto, TARRAFAL: RESISTIR COMO PROMESSA - O poder de transformar uma experiência de opressão numa história de grandeza. In: file:///C:/Users/Utilizador/Downloads/CCT.pdf
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Por Diana Cortez:
"Manuel Francisco Rodrigues era meu vizinho. Tinha uma sala cheia de livros, tantos que chegavam ao tecto. Estava cego, já não os lia... Passava os dias de sol no quintal, à sombra da japoneira e os restantes em casa a ouvir música clássica. Às vezes pedia-me que lhe lesse. Eu não entendia o que lhe lia, muito menos porque sorria quando me ouvia. Diziam ser muito inteligente mas eu não sabia porquê.
Hoje sei que era filósofo, poeta, professor e escritor, cujo pseudónimo era Oryam.
Foi perseguido por ser inteligente e ter ideais anti-fascistas, esteve detido em vários lugares, entre eles, o campo de concentração Tarrafal, onde terá vivido dias de terror."

3. Outras publicações
O Cântico de Oryam, Colecção Oryam (Nº 2) Editora: Edição do Autor, 1ª Edição, 1957, Porto – Imprensa Social Secção da Coop. do Povo Portuense.
A Ideia Venceu a Morte, Colecção Oryam (Nº 3). Edição do Autor, 1ª Edição, 1958, Porto – Tip. J. R. Gonçalves, Limitada.
Socialismo em Liberdade, 1ª ed ,1975

Notas:
(1) Chegaram ao Tarrafal sucessivas levas de presos. As primeiras ocorreram em 1936 (151 deportados) e em 1937 (57 deportados). Mais tarde, à medida que a II Guerra Mundial foi evoluindo favoravelmente para os Aliados, decresceram os números da deportação. Na sua maioria, esses presos ultrapassaram largamente as penas a que tinham sido condenados; e, por vezes, nem sequer eram julgados, funcionando o campo como um desterro sem lei, isto é, de acordo com as leis fascistas de Salazar. Em 1939 verificam-se as primeiras saídas do campo, esporádicas, mas só em 1944 se regista um movimento significativo de libertações, cerca de uma trintena. O campo, aberto em Outubro de 1936, seria fechado em 1954. Foram 36 os prisioneiros políticos que morreram no Tarrafal: 32 portugueses, 2 angolanos e 2 guineenses. Os restos mortais dos portugueses só depois do 25 de Abril puderam voltar à pátria: Em 1961, o Ministro do Ultramar Adriano Moreira reabre-o para nacionalistas africanos, com a designação de Campo de Trabalho de Chão Bom.
(2) Excertos da sua obra "Tarrafal aldeia da morte":
«Quando os primeiros deportados chegaram, encontraram pedregulhos, vento, calor e mosquitos. Então ainda não havia as casernas, nem o «Posto de Socorros», nem a cozinha, nem as oficinas. Tudo isso se fez depois. O que havia já era o arame farpado e a água do poço. Fizeram umas toscas barracas de lona e, passados alguns meses, morreram os primeiros oito reclusos... Só num dia morreram três... depois mais três... e mais dois... Os cadáveres foram transportados a pau e corda para o cemitério. Então ainda não havia o luxo da camioneta. (,,) Depois, abriu-se a pedreira e mandou-se fazer uma marreta que pesava uma arroba. Sob os raios quentíssimos do sol, os forçados arrancavam e transportavam a pedra e, em longa e interminável fileira custodiada por soldados negros, acarretavam a água do poço para as necessidades do povo da aldeia. Quando um escravo caía, vítima do paludismo mortífero, outro era imediatamente escolhido para o substituir. E, depois, como se tudo isso não bastasse, construíu-se a célebre «Frigideira»...isto é: -a antecâmara do cemitério. A «Frigideira» é um bloco de cimento, dentro do qual há um orifício onde emparedam os reclusos que caem na desgraça de não agradar aos que estabelecem as ordens.
(…) Sob a acção do sol, a temperatura vai subindo dentro do buraco... sobe... sobe... sobe!... O desgraçado ou desgraçados que lá estão vão suando... suando... até ficarem cozidos e depois assados. É claro que, submetidos a esse tratamento, morrem muito mais depressa, sobretudo quando o ingresso no buraco se faz ao som das chicotadas do cavalo- marinho rasgando as costas dos condenado, às quais se seguem os consagrados rigores do jejum periódico forçado.»
(3) Catalogado na Livraria Fernando Sanos em Filosofia, em 244 páginas e com a descrição: «10.000 kms através da Europa. – A aldeia vegetariano-tolstoiana de Orienburg. – A lição dos Três Profetas na maravilha nevada do Wildhorn sobre o Homem e o Universo. – O país do sol da meia-noite, o acampamento de Krishnamurti e o ocaso de Viena de Áustria. – Franz Korscnher e Stefan Zweig. – A Academia de Estudos filosóficos fundada por Anakreon no oásis grego de Zágora».
(4) «Quando o conheci era um velho no limite da resistência humana, deixara em vários cativeiros o vigor, a força e a vontade férrea que sempre o tinham animado. (…) Da vida que dedicou à Paz no mundo restam apenas, além dos seus livros, recordações mais ou menos vagas daqueles que o conheceram. (…) Se continuarmos assim, esquecendo ou minimizando, de ânimo leve, Homens de tal envergadura, o “dia em que soará na terra a hora da fraternidade, da Paz justa e sincera” estará cada vez mais longe e, em breve, estaremos de novo envoltos nessa paz podre e vergonhosa de que tão dificilmente nos libertámos» - Sílvia Barata Gonçalves da Silva (Rio Tinto) em “Tribuna Livre”, 27 Maio 1979.
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Fontes:
- ANTT Registo Geral dos Presos nº 12946
https://www.livrariafernandosantos.com/.../memorias-de.../
http://im-parcial.blogspot.com/.../tarrafal-aldeia-da...
https://seculopassadolivros.com/.../a-ideia-venceu-a.../
http://media.diariocoimbra.pt/.../55b02a81-e5dc-469e-9676...;
https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4820829
- Tribuna Livre (secção de jornal não identificado) – artigo de Sílvia Barata Gonçalves da Siva, em homenagem a Manuel Francisco Rodrigues
- Correspondência de MFR com leitores das suas obras.
Informações da filha, Lucília Dias Rodrigues, Diana Cortez e da investigadora Antónia Gato Pinto. 

aqui: https://www.facebook.com/FascismoNuncaMais/photos/a.559109110865139/2332024566906909/

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26
Fev23

Encontro de Informação Alternativa em Coimbra: consolidar relacionamentos entre vários projectos informativos alternativos no espaço ibérico


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Há 7 anos, nos dias 25 e 26 de fevereiro de 2016, realizava-se em Coimbra um Encontro de Informação Alternativa promovido pela Rede de Informação Alternativa, constituída em Portugal em Outubro de 2015, num encontro realizado no Alentejo, e que juntava o Indymedia Portugal, o Jornal Mapa, o Portal Anarquista e a Guilhotina.info, e para o qual foram convidados os órgãos de informação alternativos do Estado Espanhol  La Directa, Periódico Diagonal (agora El Salto) e Radio Vallekas.

O encontro teve o apoio de várias repúblicas estudantis ( Ninho dos Matulões, Solar dos Kapangas e Rosa Luxemburgo, bem como do Ateneu de Coimbra) e permitiu abordar diversas questões como a da arquitectura financeira destes canais de informação, a criação de uma rádio e a definição de formas de colaboração mais específicas do que até então.

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A Rede Portuguesa de Informação Alternativa funcionou durante vários anos, existindo ainda hoje uma relação próxima entre estas plataformas informativas. O Indymedia cessou a partilha de informações há alguns anos e serve hoje de plataforma para a Radio Paralelo, que utiliza o seu endereço electrónico; a Guilhotina.info viu reduzida a sua actividade após o seu sítio no Facebook (com cerca de 30 mil seguidores) ter sido clonado e é hoje um sítio de jogos, obrigando a guilhotina a criar outra página; o jornal MAPA e o Portal Anarquista mantêm-se praticamente inalterados. Foi (é) uma experiência interessante de partilha de experiências e procura de novos paradigmas comunicacionais ao nível ibérico.

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Reunião onde foi criada a Rede de Informação Alternativa (Alentejo, outubro de 2015)

No mês de Outubro de 2015 tinha-se realizado  uma primeira reunião no Alentejo, em que participou uma companheira de Madrid que abordou a questão das ferramentas informáticas ao dispor dos projectos de informação alternativos, Nessa mesma reunião, foi decidido  criar a Rede de Informação Alternativa – de que o Portal Anarquista faz parte desde a primeira hora – e realizar. meses depois, o encontro em Coimbra.  

No verão de 2016 o Portal Anarquista entrevistou os diversos colectivos que integravam a Rede de Informação Alternativa. Eis as respostas:

jornal MAPA: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2016/08/26/jornal-mapa-a-comunicacao-social-alternativa-deve-ter-a-capacidade-de-por-em-contacto-as-diferentes-formas-de-lutar-e-criar/

pt.Indymedia: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2016/08/28/pt-indymedia-a-social-democracia-da-troika-costa-catarina-jeronimo-e-ainda-um-momento-do-capitalismo/

guilhotina.info: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2016/08/27/guilhotina-info-de-nada-vale-ser-um-puritano-conceptual-e-um-inutil-na-pratica/

portal anarquista: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2016/08/29/portal-anarquistaa-desilusao-com-o-actual-sistema-politico-vai-trazer-mais-gente-para-o-campo-libertario/

Foi uma experiência interessante, em que estes projetos de informação alternativa colaboraram de forma diversa, mas empenhada, e em que a colaboração ainda hoje, em muitos casos, se mantém.

relacionado: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2016/02/17/coimbra-encontro-de-informacao-alternativa-a-25-e-26-de-fevereiro/

https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2016/02/27/informacao-alternativa-portuguesa-e-do-estado-espanhol-reunida-em-coimbra/

23
Fev23

"A Batalha": de diário sindicalista revolucionário à clandestinidade e, depois, à transformação em jornal de "expressão anarquista"


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A 23 de fevereiro de 1919 era publicado o 1º numero do jornal sindicalista revolucionário "A Batalha", tornando-se posteriormente o orgão da CGT, anarcosindicalista, publicando-se diariamente. Sofreu sucessivas proibições e uma forte repressão que levou ao seu encerramento em 26 de maio de 1927, depois da destruição das suas instalações.
Reapareceu em 1930, como semanário, sendo suspenso, proibido pelo governo, ao fim de 13 números.
Começou depois a publicar-se de forma clandestina até Dezembro de 1949.
Reaparece depois do 25 de Abril de 1974 (em Setembro desse ano) pela mão de um conjunto de antigos e novos militantes libertários, tendo Emidio Santana como director.
O investigador do movimento anarquista João Freire traçava assim, na revista A Ideia (outono de 2019) o percuso deste "jornal centenário & com muita história":
"(...) O movimento operário de então fugia dos partidos, dos caudilhos, das eleições e dos debates parlamentares “como o diabo da cruz”. O partido socialista de Fontana e de Antero não lograra enquadrar os operários e os assalariados do campo naquele modelo de social-democracia que vingara na Alemanha, na Grã-Bretanha ou na Bélgica, entre outros países mais adiantados. O “bolchevismo” ainda estava para nascer entre nós. E a República logo desiludira as massas laboriosas com o seu “decreto burla” igualando liberalmente a greve e o lock-out, com o espingardeamento dos conserveiros de Setúbal e a desatenção às reivindicações dos trabalhadores rurais alentejanos.
Para os militantes da causa operária, além da multiplicidade de órgãos de imprensa sindicais e de grupos anarquistas ou das actividades realizadas nas (ou a partir das) suas sedes, urgia a criação de um grande veículo informativo e propagandístico das suas insatisfações, realizações e objectivos. Já o haviam tentado em 1908 com o diário A Greve, mas que muito pouco durara. Após a queda da Monarquia, o tipógrafo Alexandre Vieira conseguira pôr de pé o semanário O Sindicalista, que se aguentou razoavelmente bem, apesar das perseguições a que foi sujeito, sobretudo a partir de 1913 com o governo de Afonso Costa.
Os anos da guerra foram difíceis para o movimento sindical mas, fazendo das fraquezas forças, foi a partir daí que a acção colectiva dos trabalhadores se reacendeu, as organizações se multiplicaram, os efectivos aderentes incharam e as perspectivas de uma nova época – de Revolução Social – insuflaram de ânimo muitos activistas, também embalados pelo exemplo vindo da Rússia, que aqui ia chegando.
Foi num momento único e particularmente convergente de vontades e ideias que, a 23 de Fevereiro de 1919, saiu à rua o primeiro número de 'A Batalha', subtitulado de «diário da manhã, porta-voz da organização operária portuguesa», sob a chefia redactorial do mesmo Alexandre Vieira e referido como «diário de grande tiragem e expansão».

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Jornal A Batalha, cabeçalho desenhado por Perfeito de Carvalho.

Ocorre lembrar que o desenho gráfico do cabeçalho de A Batalha foi desenhado pelo tipógrafo Francisco Perfeito de Carvalho, um patusco estroina que (segundo contam seus contemporâneos) tendo sido designado pela CGT para ir representá-la a um congresso da Internacional Sindical Vermelha, em Moscovo, gastou boa parte do dinheiro então recebido… em Paris! E quando no Congresso Operário de 1922, na Covilhã, deu conta
dessa missão mas os delegados o pressionavam para que apresentasse o devido relatório, em papel, ele terá respondido/perguntado se queriam que o escrevesse… em verso!?
Até Maio de 1927, produzir diariamente um jornal de 4 a 8 páginas em grande formato, com base no voluntariado de quase toda a redacção, de uma parte do quadro de compositores tipográficos e da integralidade dos seus correspondentes e difusores da província, foi uma obra homérica, pode dizer-se. Chegou a afirmar-se que A Batalha atingira o terceiro posto nacional em termos de tiragem, atrás d’ O Século e do Diário de Notícias. É duvidoso que assim tenha sido, à luz do que investigou Jacinto Baptista para o seu inesquecível livro 'Surgindo vem ao longe a nova aurora…' (Bertrand, 1977) e das memórias deixadas por Manuel Joaquim de Sousa em 'Últimos Tempos de Acção Sindical Livre e do Anarquismo Militante' (Antígona, 1989). Mas, em qualquer caso, foi sempre de vários milhares – talvez dez mil, em média, quando o habitual para os “semanários de ideias” era de uns três mil – o número de exemplares postos diariamente em circulação. E nenhum outro dos seus confrades da imprensa sofreu tão largas perseguições do poder político como A Batalha, através de suspensões administrativas e de outras manobras de intromissão governamental na liberdade de opinião republicana!...
A partir de 1923, o descanso semanal dos tipógrafos ao domingo era aproveitado para que, às segundas-feiras, saísse um «Suplemento Literário e Ilustrado», composto ao longo da semana precedente e – como as edições normais – impresso em casa comercial alheia situada na Rua da Atalaia, no mesmo bairro da Calçada do Combro onde (no imponente palácio dos condes de Castro Marim e Olhão, dito do Correio Geral, que foi tomado de aluguer) funcionava a redacção do jornal e uma parte significativa dos organismos sindicalistas então existentes na capital. Mas, para se ter uma ideia do espírito militante reinante, bastará dizer que um jornalista profissional como Pinto Quartim e que ali colaborava activamente nas horas de folga, escrevia directamente os seus artigos ao componedor, o aparelho manual onde então se fazia a composição tipográfica a chumbo, na ausência das modernas e semi-automáticas máquinas “Linotype”.
Diga-se, num parêntesis, que questões laborais deste tipo – porém, dentro das conflituosas relações entre patrões e assalariados – foram as que originaram em 1927 uma cena cómica e tumultuosa entre o conceituado tipógrafo Alexandre Vieira e o cultivado dr. Fidelino de Figueiredo, então director da Biblioteca Nacional, sita ao Chiado. A uma ofensa verbal deste último, respondeu o primeiro com dois murros, levando uma chapada de resposta que lhe despejou os óculos e feriu no nariz, tudo terminando com o balanceamento do tinteiro de bronze pousado na secretária à cabeça do chefe e a chegada em força do pessoal de segurança da instituição!
Mas continuemos. O sucesso editorial do diário foi tão grande que, em breve, a sua actividade se alargou à publicação de alguns livros e brochuras (por exemplo, a colecção A Novela Vermelha) e, em 1925, à edição quinzenal de uma boa revista-magazine, intitulada Renovação. Tanto este último título como o «Suplemento» podem hoje ser visitados on line (no site http://ric.slhi.pt/)
Com isto, a editorial d’A Batalha angariou a participação graciosa de várias boas plumas, artistas gráficos e intelectuais, já que ali o único colaborador remunerado era o director, por desempenhar a função em exclusividade, e que, por prurido anti-autoritário, era apenas chamado de redactor-principal. Mas personalidades significativas do meio cultural da época como Ferreira de Castro, Assis Esperança, Eduardo Frias, Sá Pereira, Nogueira de Brito, Bento Faria, Manuel Ribeiro, Carvalhão Duarte, Francine Benoit, Rocha Martins, Arnaldo Brazão, Tomás da Fonseca, Cristiano Lima, Jaime Brasil, Julião Quintinha, Ladislau Batalha, Mário Domingues, Adelaide Cabette, Adolfo Lima, Vitorino Nemésio, Roberto Nobre ou Stuart Carvalhaes deixaram o seu nome ali gravado, contribuindo para a qualidade e reputação destas produções. 
Como todas as obras colectivas do labor humano, nem tudo foi sempre isento de querelas e conflitos intestinos. Críticas pessoais e políticas subiram por vezes até às páginas do jornal. O confronto ideológico entre anarquistas e comunistas tornou-se estrutural. E, frequentemente, houve atritos e dificuldades entre a redacção do diário e os órgãos de topo da Confederação Geral do Trabalho, de que era o “órgão oficial” na imprensa.
Já sob a Ditadura Militar e na sequência do levantamento armado de Fevereiro de 1927, a polícia política (e parece que também energúmenos seus adjuntos) desembarca em força na redacção do jornal num dia de maio seguinte, prende quem lá está e destrói mobiliário e material tipográfico. O jornal é suspenso sine die e, legalmente, só reaparecerá fugazmente em 1930 como semanário e já sem a referência da sua ligação à CGT. Mas o militantismo anarco-sindicalista sempre se empenhou em prosseguir a sua publicação, de modo clandestino. Assim aconteceu em séries sucessivas em 1934, em 1935-37 e em 1947-49. E foram várias as tipografias secretas que funcionaram para o imprimir (no Pote d’Água, na Ramada, na Rua Carvalho Araújo, na Damasceno Monteiro, numa furna de Monsanto, etc.), sempre com camaradas tipógrafos a arriscarem a sua liberdade para que fosse feito, chegando a sua inventiva à construção de prelos em madeira (para o ruído não alertar a vizinhança) e ao requinte técnico de terem conseguido uma impressão a duas cores, naturalmente o preto e o vermelho.
Após o 25 de Abril de 1974, Emídio Santana, que já fora seu responsável nos anos 30, assume claramente a iniciativa da sua republicação legal e regular, que tem prosseguido até hoje (vai no nº 283 desta VI série, creio), embora com periodicidades oscilando entre o quinzenal e o trimestral, e tiragens modestas, semelhantes às de outros jornais de pequenas minorias políticas. Inicialmente assumiu-se formalmente, no frontispício, como «Jornal sindicalista revolucionário», que em Agosto de 1975 alterou para “Jornal anarco-sindicalista”, uma designação que deixou de ostentar em Agosto de 1983, mas sempre mantendo até hoje a menção de «Antigo órgão da CGT». Em Fevereiro de 1989, na retoma de publicação depois do falecimento do seu carismático director, passou a ser «Jornal de expressão anarquista».
Apesar da dimensão grupal-associativa que a existência d’A Batalha sempre implicou, vale a pena registar os nomes dos seus sucessivos responsáveis editoriais, cuja importância bem se compreende: Alexandre Vieira, Manuel Joaquim de Sousa, Manuel da Silva Campos, José da Silva Santos Arranha, Mário dos Santos Castelhano, Emídio Santana, José Maria Carvalho Ferreira, Moisés Silva Ramos, Maria Magos Jorge, João Santiago e António da Cruz. " (João Freire, A BATALHA UM JORNAL CENTENÁRIO & COM MUITA HISTÓRIA, A Ideia, Outono de 2019, pgs. 150-154)
 

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Último número de A Batalha clandestina, dezembro de 1949

Na mesma edição da revista A Ideia, é publicado um texto de Emidio Santana com o historial de A Batalha e das várias e sucessivas séries do jornal: 
 
"DA HISTÓRIA D’ A BATALHA, segundo Emídio Santana 
Existe no Arquivo Histórico-Social da BNP (AHS 5500 Ms 1496) um impresso dactilografado não assinado mas que se sabe ser da autoria do então director do jornal A Batalha, Emídio Santana, e com o seguinte título «A vida do jornal sindicalista “A Batalha” na fase de clandestinidade durante o período do salazarismo, 1927-1974». O texto está localizado de Lisboa e tem duas datas (12 e 17 de Setembro de 1980).
Trata-se duma breve síntese da vida do jornal, desde o seu nascimento em 1919 até à data do texto, Setembro de 1980, porventura para ser divulgada junto da imprensa, de agências noticiosas ou em folha autónoma.
Destacam-se nele as violências policiais a que o jornal foi sujeito e as dificuldades impostas por que passou desde os primeiros anos, ainda durante o período republicano, muito agravadas depois, durante o período da ditadura e do autodesignado Estado Novo. Para publicação, normalizou-se a citação do título das publicações referidas no texto, passando-as de redondo para itálico e de caixa alta para caixa baixa,
desfizeram-se alguns parágrafos para melhor agrupar o texto e corrigiram-se alguns erros evidentes (concordâncias, pontuação, falta dalguma palavra) de modo a tornar o texto mais acessível ao leitor de hoje. Um agradecimento é devido a Paulo Guimarães pela descoberta e selecção do documento.
"A Batalha, jornal diário e órgão da Confederação Geral do Trabalho começou a publicar-se em Lisboa a 23 de Fevereiro de 1919, sob a direcção de Alexandre Vieira, e continuou a publicarse diariamente, sem interrupção, apenas com acidentes de apreensão policial ou assaltos da mesma polícia à sua redacção, até ao n.º 2556, de 26 de Maio de 1927, data em que foi interditado pelo governo militar e as suas instalações destruídas pela polícia. Era ao tempo seu director Mário Castelhano e editor Silvino Noronha. No ano da sua suspensão publicaram-se quatro (4) números do Boletim Operário, editados pelo Comité Confederal da CGT.
Para suprir a sua falta e contornando a arbitrariedade do governo iniciou-se no Porto, a 29 de Setembro de 1929, o semanário A Vanguarda Operária, editado pela Delegação Confederal do Norte, embora já numa certa clandestinidade, como órgão dos Trabalhadores Portugueses,
tendo como director Zacarias de Lima e depois José Augusto de Castro, e como Administrador Francisco Ferrão.
Em Setembro de 1930 reaparece A Batalha como semanário, autorizado legalmente, assim identificada: II Série, como órgão da Comissão Interfederal de Defesa dos Trabalhadores, designação pública sob a qual se ocultava a CGT.
Editor: Alberto Dias e Administrador: Domingos Afonso Ribeiro. Redacção na Calçada Castelo Branco Saraiva, nº 42, e impresso na Rua da Atalaia, n.º 114, onde sempre fora impresso quando jornal diário. Começou a publicar-se em 13 de Setembro de 1930 e publicaram-se 13 números,
interrompendo a sua publicação por interdição do governo.
III Série, já clandestina. O n.º 1 tem a data de Abril de 1934 e publicaram-se dois (2) números devido às numerosas prisões na repressão do 18 de Janeiro. Estes números tinham o fim de reconstruir o movimento fortemente atingido pelas prisões que decorreram nesta fase.
IV Série, Ano XVI, 1935. Os números 1, 2 e 3 desta série, relativos a Março, Abril e Junho, foram compostos e impressos numa tipografia montada no subsolo duma cave na Rua Carvalho Araújo, e a máquina era construída parte em madeira e outra parte, a mecânica, em ferro, no processo das máquinas de impressão rotativas. Por precaução a tipografia foi transferida para a Venda Nova, à saída de Benfica. Mas o n.º 4, da mesma série, ano XVII, não saiu numerado e destinava-se a assinalar o 1.º de Maio desse ano, 1936, e foi composto de emergência numa oficina de Campo de Ourique do companheiro Avelino.
IV Série, Ano XVIII, 1937. Os números 5, 6 e 7, correspondentes a Janeiro, Fevereiro e Abril eram impressos a preto. Os números 8, 9, 10 e 11 correspondentes, respectivamente, a Maio, Junho, Julho e Setembro saíram impressos a preto e o cabeçalho ou «en-têtes» a vermelho. Publicava-se com 4 páginas e no formato de 40 X 30 cm. Esta série foi composta e impressa numa furna de Monsanto com entrada pela Rua Feliciano de Sousa, a Alcântara, e acompanhou o período agudo da guerra de Espanha, o período de maior repressão fascista.
V Série, Ano XXIX, 1947. Publicaram-se 10 números até Agosto deste ano. Mesma série, Ano XXX, 1948. Os números 11 e 12 correspondem a Novembro e Dezembro deste ano. Mesma série, Ano XXXI, 1949. Os números 13, 14 e 15 correspondem a Janeiro, Fevereiro e Abril. Mesma série. Ano XXXI, 1949. Publicaram-se os números 16, 17, 18, 19, 20 e 21, respectivamente de Maio, Junho, Julho, Agosto, Novembro e Dezembro deste ano.
Durante a publicação de A Batalha como jornal diário registaram-se várias perseguições, atentados à sua liberdade de publicação e variadas violências registadas numa elementar estatística:
Prisão de toda a redacção, em 1919, 1920 e 1921... 3 vezes
Encerramento da redacção e tipografia, nos mesmos anos...3 vezes
Não se publicou por o seu quadro tipográfico e redactorial se ter solidarizado com greves de protesto... 2 vezes
Submetida ao regime de censura prévia... 7 vezes
Apreensão pela polícia...11 vezes
Atrasos de saída por acção policial... 4 vezes
Assaltos da polícia à redacção... 7 vezes
Suspensa por acção policial... 5 vezes
Buscas à sede... 3 vezes
Processo em tribunal... 2 vezes
Condenação em tribunal... 1 vez
A BATALHA APÓS O 25 DE ABRIL
Em Setembro de 1974, reaparece como quinzenário. Indicada como Ano 1, Quarta Série, n.º 1. Esta série corresponde à VI Série, posteriormente corrigida e [presentemente] no ano VI correspondente a esta fase. Publica-se no formato normal dos jornais. Normalmente a 4 páginas, com o cabeçalho tradicional, a vermelho. É director Emídio Santana e é redigido por um colectivo redactorial de vários componentes. Presentemente está no n.º 65." (Manuscrito de Emídio Santana, A Ideia, Outono de 2019, pgs. 155-158)
 
13
Fev23

(1975) Portugal, base de apoio para os militantes espanhóis anti-franquistas


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Quando se deu o 25 de Abril de 1974 em Portugal, ainda Espanha vivia sob o franquismo e toda a actividade politica e social era fortemente reprimida. Durante os meses que se estenderam até à morte de Franco (Novembro de 1975) e depois à "abertura" politica e social no país vizinho que ainda levou vários anos - o primeiro comício público da CNT, pós Franco, apenas se realizou em Março de 1977, nos arredores de Madrid -, Portugal foi usado como espaço de retarguarda para muitos activistas das várias regiões de Espanha, entre eles muitos libertários - bascos, catalães, galegos, andaluzes, madrilenos. O incipiente movimento libertário português acolheu-os sempre que pôde, estabeleceu relações de companheirismo e deu a ajuda possível, servindo em muitos casos de abrigo temporário para militantes perseguidos pelas autoridades espanholas, nomeadamente aquando do caso "Scala" ( aqui também), em Barcelona, em Janeiro de 1978, numa operação montada pela polícia espanhola para destruir o movimento anarquista catalão e a CNT, durante a qual muitos militantes foram perseguidos e tiveram que procurar apoio externo.

Outros agiam por sua conta e risco, trazendo para Portugal métodos de luta contra empresas espanholas, tentando apressar o fim da ditadura. É neste campo que se insere o incêndio de três autocarros de uma empresa espanhola, em Lisboa, em Janeiro de 1975, em que foi presa uma cidadã espanhola que, casualmente, por ali passava e que não tinha a ver com aquela acção, reinvindicada, em comunicado, que publicamos acima, por um "comando" anarquista.

Documento aqui: https://1969revolucaoressaca.blogspot.com/search/label/Corrente%20Anarquista

05
Fev23

Há 10 anos realizou-se em Coimbra o II Encontro Nacional de Assembleias Populares


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Há 10 anos, nos dias 2 e 3 de fevereiro de 2013, realizou-se em Coimbra o II Encontro de Assembleias Populares reunindo diversos membros de colectivos de Coimbra, Lisboa, Évora, Santarém, Galiza, Madrid e Barcelona.

Este encontro aconteceu num momento em que o movimento de ocupação das praças e acampadas estava já em queda, mas em que ainda persistia um forte espírito de solidariedade e de necessidade de sair para as ruas e, de forma presencial, marcar a ocupação de espaços, muito na lógica do Occupy Wall Street, nos Estados Unidos.

Na altura o Portal Anarquista noticiava que "está reunido este fim de semana em Coimbra o II Encontro de Assembleias Populares. Presentes elementos que têm integrado as Assembleias Populares de Coimbra, da Graça (Lisboa), Santarém, Indignados de Lisboa, duas pessoas que têm estado ligadas às acções de rua em Évora, vários elementos do 15M espanhol, da Galiza, Madrid e Barcelona e vários militantes que não estão organizados em qualquer colectivo. (...) No debate deste sábado à tarde foram discutidas questões importantes como o balanço de cada uma destas Assembleias Populares, as iniciativas em carteira, a desmobilização que tem vindo a acontecer, a necessidade de manter o movimento autónomo dos partidos políticos e das grandes estruturas sindicais, o imperioso que é construir uma rede a nível nacional e ibérico. Foram levantadas questões – e isso é, só por si, muito importante! Como importante tem sido por todos a reafirmação de valores e instrumentos de acção como a democracia directa, a autogestão, a acção directa, a desobediência civil e a entreajuda. A recusa da política partidária e a autonomia face à actuação do Estado.(...)".

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Também no número seguinte do boletim Acção Directa (nº 4, Fev. 2013), podia-se ler: 

"O Colectivo Libertário de Évora esteve presente no II Encontro de Assembleias Populares realizado em Coimbra nos dias 2 e 3 de Fevereiro. Foi um encontro importante em que diversos elementos de colectivos de base de todo o país estiveram reunidos numa troca muito positiva de experiências.

Participaram nesta iniciativa companheiros dos Indignados de Lisboa, Assembleia Popular da Graça, Assembleia Popular de Coimbra, Assembleia Popular de Évora, Assembleia Popular de Santarém , a plataforma antimilitarista PAGAN, vários colectivos espanhóis , entre os quais a Asamblea Aberta de Compostela, a Comisión Internacional de Barcelona, a Comisión de Comunicación de Madrid e o colectivo People Witness, além de outros elementos a título individual que integram grupos horizontais e assembleários.

O Encontro começou no sábado, dia 2, com uma breve ronda de apresentação das pessoas e dos colectivos presentes. Cada um expôs o trabalho já realizado, assim como os projectos em marcha. Para além disso, analisaram-se os problemas e os obstáculos existentes. A seguir formaram-se grupos de trabalho para aprofundar o debate em torno de três eixos principais: alternativas e soluções para os problemas identificados (tanto quanto a acções como a metodologia de funcionamento), construção de ferramentas de comunicação interna e externa e articulação com outros colectivos e movimentos sociais. À noite abordou-se a temática em torno das ocupações, através da projecção dos documentários sobre as experiências de São Lázaro 94, em Lisboa, e da Es.Col.A da Fontinha, no Porto.

No domingo, dia 3, expuseram-se as ideias surgidas nos grupos de trabalho. A tarde foi dedicada à realização de uma oficina sobre a criação de ferramentas web de comunicação, com uma aplicação prática no contexto do Encontro ao desenvolver estruturas para a existência de uma comunicação fluída entre os/as participantes.

A Assembleia Popular de Coimbra exerceu uma vez mais o seu papel de anfitriã, organizando uma cozinha comunitária e facilitando o alojamento através de uma rede de “Repúblicas” da cidade. Houve também tempo para a abertura de outros debates e para o estabelecimento de relações
informais, cumprindo o objectivo transversal do Encontro: a criação de redes interassembleárias para uma maior coordenação.
R. (com C. da Assembleia Popular da Graça)"

 

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O I Encontro tinha-se realizado um ano antes, em Janeiro de 2012, também em Coimbra.
 
"No dia 14 de Janeiro de 2012, activistas integrados ou não em várias assembleias populares e colectivos reuniram-se num Encontro Nacional de Assembleias Populares, em Coimbra, para partilhar experiências, debater ideias e formas de intervenção na sociedade.
Deste encontro saiu a vontade de reforçar a comunicação e cooperação entre os vários grupos.
Foi consensual entre as pessoas presentes a participação numa mobilização internacional a 12 de Maio. Esta proposta vai ser levada à discussão nas várias assembleias populares e colectivos, bem como em todos os grupos que se queiram juntar.
Como conclusão, apelou-se:

– à formação de novas Assembleias Populares,
– à auto-organização da população e
– à realização de novos encontros." (aqui)

Também aqui: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2013/01/30/2o-encontro-de-assembleias-populares-realiza-se-este-fim-de-semana-em-coimbra/

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04
Fev23

4 de fevereiro de 1977: manifestação anarquista no Rossio pela libertação do português João Freire, preso em Barcelona numa reunião da FAI


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Arquivo Portal Anarquista

Em Janeiro de 1977, quando em Espanha o movimento anarquista e anarcosindicalista se tentava reorganizar, depois da morte de Franco, já na chamada "transição", uma reunião da FAI, em Barcelona, foi interrompida pela polícia e os participantes presos. Entre eles, em representação da FARP (Federação Anarquista da Região Portuguesa), estava João Freire (1), que conta detalhadamente este episódio no seu livro autobiográfico "Pessoa Comum no seu tempo", (pgs. 453-459).

Informados da prisão de João Freire, alguns dos grupos constituintes da FARP defenderam que deviam tomar posição sobre esta prisão e comvocaram um protesto público, no Rossio, para 4 de Fevereiro, quase uma semana depois das prisões, que tinham acontecido no domingo anterior, 30 de janeiro.

A convocatória da manifestação refere que "ao contrário do que os órgãos de informação têm propalado, foi preso no passado domingo um anarquista português: João Freire, ex-exilado em França do regime salazarista. Simultaneamente, é encarcerado em toda a Espanha um elevado número daqueles que se opõem à paz podre do Sr. Suarez e dos seus avalizadores ocidentais".

E acrescenta: "Nós, que não somos discretos nem tememos as repercussões políticas dos escândalos diplomáticos, não abdicamos de nos solidarizarmos com o nosso companheiro e com as demais vítimas da repressão".

Conclui ainda o comunicado. "Assim, apelamos a todos os revolucionários a participarem num movimento de solidariedade, o mais amplo possível, que se inicia hoje às 19 horas, com uma manifestação no Rossio.

PELA LIBERTAÇÃO DE JOÃO FREIRE E DE TODOS OS PRESOS ENCARCERADOS NAS MASMORRAS ESPANHOLAS!

NÃO ÀS PSEUDO-LIBERALIZAÇÕES, SIM À REVOLUÇÃO SOCIAL!"

Assinam a convocatória os grupos anarquistas Acção Directa, A Ferro e Fogo, Lanterna Negra, Os Solidários, Liberdade, Núcleo de Intervenção Anarquista e Indivíduos Anarquistas.

Sobre a manifestação (em que não esteve presente) também se referiu João Freire no livro atrás citado, diminuindo a dimensão da solidariedade então manifestada e reduzindo-a a uma caricatura. Para a manifestação não foi pedida autorização e, na verdade, esteve presente um grande contigente da polícia, tendo havido confrontos com alguns manifestantes, bem mais do que "a meia dúzia" referida por João Freire, na passagem que dedicou a esta manifestação na sua autobiografia.

"(...) Na FARP, as atitudes divergiram (como seria de esperar) (2). Enquanto a maior parte, preocupada, acatou sem qualquer dificuldade esta orientação, o grupo "Acção Directa" queria passar imediatamente à "agitação de rua". E foi contrafeitos que se retiveram durante alguns dias, parece que dando uma espécie de ultimato ("o mais tardar na sexta-feira..."). Assim, quando eu já sobrevoava a meseta ibérica a caminho de casa, eles estavam distribuindo panfletos na Cidade Universitária sobre o "Anarquista português preso em Espanha" e convocando uma manifestação de protesto para o fim da tarde na Praça da Figueira (sic). Disseram-me camaradas que a observaram (mas não se envolveram nela) que foi mais um triste espectáculo, com a praça cheia de polícias e meia dúzia de jovens excitados pelos slogans bombásticos do Gabriel Mourato (do tipo "Morte ao Estado e a quem o apoiar! Morte à polícia!", completamente isolados e recebendo dichotes ríspidos e mesmo ameaças dos passantes e de grupos de "retornados" que ali estacionavam ("Vão mas é lá para a Rússia...") e o "líder" espumando raiva e impotência por todos os poros!"   - João Freire, "Pessoa Comum no seu tempo", (pg. 459).

Um relato pouco preciso do que aconteceu, mas que dá conta do ambiente que já se vivia na FARP (a Acção Directa e outros grupos abandonaram mesmo a organização durante este ano) e que haveria de agravar-se com a participação de João Freire no Congresso Anarquista de Carrara, um ano depois, de que o grupo Acção Directa se dessolidarizou e criticou de forma pública e violenta as decisões ali tomadas, nomeadamente acerca da violência revolucionária, tendo a FARP sido dissolvida oficialmente em Novembro de 1979.

1) João Freire, sociólogo, professor universitário reformado. Frequentou o Colégio Militar, oficial da Armada, desertou em 1968 da guerra colonial, depois exilado político em França. Fundador da revista "A Ideia" e da FARP. Investigador sobre o anarquismo e as lutas sociais na 1ª República. Ex-anarquista. Publicou como testemunho deste afastamento dos ideais anarquistas o livro Um projecto libertário, sereno e racional (Lisboa, Colibri, 2018).

2) Segundo João Freire, o advogado que seguia o seu caso, "Joaquim Pires de Lima, com escritório em Cascais", teria aconselhado a "não levantar "burburinho público" durante uma semana, para a hipótese de as coisas se resolverem pelo melhor,; se eu não fosse libertado nesse prazo, podia então pensar-se que eu estava judicialmente em má posição (sob alguma acusação grave) e dever-se-ia agir por outros meios".

Freire, João " "Pessoa Comum no seu tempo - Memórias de um médio burguês de Lisboa na segunda metade do século XX", Edições Afrontamento, Lisboa, 2007.

 

02
Fev23

Ricardo Castelo Branco, anarquista e activista social


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A 2 de fevereiro de 2015, vitima de doença, morria Ricardo Castelo Branco, anarquista e activista social. Na sua página de facebook – rede social em que animava também uma página com informações das lutas sociais (A Luta) –  foram muitas as mensagens de pesar, de amigos e companheiros. Como esta: “Morreu o Ricardo, um dos lutadores mais acutilantes e doces que conheci. Fazia parte daquela tribo de piratinhas da FCSH (nele era quase literal) que passaram a vida a lutar, a distribuir afectos, a chegar aos encontros como se nos tivéssemos visto, discutido, sonhado juntos e abraçado na véspera. Estava doente. Estava doente outra vez. Foi demais. Ainda noticiou por aqui o regresso aos tratamentos. Mas foi demais. Querido Ricardo. A última vez que o li aqui foi num post que lançou às ondas a 8 de Janeiro: “agradecia-te que parasses de fazer merdas”. Assim, sem mais nada. E cada um que nadasse como pudesse. Bons mares, Ricardo.” (aqui)

aqui: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2015/02/02/morreu-ricardo-castelo-branco-lutador-e-activista-social/

https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2015/02/09/a-memoria-de-ricardo-castelo-branco-ate-sempre-companheiro/

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02
Fev23

Alfredo da Costa e Manuel Buiça: os dois regicidas que impulsionaram o fim da monarquia em Portugal


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No dia 1 de fevereiro de 1908 o rei D. Carlos e  o principe herdeiro Luís Filipe foram mortos no Terreiro do Paço, em Lisboa, por dois carbonários, próximos dos ideais anarquistas. Foi o principio do fim da monarquia, tendo a República sido proclamada menos de dois anos depois a 5 de outubro de 1910.

Os autores materiais do atentado foram Manuel Buiça e Alfredo da Costa, um de Trás-os-Montes, o outro do Alentejo, os dois também mortos nesse diaem consequência do atentado, embora permaneçam dúvidas acerca do verdadeiro número de implicados (entre os quais o próprio escritor Aquilino Ribeiro, na altura um jovem militante anti-monárquico).

Rapidamente os dois autores do atentados foram celebrados como heróis, dado o descrédito a que a monarquia portuguesa tinha chegado.

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Alfredo da Costa - Nasceu em Casével, filho de Manuel Luís da Costa e Maria João da Costa. Veio cedo da sua aldeia no Alentejo, no concelho de Castro Verde. Tendo aprendido as primeiras letras na sua aldeia natal começa a trabalhar como Empregado do comércio num estabelecimento que um tio seu abastado e lojista tinha estabelecido em Lisboa onde presidiu à Associação dos Empregados do Comércio de Lisboa

Torna-se mais tarde caixeiro-viajante por conta própria pois teria cortado relações com este tio correndo o país.
Sendo um autodidacta e rebelde funda em Angra do Heroísmo um jornal para defesa dos empregados do comércio, e tão bem conduziu a campanha que as suas reivindicações foram aceites e começaria a vigorar nessa ilha o repouso semanal. Nesta cidade também impulsiona o Núcleo da Juventude Anarco-Sindicalista.
Em 1903, em Estremoz, fez intensa propaganda republicana e daí começou a colaborar nos jornais de classe da capital. De entre algumas tiradas tem esta: "Se os senhores representantes da Nação mais uma vez nos votarem ao olvido, resta-nos a certeza de que os marmeleiros ainda crescem nos pauis" (escreveria ele em 1903) e "Tentar esmagá-lo (o opressor) num justificado impulso de revolta é um dever de todos nós" (dizia ainda em 1906).
Mediante um pequeno capital, emprestado por mão amiga, fundou uma pequena empresa de livraria, A Social Editora com Aquilino Ribeiro, onde foram editados alguns folhetos contra o regime. Esta encetou ainda a publicação em fascículos, distribuídos aos domicílios, do romance de índole popular, A Filha do Jardineiro (romance que através da ironia dava machadadas na carcomida árvore real de sete séculos, na empresa embrionária e mal sucedida consumiu este as suas poupanças, que não eram muitas.
 

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Manuel Buiça - Nascido em Bouçoães, Trás-os-Montes, filho do reverendo Abílio da Silva Buíça, pároco de Vinhais, e de Maria Barroso, conhecem-se-lhe duas ligações conjugais. A primeira, entre 1896 e 1898, e a segunda com Hermínia Augusta da Costa, de que resultaram dois filhos - Elvira Celeste da Costa Buíça (nascida a 19 de dezembro de 1900) e Manuel Augusto da Costa Buíça (nascido a 12 de Setembro de 1907) que, à data do regicídio tinham sete anos e cinco meses, respectivamente. Cerca de cinco meses antes do Regicídio, Manuel Buíça enviúva.
Homem de carácter expansivo e exaltado, não mantinha, no entanto, muitas ligações exteriores ao seu círculo profissional e, frequentava, com Alfredo Costa e Aquilino Ribeiro (uma das pessoas a quem legou o testamento), o Café Gelo no Rossio.
Testamento - escrito a 28 de Janeiro de 1908, quatro dias antes do regicídio, não deixa de ser um documento interessante e digno de nota:
"Manuel dos Reis da Silva Buiça, viuvo, filho de Augusto da Silva Buiça e de Maria Barroso, residente em Vinhaes, concelho de Vinhaes, districto de Bragança. Sou natural de Bouçoais, concelho de Valpassos, districto de Vila Real (Traz-os-Montes), fui casado com D.Herminia Augusta da Silva Buíça, filha do major de cavalaria (reformado) e de D. Maria de Jesus Costa. O major chama-se João Augusto da Costa, viuvo. Ficaram-me de minha mulher dois filhos, a saber: Elvira, que nasceu a 19 de dezembro de 1900, na rua de Santa Marta, número… rez do chão e que não está ainda baptisada nem registada civilmente e Manuel que nasceu a 12 de setembro de 1907 nas Escadinhas da Mouraria, número quatro, quarto andar, esquerdo e foi registado na administração do primeiro bairro de Lisboa, no dia onze de outubro do anno acima referido. Foram testemunhas do acto Albano José Correia, casado, empregado no comércio e Aquilino Ribeiro, solteiro, publicista. Ambos os meus filhos vivem commigo e com a avó materna nas Escadinhas da Mouraria, 4, 4o andar, esquerdo. Minha família vive em Vinhaes para onde se deve participar a minha morte ou o meu desapparecimento, caso se dêem. Meus filhos ficam pobrissimos; não tenho nada que lhes legar senão o meu nome e o respeito e compaixão pelos que soffrem. Peço que os eduquem nos principios da liberdade, egualdade e fraternidade que eu commungo e por causa dos quaes ficarão, porventura, em breve, orphãos. Lisboa, 28 de janeiro de 1908. Manuel dos Reis da Silva Buiça. Reconhece a minha assignatura o tabelião Motta, rua do Crucifixo, Lisboa".
Gente de carácter, claro.
30
Jan23

Manuel Firmo, uma vida de combatente anarquista: da resistência ao fascismo em Portugal à guerra civil espanhola, dos campos de concentração franceses ao Tarrafal


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Manuel Firmo durante a Guerra Civil Espanhola

Na madrugada de 30 de Janeiro (de 2005) faleceu no seu domicílio, em Barcelona, o último (tanto quanto sabemos) militante libertário que combateu na Guerra Civil da vizinha Espanha, de 1936 a 1939, e o último também dos que padeceram no campo de concentração do Tarrafal.

Manuel Firmo, o mais velho de três irmãos – todos libertários – nasceu no Barreiro a 9 de Setembro de 1909, filho dum maquinista do Caminho de Ferro do Sul e Sueste. O pai foi transferido para Faro em 1914 e foi nesta cidade que Manuel frequentou a instrução primária.

 Regressado com a família ao Barreiro em Dezembro de 1918 começou a trabalhar numa fábrica de cortiça com doze anos incompletos. Despedido em consequência duma greve, foi sucessivamente servente de pedreiro, contínuo nos escritórios da CUF (donde foi despedido por se recusar a denunciar dois colegas) e novamente operário da indústria corticeira.

 Desejoso de melhorar os seus conhecimentos frequentou a biblioteca da Associação dos Corticeiros e, posteriormente, a do Sindicato dos Ferroviários. Fez exame de admissão às Oficinas Gerais do Caminho de Ferro do Sul e Sueste onde aprendeu o ofício de serralheiro. Aprendeu Esperanto e iniciou a sua militância anarco-sindicalista.

Em 1936, estando em risco iminente de ser preso pela polícia política em virtude da sua actividade militante, fugiu para Espanha. Detido por entrada ilegal, foi libertado ao cabo de algumas semanas por intervenção do antigo presidente da República Bernardino Machado, então exilado em Madrid.

 Para esta cidade se dirigiu e um mês depois deu-se o golpe militar fascista de 18 de Julho. Manuel Firmo incorporou-se nas milícias da CNT e foi enviado para a frente, em Somossierra. Dadas as más condições de alojamento, vestuário e alimentação combinadas com o frio rigoroso desse primeiro inverno adoeceu com pneumonia, numa época em que não existiam ainda antibióticos. A gravidade da situação determinou a sua evacuação, primeiro para Madrid e depois para Valência, onde convalesceu.

Com a incorporação das milícias no exército regular da República, Manuel Firmo, dadas as suas habilitações profissionais, foi integrado na aviação republicana como sargento mecânico.

O avanço nacionalista levou à evacuação da força aérea para Barcelona e, posteriormente, à retirada do exército governamental para a fronteira pirenáica, no que foi acompanhado por muitos milhares de civis.

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Manuel Firmo no Campo de Concentração de Gurs (França)

Ao entrar em França foi internado, como a maior parte dos refugiados, em campos de concentração sem as mínimas condições de alojamento, higiene ou alimentação. Passou pelos ignominiosos campos de Argelés-sur-Mer e de Gurs, sendo requisitado para trabalhar numa fábrica de material aeronáutico após a entrada da França em guerra com a Alemanha. À capitulação seguiu-se o reenvio para o campo concentração e ulterior incorporação em companhias de trabalho com características de companhias disciplinares.

Ao ter conhecimento de que se projectava o envio para a Alemanha duma força de trabalho composta de refugiados espanhóis, Manuel Firmo decidiu fugir de França e regressar a Portugal. Detido na fronteira, passou longos meses em prisões metropolitanas (Aljube, Caxias, Peniche) sendo finalmente enviado para o campo de concentração do Tarrafal, sem sombra de processo judicial.

 Finda a II Guerra Mundial foi libertado ao fim de 53 meses de encarceramento. Sendo-lhe muito difícil encontrar trabalho em Portugal, ao fim de dois anos emigrou para Angola onde esteve colocado inicialmente numa empresa de exploração de sisal e, mais tarde, na Companhia dos Caminhos de Ferro de Benguela. Aí se lhe juntaram os dois irmãos.

Regressou a Portugal e, decorridos dois anos, partiu para Barcelona onde reside a família da esposa, aí permanecendo até à sua morte.

Enquanto a saúde lho permitiu vinha a Portugal todos os anos, nas férias estivais. Nessa altura costumava frequentar o C.E.L., participando nas suas actividades e, nomeadamente, proferindo aí algumas palestras.

Manuel Firmo era um homem culto, autodidacta, que escrevia com elegância. Deixou-nos um livro autobiográfico, "Nas Trevas da Longa Noite, da Guerra de Espanha ao Campo do Tarrafal", editado por Publicações Europa-América.

A sua colaboração em A Batalha, encontra-se reunido «Caderno d' A Batalha» – Em torno da Guerra Civil Espanhola – publicado em 2003. Deixa ainda outra obra que não chegou a ser editada por haver adoecido e não poder acompanhar a sua revisão.

Mas o que sempre mais nos impressionou nele foi a extrema correcção e delicadeza, a atitude tolerante e bondosa, o bom senso, a simplicidade e a sua cultura.

Para a esposa Josefa, que o acompanhou nos momentos dificeis do exílio, também ela internada num campo de refugiados em França, que sofreu a separação dos longos anos de prisão e o acompanhou indefectivelmente em Portugal, Angola e Espanha, nomeadamente nos últimos anos de doença e invalidez, vai a manifestação do nosso pesar, bem como para o seu irmão, cunhada e sobrinhos, familiares da esposa e amigos mais íntimos.

O Colectivo Redactorial de A Batalha, nº 209 (Março, 2005)

Relacionado: http://utopia.pt/edicoes/Binder19.pdf

https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Firmo

https://rastrosderostros.wordpress.com/2014/12/13/manuel-firmo-sindicalista-anarquista-y-esperantista/

https://estudossobrecomunismo2.wordpress.com/2005/02/05/morte-de-manuel-firmo-sindicalista-anarquista-e-esperantista/

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https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4293964

 

25
Jan23

(MEMÓRIA LIBERTÁRIA) COMÍCIOS ANARQUISTAS EM BEJA NO PÓS-25 DE ABRIL DE 1974


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O Alentejo sempre foi um terreno fértil para o anarquismo e para o anarco-sindicalismo enquanto instrumentos de luta para uma sociedade sem explorados nem exploradores. Na 1ª República o movimento libertário e anarco-sindicalista  teve uma forte presença em toda a região, sobretudo no seio dos trabalhadores agrícolas, dos artesãos (sapateiros, por exemplo), dos mineiros de São Domingos e de Aljustrel, dos corticeiros e dos pescadores da costa alentejana. Violentamente reprimido durante o fascismo, o movimento anarquista e anarco-sindicalista resistiu até onde pôde, vendo os seus melhores filhos, mortos, deportados ou presos.  Após o 25 de Abril de 1974 houve várias tentativas para recuperar essa tradição no Alentejo, tendo-se constituído grupos em Beja, Évora, Portalegre e noutras localidades. Em Beja, realizou-se no dia 25 de Janeiro de 1975 um comício que praticamente encheu o Ginásio do Liceu de Beja, em que estiveram presentes militantes e simpatizantes de todo o Alentejo. Este comício foi promovido pelos Grupos Anarquistas Autónomos. Alguns anos mais tarde, a 28 de Abril de 1979 realizou-se também em Beja uma outra sessão de esclarecimento promovida pelo jornal “A Batalha”, desta vez realizada na Sociedade Capricho Bejense. Ficam aqui, como registo, os cartazes e os panfletos distribuídos nessa altura na cidade de Beja.

aqui: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2014/08/08/memoria-libertaria-comicios-anarquistas-em-beja-no-pos-25-de-abril-de-1974/

21
Jan23

21 e 22 de janeiro de 1978: Festival "Pela Vida contra o Nuclear" nas Caldas da Rainha e em Ferrel


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O Festival "Pela Vida Contra o Nuclear" realizado a 21 e 22 de janeiro de 1978 nas Caldas da Rainha foi um momentos mais altos da luta ecologista e anti-nuclear em Portugal. O projecto da construção de uma central nuclear em Portugal foi definitivamente (?) abandonado em 1982 depois de vários anos de forte contestação popular, em que diversos grupos e militantes libertários estiveram envolvidos.

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Dois anos antes, a 15 de março de 1976 os sinos tocam a rebate na pequena povoação de Ferrel, no concelho de Peniche, chamando a população a protestar contra os trabalhos iniciais para a construção duma central nuclear junto á localidade.

O projecto já vinha de trás, dos tempos do marcelismo, e foi retomado após o 25 de Abril de 1974.

A 15 de Março em 1976, os 1500 habitantes de Ferrel (…) conseguiram impedir o avanço dos trabalhos. Esta manifestação marcou o início de um processo que culminaria com a desistência do projecto, tendo-se realizado até 1978 outras manifestações que contaram com o apoio de organizações ambientalistas internacionais.

(…) Por volta das 8 horas da manhã do dia 15 de Março de 1976, os sinos da capela de Nossa Senhora da Guia soaram a rebate. D. Crialmina, agricultora já falecida, tocou sem parar. Nem mesmo quando o badalo se desprendeu ela parou. Pegou nele e continuou a dar pancada no sino.

A população da aldeia e das povoações vizinhas acorreu, em força, juntando-se no largo da igreja, armada com todo o tipo de alfaias agrícolas. Enxadas, foices, sacholas, forquilhas, ancinhos, picaretas... Tudo servia para travar o 'monstro'. Foi dali que aquele aglomerado de pessoas – cerca de duas mil – marchou em direcção à serra, mais propriamente aos baldios de Moinhos Velhos, onde decorriam trabalhos de prospecção com vista à instalação de uma central nuclear. A missão era pôr fim a essas pesquisas.

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Mural em Ferrel

“Uns iam a pé, outros de motorizada ou montados em carroças de burro, tractores, camionetas ou até em cima de debulhadoras”, conta António Júlio Santos (antigo presidente de Junta), que morava no largo da igreja e que, assim que ouviu o sino, acorreu ao local. A viagem até ao alto de Moinhos Velhos, um trajecto com cerca de quatro quilómetros, demorou “mais de três horas”. “Aquilo era quase só areia. Altos e baixos. Não havia um caminho digno desse nome”, acrescenta, frisando que os trabalhos decorriam em “grande secretismo”. Nesse manhã, Tadeu Simões, já estava a trabalhar no campo quando ouviu o sino. “Larguei tudo e vim a correr”, recorda. Sem saber muito bem “ o que se estava a passar”, acompanhou a multidão, longe de pensar que iria participar num “acto heróico e corajoso do povo de Ferrel, a bem do País e da democracia”.

(…) O protesto popular foi imortalizado numa música. Em "Rosalinda" Fausto canta : "...e em Ferrel, lá para Peniche, vão fazer uma central que para alguns é nuclear, mas para muitos é mortal".

António José Correia, (depois presidente da Câmara de Peniche), era, na altura do protesto, colaborador do jornal local "O Arado". Recorda que a contestação à central nuclear juntou centenas de pessoas que "iam munidas dos seus instrumentos de trabalho, uns iam de trator, outros de bicicleta e outros de burro".

Apesar do aparato , da presença no local de centenas de pessoas e de muitos guardas da GNR, o protesto contra a central nuclear em Ferrel decorreu sem incidentes; "Não aconteceu nada, houve respeito mútuo. Foi uma manifestação pacífica".

António José Correia diz que a manifestação não teve o apoio de partidos políticos ou de associações ambientalistas. Foi genuinamente popular. Um "não" ao nuclear que se fez ouvir. A central de Ferrel nunca saiu do papel.” (aqui) 

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 Dois anos depois, quando se começava a falar, de novo, do projecto de uma central nuclear, realiza-se nas Caldas da Rainha a 21 e 22 de Janeiro de 1978 um Festival “Pela Vida contra o Nuclear” que juntou cerca de 3 mil pessoas, superando todas as expectativas dos organizadores.

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Neste protesto, que contou com um espetáculo musical com José Afonso, Fausto, Vitorino, Sérgio Godinho e Pedro Barroso, entre outros, estiveram presentes diversos anarquistas (a presença libertária nos movimentos ecologistas era grande na altura), desde A Ideia, à Voz Anarquista ou ao Satanás (um grupo de Almada, que editava um pequeno jornal) a colectivos dispersos pelo país.

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Numa edição especial de “A Ideia”, no n. 9 referente ao Inverno de 1977/1978, toda ela dedicada à relação entre Ecologia & Anarquia, destaca-se a luta anti-nuclear internacional e pode ler-se:

“Apesar dos Livros Brancos, eternamente anunciados, não é apenas Ferrel que está em causa. É talvez o Alentejo. É talvez a Bacia do Zêzere, onde a existência de amplas zonas militarizadas (Tancos, etc.) e uma população sem grande experiência de contestações e lutas, permitirá pensar aos políticos e tecnocratas que não irão ter grandes oposições sociais à concretização dos seus projectos…. Pela nossa parte esperamos, nem entendido, que se enganem redondamente”.

Curiosa é a noticia do jornal “Voz Anarquista” sobre este Festival. O jornal esteve presente e numa crónica de primeira página não assinada (Francisco Quintal?) o seu autor mostra-se solidário e galvanizado peloa forma como o protesto decorreu e pelo número de pessoas que acorreu às Caldas, mas não esconde as críticas à “desorganização” existente, nem à falta de espaços onde todos coubessem.

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"Caldas da Rainha

Um festival pela vida contra o nuclear decorreu e deve continuar

A pequena cidade de Caldas da Rainha, dentro da sua especial característica que faz dela, desde sempre e ainda hoje, uma jóia da Arte aliada às belezas naturais em que os habitantes conscientemente se integram, viu-se positivamente assaltada por uma multidão de pessoas cujo número ultrapassou e muito o habitual dos seus habitantes. Como todas as terras que vivem de um passado que, até certo ponto, as adormece à sombra de recordações, acordou estremunhada na manhã de sábado, 21 de Janeiro, por ecologistas de todas as tendências que vinham ali e em toda a região até Ferrel, já na orla do oceano, lançar forte e eloquentemente o seu protesto contra o Nuclear que uma ciência, a soldo do capitalismo, explorada por governantes sem escrúpulos e por homens ávidos de negócios,  pretende justificar frente à natureza que se vê, de dia para dia,  desfalcada das suas belezas, da suas virtudes e da sua seiva. Mas, os visitantes, conforme iam chegando viam- se aprisionados naquelas ruas estreitas, e em pouco tempo o programa, com tanto carinho elaborado, viu-se alterado, com o seu primeiro número, dedicado às crianças, posto de parte, por dificuldade de acomodação em que as crianças pudessem reunir-se e trabalhar, dando provas do seu talento natural, no que elas, por vezes, ultrapassam os adultos. E assim se passou naquela linha manhã, constatando-se que as Caldas não tem locais para abrigar mais que algumas centenas de pessoas. A Comissão do Festival não calculou que os números de visitantes fosse tão grande, pois de contrário teria de erguer, embora provisório, que depois seria definitivo, um parque, meio ar livre, coberto por um alpendre ornamentado onde coubessem, não centenas, mas os milhares de pessoas que ali acorreram. O que nos encheu de satisfação, e considerámos muito belo, foi o crescer daquela multidão que ia chegando para a realização do eloquente protesto de um povo que quer ser livre e são. Como dissemos, os trabalhos afinal só começaram depois das 14 horas.

Mas tudo, com ar de feito à pressa, programas negligenciados, tudo última hora, apressado em ar de família pouco meios, com poucas cadeiras e bancos, e instalação de um serviço de alimentação macrobiótica, no ar, em exígua instalação. Bem, membros da Comissão apareciam, a cada passo surgiam, cheios de gentilezas, dando facilidades, o que não seria preciso, se tudo já estivesse previsto e realizado. Consolámo-nos com o ambiente social em que todos se mostraram de um optimismo, duma confraternização encantadora. Nessa tarde começaram a instalar-se bancas de venda e distribuição de livros, folhetos e cromos e autocolantes, não só de ecologia mas de várias tendências políticas. Todos compreendendo a inter-ajuda, todos muito cheios do espírito de tolerância. «Voz Anarquista» montou a sua banca e ali fez o seu sucesso, nesse dia e no domingo. Viemos de lá com a consolação de que contactámos com gente que ficou surpresa de nos ver, que nos acarinhou, e com a clara visão de que a Anarquia está na alma do povo e que é indispensável gritar, sem rebuços esta palavra mágica, que os órgãos diversos do Poder – meios de difusão e meios de repressão – insistem em lançar na sombra. «A Ideia» - órgão de um grupo incansável de propaganda, ali montou banca, a nosso lado. Outras tendências políticas e sociais. E, vá lá, devemos dar primazia aos grupos ecologistas, aos macrobióticos, cujas bancas se viram quase assaltadas por compradores, ávidos de novidades. Reuniões destas, como constatámos, fazem falta. Para substituir as estúpidas embora tradicionais feiras regionais, exclusivamente votadas a um negócio sórdido, devia havê-las mês por mês. Festivais como este, deslocando o seu centro de concorrência e sempre com o mesmo objectivo: a defesa da Natureza, posta em risco pelo sistema capitalista que não olha a meios para atingir os seus fins. A presença destes milhares de pessoas nas Caldas foi um mar de confraternização cheio de grandes possibilidades. O povo não é aquela mola que os políticos pretendem moldar aso seus interesses; o povo vem até nós se nós formos ao seu encontro. O que é preciso é que as Comissões, previamente, realizem mais trabalho, não deixando para a última hora o trabalho entregue aos concorrentes. Também notámos em muitos dos concorrentes uma certa tendência para admitir uma primitiva acomodação ao meio.  O que é preciso é um evolucionar dos meios, admitindo uma forma presente e não uma forma passada. Queremos a natureza elevada em todo o seu prestígio, dentro de um progresso contínuo e não de um regresso.  Portanto, salientaremos que o que deu explêndida vida ao certame foi a própria multidão que acorreu.

No domingo, de manhã, Caldas ficou deserta, entregue ao seu mercado e às suas lojas de curiosidades artísticas, velha-menina remirando-se na sua própria beleza. Os ecologistas de todas as tendências foram a Ferrel lançar um eloquente protesto. É que ali, já no tempo de Salazar, foram construídos os alicerces de uma estação nuclear. E como a revolução de Abril, dos militares e de um povo enganado, mudou apenas de rótulos, mas continuou e respeitou as realizações fascistas, Ferrel tem sido objetivo da tentativa da prevista estação nuclear, o que prova que, quer no regime fascista, quer nos sucedâneos rotulados de democráticos  e «socialistas» ou «comunistas», o regime capitalista sobrevive sempre. Em Ferrel, só a presença da multidão bastou para alastrar o eco de um protesto que não deve morrer. À tarde, voltámos às Caldas. As bancas. Ternura, fraternidade entre todos.  A desorganização dos promotores continua à vista. Não há uma sala para conferências onde a multidão caiba. Caldas ainda trás em cima de si os vestidos justos dos séculos que já lá vão. Tem magníficos edifícios que ameaçam ruína e desmoronamentos. Falta-lhe um parque para dez ou vinte mil pessoas. O seu jardim-parque é uma maravilha. O Museu Malhoa é um modelo em qualquer parte do mundo. Visitando-o, uma comoção muito profunda, quase lacrimosa, invadiu-nos. Mas Caldas, ainda dorme. Deve acordar. Restaurar forças. Tornar-se cidade para toda a gente que vem de fora. Deixar de encolher-se em si própria. Nessa noite vieram falar uns oradores expressamente convidados. Falaram muito. Poucos os ouviram. A grande massa ficou de fora. O certame, que nos comoveu, acabou cedo, com música e canto. Zeca Afonso, com o seu gabão, modesto, simples, ali esteve. Vitorino, sempre libertário, também. Outros grupos igualmente. Apesar dos defeitos, o protesto valeu. É necessário que continue, noutras terras, enquanto Caldas se abre mais. Para uma vida que merece a pena viver. Por uma estrada nova que leva ao país da Anarquia.

(Voz Anarquista, nº 28 – Janeiro/Fevereiro, 1978)

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Fotos: aqui, aqui e aqui

relacionado: https://www.campoaberto.pt/wp-content/uploads/2018/09/PELA-VIDA-1978.pdf

https://www.jornalmapa.pt/2018/01/18/viver-e-preciso/

20
Jan23

Abílio Gonçalves: o último sobrevivente anarco-sindicalista do Campo de concentração do Tarrafal, em Portugal, morreu a 20 de janeiro de 2004


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(foto publicada na revista Utopia, 17)

Com a morte de Abílio Gonçalves (1911-2004), antigo amassador de pão, resistente anarquista ao fascismo,  desaparecia, em Portugal, o último sobrevivente anarco-sindicalista do Campo de concentração do Tarrafal.  Vivo permanecia ainda Manuel Firmo, também antigo preso anarco-sindicalista do Tarrafal, mas a viver há longos anos em Barcelona. Morreu um ano mais tarde, em Janeiro de 2005, com 95 anos.

Abilio Gonçalves foi preso no próprio dia 18 de janeiro de 1934, em Lisboa, sendo desterrado para o Campo do Tarrafal logo na primeira leva de presos, tendo estado ali detido durante 10 anos (1936-1946),  sujeito aos piores maus tratos.

Nos anos a seguir ao 25 de Abril de 1974, Abílio Gonçalves explorou um pequeno restaurante em Pinheiro de Loures, juntando à sua volta um grupo de jovens muito activo, de raíz operária e estudantil.

Colaborou também no reaparecimento de A Batalha e a sua presença na sede da Angelina Vidal era frequente. O jornal A Batalha, nº 203, traçava deste modo o retrato do companheiro desaparecido:

"Na madrugada de terça feira, 20 de Janeiro próximo passado (2004), faleceu na sua residência em Pinheiro de Loures, aos 92 anos, o companheiro Abílio Gonçalves. Nos últimos meses a sua precária saúde obrigara a sucessivos internamentos hospitalares. Abílio Gonçalves nasceu no lugar de Vinhó, próximo de Coja, concelho de Arganil, em 16 de Outubro de 1911. Era filho de José Gonçalves e Guilhermina de Jesus. Dificuldades económicas familiares apenas lhe permitiram frequentar por pouco tempo a instrução primária, lançando-o precocemente no mundo do trabalho. Após alguns anos nas fainas agro-pastoris veio para Lisboa onde foi marçano, aprendendo em seguida o ofício de padeiro (amassador). Casou e teve uma filha.

Filiado na Associação de Classe dos Manipuladores de Pão frequentou na respectiva escola sindical o ensino elementar. Foi eleito secretário da Mesa da Assembleia Geral e, mais tarde, membro da Comissão Administrativa do sindicato. Foi nesta qualidade que participou activamente na organização da greve geral de 18 de Janeiro de 1934 contra a fascização dos sindicatos. Estava então empregado numa padaria da Rua D. Pedro V.

Denunciado por um colega de trabalho que era informador da polícia política, foi preso naquele mesmo dia 18 após o fracasso do movimento. Seguiram-se os interrogatórios e espancamentos policiais, a transferência para o Presídio Militar da Trafaria e o julgamento em Tribunal Militar com condenação a 10 anos de prisão e degredo. A 8 de Setembro de 1934 é enviado a bordo do «Lima» para o forte de S. João Baptista, em Angra do Heroísmo, aonde aportou ao cabo de 5 dias de viagem. Em Angra foi, como os outros, sujeito a frequentes espancamentos e a encerramento de castigo na poterna. Permaneceu nesta fortaleza até 23 de Outubro de 1936, data em que foram embarcados no vapor «Luanda» com destino ao campo de concentração do Tarrafal (Cabo Verde). Aí sofreu todas as agruras do campo, nomeadamente a inclusão na «brigada brava» e demoradas estadias na célebre "frigideira". Assistiu impotente à doença e morte, sem assistência médica, de vários companheiros, entre os quais Pedro Matos Filipe, Arnaldo Simões Januário, Mário Castelhano, Abílio Augusto Belchior, Joaquim Montes, Manuel Augusto da Costa, etc.

Abrangido pelo decreto de amnistia de Outubro de 1945, regressou à metrópole em 1 de Fevereiro de 1946, a bordo do paquete «Guiné», sendo posto em liberdade. Atravessou dificuldades consideráveis para arranjar trabalho, nasceu nessa época o seu segundo filho e algum tempo depois foi para Moçambique, onde se lhe juntariam os filhos. Alguns anos depois foi para a Suazilãndia. Regressou a Portugal algum tempo depois do 25 de Abril, tendo montado um pequeno restaurante em Pinheiro de Loures. Suspendeu a sua actividade há cerca de dez anos.Sócio do Centro de Estudos Libertários, foi presidente do seu Conselho Fiscal (1987) e membro da sua Comissão Administrativa (1988 e 1989). Foi igualmente assinante e colaborador do jornal A Batalha. Com a sua morte desaparece, em Portugal, o último sobrevivente anarco-sindicalista do Campo de concentração do Tarrafal. No funeral estiveram presentes familiares, amigos, dois sobreviventes do Tarrafal, o CEL / A Batalha e outros companheiros libertários."

A morte de Abilio Gonçaves foi também registada nas páginas da revista Utopia. por José Maria Carvalho Ferreira.

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aqui

 

16
Jan23

Carta do MLM publicada no jornal francês Liberation a seguir aos incidentes da manifestação de 13 de janeiro de 1975 em Lisboa


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Carta do M.L.M.

 

ACONTECIMENTOS DEGRADANTES...

O Movimento de Libertação das Mulheres portuguesas decidiu inaugurar o Ano Internacional da Mulher, declarado pelas Nações Unidas, queimando os símbolos da opressão feminina, tais como o Código civil e penal, exemplares pornográficos que utilizam o corpo da mulher como objecto, esfregões e vassouras, etc., todos os tipos de Iiteratura «machista», fraldas (simbolizando o mito da maternidade — enquanto a lei dá apenas ao pai todos os direitos sobre os filhos…).

Os filhos de algumas feministas tinham voluntàriamente decidido participar na manifestação, queimando brinquedos que determinam, desde a infância, o papel reservado a cada sexo na sociedade: metralhadoras e tanques para o rapazes, bonecas para as raparigas.

Seis horas da tarde: quinze feministas chegam ao Parque Eduardo VIl, vestidas de «vamp», com vestido de noiva, disfarçadas de mulheres grávidas, de donas de casa, etc. A imprensa anunciou alguns dias antes esta manifestação como um «strip-tease». Para sua grande surpresa, milhares de pessoas (duas mil a cinco mil pessoas) — sobretudo homens — aguardam-nas. Durante três minutos, não se passa nada. Abre-se um círculo para as deixar passar. No momento em que acendem uma fogueira, o círculo fecha-se à sua volta, e começa a grande confusão: torna-se impossível queimar seja o que for. Chovem dezenas de insultos: «Vamos montá-las», «As mulheres só são boas para a cama», «As mulheres para casa», etc. (e mais todos os tipos de insultos intraduzíveis) acompanhados de gestos obscenos. Uma militante negra é coberta de injúrios: «Vamos fodê-la. As pretas são as melhores na cama.» Um pequeno grupo de mulheres que ostenta uma faixa com as palavras:  «Isto é ridículo», e que, no início, gritavam: «Elas é que deveriam ser queimadas», ao verem a brutalidade de que as feministas são alvo mudam ràpidamente de opinião e começam a gritar: «Vocês, os homens, é que são ridículos.» Um grupo de homens com as bandeiras e os emblemas do PCP (Partido Comunista Português) cantam o hino do Partido. As crianças presentes quase sufocam. As feministas tentam pô-las a salvo recuando para um carro estacionado ali perto, pertencente a uma delas. Mas os homens perseguem-nas, tentando virar o carro.

É então que uma das raparigas começa a gritar: «Querem matar-nos com os nossos filhos?» E é só então que eles param. Acabamos por nos refugiar num prédio, a uma centena de metros dali. E o carro é então imediatamente danificado por uma multidão de homens enraivecidos.

Mulheres simpatizantes, mas não militantes do movimento, que trazem cartazes ou que decidiram manifestar com as militantes, são agredidas — é o caso de uma senhora idosa de 60 anos que trazia uma vassoura. As forças da ordem chamadas à pressa recusam vir porque «há muita gente». As forças do COPCON (Comando Operacional do Continente) chegam ao fim da manifestação que não durou muito tempo — houve no entanto homens que ficaram durante longos momentos gritando diante da porta do prédio onde as mulheres se refugiaram, após terem despido completamente uma jovem de 17 anos que passava por acaso e que foi salva no último momento por um jornalista indignado.

Pode-se imaginar o choque e o mau-estar que persistem após todos estes acontecimentos degradantes, espelho de uma sociedade reprimida durante dezenas de anos por uma política baseada na ignorância e na repressão, na supremacia do homem, viril, herói, «garante destemido e irrepreensível» da religião, da pátria e da família, com uma mãe virtuosa, uma mulher sem mácula, uma irmã a defender das calúnias, e a puta com que se vai para a cama e de quem se diz (e a quem se faz) todo o mal possível.

Movimento de Libertação das Mulheres

(Jornal parisiense Libération, 4 de Fevereiro de 1975)

aqui:  MANIF MLM 1975.pdf

(agradecimentos a Ângelo Barreto e Helena Santos)